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Catarina Neves: um rendimento básico incondicional pode “libertar-nos de trabalhar para sobreviver”

A investigadora da Universidade do Minho defende a aplicação de um rendimento básico universal como uma maneira de "desmercantilizar o trabalho". Desconectando o rendimento do esforço de trabalho, poderíamos libertar as pessoas para o lazer, a comunidade e a realização pessoal.

Entrevista
19 Outubro 2023

A ideia de um rendimento básico incondicional (RBI) não é nova e não precisa de muito esclarecimento. Sem serem impostas condições, qualquer pessoa receberia o pagamento regular de uma quantia considerada o mínimo para se viver (acima de uma convencionada linha de pobreza). Isso significa que não teria de trabalhar para o ganhar, nem teria de provar que, de alguma maneira, "merece" esse dinheiro.

Não é uma invenção contemporânea. Os antigos romanos distribuíram cereais pelos cidadãos (sendo, portanto, uma oferta condicionada ao estatuto de cidadania), mas Thomas More, duas décadas antes de ser decapitado por Henrique VIII de Inglaterra em 1536, escreveu que na sua Utopia toda a gente tinha um rendimento garantido para escapar às indignidades da pobreza e da carestia.

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“A primeira proposta de rendimento básico vem de Joan Lluís Vives”, explica Catarina Neves, doutoranda em Filosofia no Centro de Ética, Política e Sociedade da Universidade do Minho, onde investiga os modos e as consequências da aplicação de um RBI. Jean Lluís Vives, filósofo catalão nascido em 1492, dizia que os governos tinham o dever moral de garantir os meios mínimos de subsistência aos seus cidadãos mais pobres.

Mais perto de nós no tempo, temos o negative income tax promovido pelo neoliberal Milton Friedman, que defendia dar dinheiro aos cidadãos cujo rendimento não chegasse a um determinado nível — ainda que isso acabasse com a restante assistência social aos mais carenciados. “No Alasca há uma política de distribuição dos dividendos da extração de petróleo pela população”, nota Neves, que se considera ser o único exemplo de um tipo de RBI em vigor.

Para a investigadora, a principal consequência da introdução de um RBI seria a “desmercantilização do trabalho”, o que poderia libertar-nos do trabalho assalariado, para garantir que “a nossa sobrevivência não depende de vendermos o nosso tempo”. Não considera que o RBI seja um desincentivo ao trabalho, um tipo de objeção que diz vir “do lado do privilégio”.

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catarina neves
Catarina Neves é formada em Ciências Políticas & Relações Internacionais e em Gestão. É investigadora e doutoranda de Filosofia no Centro de Ética, Política e Sociedade da Universidade do Minho.

Também não concorda com a crítica marxista de que o RBI seria um pacificador das lutas laborais e anti-capitalistas, cristalizando o trabalhador como consumidor. “Ao alterar a forma como concebemos e valorizamos o trabalho, também alteramos a forma como o capitalismo opera”, afirma. 

O RBI pode, continua a investigadora,  ser um caminho para a liberdade: melhora a saúde e a educação das pessoas, liberta-as para o lazer e para o usufruto da vida em comunidade, fortalecendo as redes de apoio mútuo. No fundo, seria uma garantia de que ninguém viveria limitado pelo contexto em que nasceu.

 

Depois de uma pandemia global e a meio de uma guerra na Europa que nos fez descer mais um patamar da crise do sistema capitalista, com um fim à vista que será provavelmente o colapso climático, é o momento oportuno para retomar esta proposta do RBI?

É uma proposta com séculos de história. A versão que defendo é mais contemporânea, obviamente, até porque o Estado social não é uma coisa assim tão antiga. Mas a primeira proposta de rendimento básico vem de Joan Lluís Vives [filósofo catalão do início do séc. XVI], que defendia a ideia de uma subvenção, incondicional, para as pessoas mais pobres. Thomas Paine [político e intelectual britânico do séc. XVIII] também defendeu uma “renda básica”.

