Mãe, filha e neta. Moldada pelas histórias familiares de trabalho e exploração e, por isso, feminista, comunista e militante. Acredita na luta por uma vida digna para todos. Estudou Farmácia para ter um emprego e gestão para entender o mundo.

As creches gratuitas foram uma conquista, mas precisamos de uma verdadeira rede pública

Milhares de famílias têm sentido dificuldades para encontrar vagas para os seus bebés em creches. A sua gratuitidade foi uma importante conquista, mas até quando vamos continuar a dar lucros aos privados por falta de uma verdadeira rede pública?

Ensaio
28 Setembro 2023

Já o inscreveste na creche? Esta é uma das primeiras perguntas quando se diz à família e amigos que se está grávida. A pertinência do tema não é de agora, sempre foi complicado conseguir vaga, especialmente nos grandes centros urbanos. A principal dificuldade era consegui-la numa instituição particular de solidariedade social (IPSS), pois as mensalidades são definidas consoante os rendimentos do agregado familiar e, por isso, seriam mais atrativas. Não havendo vaga numa IPSS, ter-se-ia de recorrer a uma creche privada, pagando entre 400 a 600 euros, quando o salário mínimo era menos de 760 euros brutos.

Em Portugal, a procura por creche é superior à média europeia. Talvez esta necessidade se explique pela forte presença das mulheres no mercado de trabalho, em full-time, e pela reduzida licença de parentalidade. É de assinalar que a Organização Mundial de Saúde recomenda amamentação exclusiva nos primeiros seis meses de vida da criança, mas a licença da mãe só dura, no máximo, 150 dias (cerca de cinco meses). 

É interessante a evolução da presença das mulheres portuguesas no mercado de trabalho. Diz-nos Irene Pimentel, no livro A situação das mulheres na I República e no Estado Novo, que em 1950 as mulheres eram 22,7% da população ativa em Portugal, duplicando de número entre 1930-50 no setor têxtil e do tabaco, representando 80% de mão de obra feminina.

Dependemos de quem nos lê. Contribui aqui.

Na década de 1960, a presença feminina no mercado de trabalho aumentou por causa da onda de emigração e da Guerra Colonial (1961-1974). Como a mão de obra feminina se tornou essencial, muitas empresas abriram creches para que as trabalhadoras tivessem onde deixar os filhos. Ainda hoje se encontram alguns locais de trabalho que oferecem estes serviços, apesar de serem cada vez menos — o império da família Mello, mais concretamente o ramo Mello dedicado à Saúde (a CUF), vendia serviços pagos aos seus trabalhadores, e um deles eram as creches. 

Em 2022, 64% das mulheres portuguesas dos 15 aos 64 anos trabalham em full-time, colocando Portugal em oitavo lugar na tabela da OCDE, atrás da Lituânia, Letónia, Estónia, Suécia, Eslovénia, Bulgária e da República Checa, de acordo com dados da organização internacional. Todos estes países têm simpáticas licenças de maternidade. Alguns exemplos: na Suécia são 240 dias de licença para cada progenitor, na Bulgária são 410 dias e na República Checa são 14 semanas. 

O tema das creches ganhou ainda mais importância nos últimos anos. Por um lado, a taxa de natalidade em Portugal tem sido estável, ainda que com algumas flutuações, depois de uma desvalorização crescente do sector das creches por causa da constante diminuição da natalidade nas últimas décadas — em 1976, a taxa bruta de natalidade era 20 bebés por mil habitantes. No entanto, entre 2010 e 2022, esta mesma taxa situou-se, segundo a Pordata, entre os 9,6 e os 8 bebés por cada mil habitantes, quando se esperava uma contínua diminuição, não fosse a imigração.

Por outro lado, foi aprovada em 2021 a lei da gratuitidade das creches (IPSS, amas da segurança social e algumas creches do sector privado), o que significa que se democratizou o acesso à creche. Retirou-se uma importantíssima barreira a milhares de famílias que tinham de arranjar uma solução supostamente menos dispendiosa para os seus petizes (abdicar de trabalhar, deixar as crianças com familiares ou em creches consideradas ilegais), quando os salários reais têm encolhido e o custo de vida aumentado de ano para ano para a maioria das famílias. 