Depois, alguns socialistas utópicos desenvolveram a ideia do rendimento básico que, por um lado, era entendido como uma maneira de garantir uma distribuição justa dos recursos que deveriam pertencer a todos, como a terra e, por outro, como forma de nos emanciparmos do trabalho assalariado.

Sobre ser ou não oportuno: não gosto de pôr umas lutas contra as outras. Os nossos esforços para encontrar maneiras de ultrapassar ou reformar o sistema capitalista não estão em confronto.  Neste momento é importante discutir o RBI, porque pode ajudar numa transição ecológica mais justa, sem que as pessoas de menores rendimentos estejam condenadas a ficar para trás. 

Permite-nos passar para trabalhos menos produtivistas, reduzir a dependência do trabalho assalariado, valorizar pessoas que trabalham e que não são valorizadas como trabalhadoras: cuidadores, voluntários, ativistas. O RBI existe em conjunto com todas as suas lutas.

Não existem melhores ou piores momentos para lutar por um rendimento básico, pelo direito à habitação ou por uma melhor redistribuição da riqueza. Felizmente, o nosso tempo, embora limitado pelo trabalho, permite-nos lutar em muitas frentes.

Merecemos todos, incondicionalmente, dinheiro grátis?

Vivemos no capitalismo. O dinheiro existe e é necessário para podermos fazer trocas e, enfim, para sobreviver. É nesse contexto que defendo o RBI. Todos merecemos, do nascimento à morte, a possibilidade de realizar os nossos projetos de vida: seja trabalhar imenso, seja dedicar-nos à família, aos amigos, a uma arte, qualquer coisa. 

As nossas possibilidades de vida estão condicionadas pelo contexto em que nascemos. A família, o bairro, o país onde nasceste. Até as nossas preferências dependem dele. O Estado Social tenta dar-nos uma educação e um serviço universal de saúde tendencialmente gratuitos. Vai tentando mitigar as más condições desse contexto desigual que conhecemos desde que nascemos. Mas não chega.

Sabemos que o dinheiro é uma grande alavanca para as pessoas poderem escolher estudar o que querem. Ou até escolher não estudar durante algum tempo. Sabemos que o dinheiro é importante para as pessoas fazerem uma pausa do trabalho, se precisarem, durante seis meses ou um ano. Para pessoas de 40 ou 50 anos poderem fazer formação noutras áreas. 

O direito a ter essas oportunidades deveria ser redistribuído. Não deveria ser entendido como um direito apenas para aqueles que nasceram num contexto de riqueza ou na perspetiva de uma herança. O filósofo [e economista belga] Phillipe van Parijs chama-lhe a “justa distribuição da real liberdade”. A liberdade de conseguirmos fazer aquilo que alguns podem e outros não.

Há estudos que afirmam que o RBI pode ter impactos muito positivos na saúde e na frequência e desempenhos escolares. É isso que proporciona a liberdade de que fala?

Apesar de serem limitados, o que os estudos apontam é relativamente óbvio: a maioria das pessoas trabalha para sobreviver. Se tiverem uma folga financeira, sentir-se-ão menos ansiosas. Em alguns destes estudos nota-se que existem menos conflitos no seio familiar ou que as pessoas conseguem investir numa melhor nutrição. Já em entrevistas nos Estados Unidos havia pessoas a admitir que pela primeira vez na vida conseguiram comer um bom bife.

No entanto, quando falo em real liberdade estou a referir-me a algo mais abrangente. Isto é o mínimo: libertar as pessoas da escassez e de trabalhar para sobreviver. O RBI oferece muito mais do que isso, sobretudo se for ambicioso. 

Oferece a possibilidade de nos libertar do trabalho assalariado, devolvendo às pessoas o poder de escolher trabalhar em liberdade, em equilíbrio com outras coisas. Essa é a verdadeira promessa: desmercantilizar o trabalho.

"Isto é o mínimo: libertar as pessoas da escassez e de trabalhar para sobreviver. O RBI oferece muito mais do que isso, sobretudo se for ambicioso."

Qual é para si a importância da desmercantilização do trabalho?

Desmercantilizar o trabalho, ou o emprego, é dizer que podemos escolher qualquer mistura de ocupações que queiramos. Muita coisa é trabalho. Tratar do jardim é trabalho. Estar a jogar com os nossos filhos na rua é lazer, mas também trabalho. Tratar da casa é trabalho. 

O sistema capitalista reduziu o trabalho apenas àquilo que promove a produção de bens e serviços, e que cria os lucros daqueles que detêm os meios de produção. Desmercantilizar o emprego é garantir que a nossa sobrevivência não depende de vendermos o nosso tempo, porque isso implica viver uma vida muito limitada.

Concorda que o RBI seria uma forma justa de distribuição da riqueza?

É um mecanismo de redistribuição justa da riqueza, mas não pode ser o único. Há quem afirme que o RBI é pré-distributivo porque permite, ao longo da vida, ter oportunidade e liberdade para tomar decisões de maneira distinta. Não se pode limitar a corrigir em parte uma situação de escassez ou pobreza crónicas.

O RBI deve existir em conjunto com determinadas políticas de bem estar social tradicionalmente garantidas e que, à partida, não podem ser retiradas. Se assim for e a sua implementação for financiada por impostos fortemente redistributivos, como um imposto sobre as grandes riquezas, então sim, seria uma forma justa de redistribuir a riqueza.

Sobre a questão do trabalho: o campo capitalista diz que o RBI desincentivaria ao trabalho. Deixaria de haver o desempregado desesperado. O campo marxista diz que o RBI seria um pacificador das lutas contra as estruturas capitalistas. Nada mudaria fundamentalmente. Como aborda estas críticas?

Não as considero justas. A ideia de que o RBI desincentivaria ao trabalho não é apoiada pelas evidências que temos. Ademais, os capitalistas esquecem-se (e os marxistas às vezes, também) que as pessoas não trabalham só por rendimento. Há quem trabalhe por respeito, por vocação, por prazer. Os estudos dizem-nos que as pessoas não deixam de trabalhar [quando recebem um RBI], podendo, isso sim, encorajá-las a assumir outros tipos de trabalho.

Teoricamente, o RBI vai mexer na forma como a oferta e a procura de trabalho acontecem. Os trabalhos que não queremos fazer, que têm pouco estatuto social, terão de oferecer melhores condições laborais. Os empregadores terão de pagar mais às pessoas. No meu ponto de vista, isto seria extraordinário, porque inverteria a forma como o mercado de trabalho funciona.

Além de promover o poder de negociação individual do trabalhador, o RBI individual também nos poderia permitir trabalhar menos. Não precisaríamos eventualmente de fazer tantas horas. Ficaríamos mais livres para as lutas associativas, para as lutas sindicais. A partir do momento em que este rendimento desmercantilizar o trabalho, acredito que mudará radicalmente a estrutura capitalista. Ao alterar a forma como concebemos e valorizamos o trabalho, também alteramos a forma como o capitalismo opera.

"As pessoas usam o dinheiro do rendimento básico sobretudo para cobrir despesas imediatas ou urgentes: renda, comida, saúde."

Há quem afirme que o RBI é uma "via capitalista para o comunismo". No fundo, não passaríamos pelo socialismo, porque iríamos reduzir radicalmente o peso do trabalho assalariado e libertar-nos da motivação externa do dinheiro. É o que defende Philippe von Parijs centrando-se na ideia da destruição do pilar capitalista do trabalho assalariado do qual estamos dependentes para sobreviver.

Essas duas críticas são limitadas porque só veem o trabalho como trabalho assalariado. Os cuidadores informais saem em completo dessa lógica. E a “desvalorização do trabalho” também pode implicar reduzir o que André Gorz [filósofo e jornalista franco-austríaco] chamava de trabalhos poluentes, os que causam problemas de saúde graves aos trabalhadores.

E se, em vez de nos levar por esse caminho, acabasse por cristalizar o trabalhador como consumidor, num próximo e mais apurado estágio do capitalismo?

Primeiro, parece-me que já aí chegámos. Até já consumimos a vida privada dos outros. Depois, há uma preocupação, mais associada à direita, que afirma que o RBI gera dependência. As experiências que existem de países mais próximos dizem-nos que não é, de todo, o que acontece.

Segundo os estudos, as pessoas usam o dinheiro do rendimento básico sobretudo para cobrir despesas imediatas ou urgentes: renda, comida, saúde. Não pegam no dinheiro para ir imediatamente comprar ténis da Nike ou iPhones. E mesmo que o fizessem, ninguém deve assumir essa postura paternalista. É uma objeção feita do lado do privilégio. As pessoas não conseguem pagar rendas em Lisboa e estamos a diabolizar o consumo. Se uma pessoa nunca teve um par de ténis na vida e quer gastar parte do seu RBI nuns ténis da Nike, deve fazê-lo com total liberdade.

As experiências também nos dizem que as pessoas decidem oferecer algumas coisas a si, aos seus amigos e à sua família. Coisas pequenas, sempre muito sociais: vão almoçar fora com um amigo, levam os filhos a comer um gelado ou à Disneyland. Pequenos luxos que muitos de nós podemos usufruir com frequência, mas outros não.

Também permite pensar a longo prazo, poupar. Claro que envolve consumo, porque estamos numa sociedade que ainda é capitalista, mas consumir não é a finalidade. Permite concretizar objetivos pessoais, familiares e sociais e ajudar quem me ajudou, ou pagar, por exemplo, uma dívida. Criam-se redes sociais, descentralizadas, de redistribuição de dinheiro. Tudo isso potencia a felicidade. 

Há quem critique que potenciar o consumo, sem a crítica paternalista, significa aumentar a produção de mercadorias. Isso liga-se diretamente ao debate sobre a crise climática. Há uma abordagem dos defensores do RBI em relação a isso?

Sendo incondicional, a implementação do RBI não determinaria como as pessoas usam o dinheiro. Logo, pode haver uma crítica ecologista: as pessoas não vão fazer as escolhas mais ecológicas.

Os últimos inquéritos sobre sustentabilidade e consumo dizem-nos que, embora os consumidores portugueses tenham preocupações ambientais crescentes, o principal critério no momento de escolha de um produto é o preço. Normalmente, um produto mais ecológico é mais caro. De certa maneira, a falta de rendimento está a constranger a possibilidade de se fazer uma escolha ecológica.

Por outro lado, se trabalharmos menos, vamos produzir menos, e é disso que os capitalistas têm medo. Podemos reduzir o trabalho produtivista em setores mais poluentes, ou reduzir a dependência das indústrias extrativistas.

O RBI não resolve tudo. A reivindicação de uma infraestrutura decente de transportes públicos e acessível para toda a gente é essencial para a luta ecologista. Haver comboios a funcionar e a ir para todo o lado também ajudaria o RBI a ter um impacto mais positivo, permitindo a livre deslocação das pessoas.

De que maneira poderia o RBI ajudar a combater os vínculos laborais precários, o subemprego e equivalentes, sobretudo na era da gig economy (ou capitalismo de plataformas)?

Precisamos de leis que impeçam a precariedade. Há limites para o que o dinheiro pode fazer. Ainda assim, acho que o RBI pode ajudar, por exemplo, a aumentar o poder de negociação de muitos desses trabalhadores. 

Poderão dizer “desculpa, mas por dois euros à hora, sem seguro de trabalho, não vou aceitar”. Se isso acontecer e se as empresas quiserem sobreviver, então terão de melhorar as condições de trabalho ou de negociar com os trabalhadores.

Acho relevante lembrar que a assistência social em Portugal é bastante limitada e estreita. Além de ser pouco dinheiro, é condicional e exigente. O rendimento social de inserção, além de dar apenas 200 euros, exige a assinatura de um contrato com exigências injustas.

A Segurança Social reserva-se ao direito de pedir qualquer informação que queira para analisar os pedidos de assistência social. Regra geral, os trabalhadores precários estão fora disto, porque podem ter rendimentos que flutuam e não são considerados elegíveis para o RSI.

O RBI cria, por outro lado, uma rede de segurança abrangente que oferece mais dinheiro sem fazer perguntas, sem pedir assinaturas nem o cumprimento de determinada condição. 

Portanto, por exemplo, um estafeta da Uber que em certo momento, por alguma razão, não consegue trabalhar, teria apoio sem ter de se justificar entre burocracias. O RBI não acabaria com a precariedade, mas poderia mitigá-la. Criaria uma situação muito melhor para todos os precários, mesmo os da ciência ou da cultura.

"No Alasca há uma política de distribuição dos dividendos da extração de petróleo pela população. Há evidências de que as lojas aumentam os preços quando essa distribuição acontece."

Em toda a Europa vemos um crescente desinvestimento nos serviços públicos e no Estado Social, com uma tendência privatizadora. Aplicar o RBI não poderia agudizar ainda mais essa tendência?

Não digo que não tenho medo que possa acontecer. Não votaria em qualquer partido que apoiasse o RBI sem que isso ficasse claro. Por um lado, temos uma Constituição que nos protege. Isto é bom. Por outro, por exemplo, o direito à habitação não está a ser cumprido, embora esteja na Constituição. Ainda assim, ele existe. O mesmo se aplica ao direito à saúde.

Seria inconstitucional usar o RBI para substituir o Sistema Nacional de Saúde, como já foi explicado pelo Gonçalo Marcelo [investigador e professor universitário, dirigente da Associação pelo Rendimento Básico Incondicional em Portugal]. Para mim, o RBI tem o propósito de demercantilizar o trabalho. O SNS não serve para desmercantilizar o trabalho, mas para garantir cuidados de saúde de qualidade, porque é um direito universal básico. O mesmo para a educação e para a habitação. Não podemos cair nessa dicotomia. Não quero um RBI para financiar a especulação.

Já temos especulação mascarada de inflação nos bens consumíveis. O que impediria as grandes empresas monopolistas de aumentar os preços sabendo que as pessoas teriam, digamos, 500 euros certos, todos os meses, no bolso?

Isso preocupa-me, porque pode acontecer. No Alasca há uma política de distribuição dos dividendos da extração de petróleo pela população. Há evidências de que as lojas aumentam os preços quando essa distribuição acontece. Aumentam, mas não muito, porque as pessoas estão atentas.

Para perceber o impacto do RBI na inflação, seria preciso ser implementado. Mas sabemos que há maneiras de o mitigar. A primeira é reconhecer que o RBI é uma política que estimula a oferta. Ou seja, as pessoas têm mais dinheiro e vão consumir mais; mas também mexe na procura, porque muda os hábitos desse consumo. Este rendimento também pode alterar a produtividade e os bens, produtos e serviços  produzidos ou prestados na economia, e isso pode contrabalançar os impactos da inflação.

O RBI também pode ser mais ou menos inflacionário tanto quanto for mais ou menos redistributivo. Se formos tirar dinheiro a determinadas fontes de riqueza, em vez de estarmos a imprimir mais dinheiro, a pressão inflacionária será à partida mais pequena.

Suponho que o financiamento de uma medida destas, redistributiva, viria de fiscalidade progressiva e taxação das grandes fortunas. 

Algumas pessoas propõem o financiamento através de recursos naturais. Thomas Paine viveu numa altura em que a terra, na Inglaterra, acabara de ser progressivamente privatizada de forma bastante violenta. Para ele, os enclosures não faziam sentido. Havia que distribuir a terra por toda a gente, por termos direito a ela, e taxá-la. 

Há quem defenda o financiamento através de um imposto bastante agressivo sobre as heranças, que já existiu em muitos países, sendo desfeito a partir dos anos 1980. Há até uma proposta que diz que há determinados trabalhos  remunerados em excesso, e que esse excesso deveria ser distribuído por todos.

Também há quem fale de financiar o RBI pelo “imposto dos robôs”, sustentando-se na ideia de que a tecnologia que temos foi desenvolvida por todos e que todos nós deveríamos beneficiar da riqueza produzida através dela. E há o RBI redistributivo que não só é financiado com fiscalidade sobre grandes riquezas e heranças, como também por transações financeiras. Acho que tudo isto é válido de se considerar.

"Temos de democratizar a tecnologia, garantir que há um controlo democrático sobre empresas que fazem a automatização."

Podemos reconhecer, também, que o RBI pode ir buscar algum valor, ainda que mínimo, a algumas prestações sociais do Estado Social. Se existe um RBI, creio que não tem que existir um Rendimento Social de Inserção ou pensões de sobrevivência, desde que ninguém fique a receber menos do que recebia antes.

Muito do que se diz sobre a automatização do trabalho pertence ao hipotético. Ainda assim, ela pode libertar o trabalhador ou torná-lo descartável. O que pensam os defensores do RBI em relação ao dilema da automatização do trabalho?

Há muitas pessoas donas das máquinas que gostam do RBI: Elon Musk, Jeff Bezos, Mark Zuckerberg. É relativamente óbvio. Parece-me que estão preocupadas com o facto de haver algumas consequências indesejadas. Há o interesse em pagar a menos gente para trabalhar, mas as pessoas precisam de continuar a consumir os seus produtos. Há o interesse em não colocar as pessoas na pobreza, para evitar revoltas. Como podemos resolver isto?

Um imposto sobre a automatização seria interessante se fosse mesmo muito alto. Ainda assim, não sei se um controlo maior, uma democratização da tecnologia, não seria preferível a isso. Temos de democratizar a tecnologia, garantir que há um controlo democrático sobre empresas que fazem a automatização.

O que nos dizem as experiências de campo sobre a implementação do RBI?

As experiências são muito limitadas. Existem experiências desde os anos 1950, implementadas na América do Norte, no Canadá e nos EUA, com o chamado negative income tax. Ou seja, as pessoas que auferiam até um determinado rendimento, considerado demasiado baixo para ser taxado, recebiam dinheiro.

Milton Friedman, um neoliberal, quis implementá-lo para substituir tudo o que era apoio social. A experiência teve bons resultados e o negative income tax esteve quase a ser implementado. Diz-se que não aconteceu porque, alegadamente, a taxa de divórcios aumentou. As mulheres viam-se com dinheiro, estavam em relações infelizes e divorciavam-se. Alegadamente.

Entretanto, houve muitas experiências: nos Estados Unidos, na Finlândia, na Espanha, na Namíbia, no Quénia, na Coreia do Sul e no Brasil. O que nos dizem todas elas? Redução de ansiedade e melhorias a nível da saúde mental. Há uns quantos indícios de melhorias na nutrição, sobretudo no Sul global, e no acesso à saúde, sobretudo de crianças. Houve aumentos nas taxas de escolarização.

Nos Estados Unidos, verificaram-se melhorias no desempenho escolar de crianças indígenas, o que aumentou um pouco a probabilidade de conseguirem ir para o ensino superior. Na Finlândia viu-se um maior comportamento redistributivo na comunidade: pessoas usaram o dinheiro para partilharem com as suas redes familiares ou sociais.  Em termos de trabalho, não há indícios de que se reduzam as horas trabalhadas, mas em experiências nos Estados Unidos verificou-se a tendência de escolher trabalhar menos horas extra.

Ainda na Finlândia, constatou-se que mulheres migrantes e homens com menos escolaridade, mais velhos, conseguiam arranjar trabalho mais rápido. Eram casos muito particulares. Os homens mais velhos e menos escolarizados viam-se mais libertos dos constrangimentos burocráticos para conseguir assistência social e as mulheres migrantes conseguiam pagar creches para os seus filhos, poupar dinheiro e garantir maior independência.