É difícil que amigos e familiares nos façam sempre perguntas difíceis, como se estivessem a sublinhar a inconsequência que foi engravidar sem ter uma vaga já garantida.

A gratuitidade das creches foi uma importante conquista para muitas famílias, mas a falta de uma verdadeira rede pública fez com que o sector não conseguisse dar a necessária resposta.

Além destes dois factores, há ainda outros a ter em conta. No caso do berçário, isto é, da primeira sala que um bebé frequenta e que abrange as crianças dos quatro aos 12 meses, as vagas são reduzidas. São entre oito a dez bebés por sala. À medida que vão crescendo, as vagas nas salas seguintes também aumentam. A maior dificuldade será, portanto, conseguir vaga para os bebés de idade inferior a 12 meses, para que os pais (leia-se a mãe) possam regressar ao trabalho depois da licença de maternidade.

Numa nota pessoal, e como recente mãe de primeira viagem, posso partilhar a minha experiência que permite perceber o estado da arte. Comecei a tentar inscrever o meu bebé em fevereiro, mas o seu nascimento estava previsto para julho deste ano. Contactei ao todo dez creches, pois só essas seriam geograficamente viáveis. Vivendo no centro histórico de Lisboa, e sem carro, não é opção fazer horas de transportes públicos no percurso casa-creche. 

Das dez contactadas, uma não tinha berçário, duas já não tinham vagas para o ano lectivo seguinte, nas restantes fiz pré-inscrição sabendo que a probabilidade de conseguir vaga era diminuta. Isto porque nas IPSS a inscrição é feita a partir do momento em que o bebé nasce, antes disso só estão pré-inscritos e a aguardar a confirmação de nascimento e a documentação do bebé. Num desses contactos foi-me dito que, se o bebé não fizesse quatro meses até ao fim de 2023, não aceitavam sequer a pré-inscrição. Ou seja, se o bebé nasce depois de setembro os pais podem esquecer a opção creche para esse ano lectivo, pelo menos nessa IPSS, não sei se todas terão esta regra.

Voltando à minha experiência, as minhas expectativas de conseguir vaga eram praticamente nulas. É-nos dito pelas simpáticas administrativas ou directoras que se houver alguma desistência nos chamam, talvez para nos dar alguma esperança, mas, nestes tempos, como se pode esperar que haja uma desistência?

Outra pergunta que agora me fazem amigos e familiares, sabendo que não tinha vaga, é: como vais fazer? É difícil que amigos e familiares nos façam sempre perguntas difíceis, como se estivessem a sublinhar a inconsequência que foi engravidar sem ter uma vaga já garantida. Podia, sei lá, ter procurado um diretor de uma creche e ter-me feito sua melhor amiga, eu própria podia ter construído uma creche, enfim, devia ter um plano.

Adiante, o meu plano era simples, não havendo vaga na creche: pedir licença alargada (três meses adicionais, auferindo 30% do meu rendimento bruto) e depois logo se via. Ponderava regressar ao trabalho a tempo parcial, ficando o pai com o bebé durante essas horas. 

A gratuitidade das creches foi uma importante conquista para muitas famílias, mas a falta de uma verdadeira rede pública fez com que o sector não conseguisse dar a necessária resposta.

Entenda-se que as soluções em que pensei só são possíveis porque 1) consigo suportar o corte de rendimentos durante a licença alargada e 2) sei que a minha entidade empregadora não colocaria entraves a trabalho parcial, além de que me permitiria trabalhar a partir de casa a 100%. São privilégios que grande parte, se não a maioria, não tem. 

Está previsto no Código de Trabalho que os pais com crianças pequenas tenham direito a horário flexível e a teletrabalho, “se possível”. No entanto, se a entidade empregadora não facilitar, será sempre difícil usufruir destes direitos em pleno. Ou porque se tem de arranjar um advogado para pressionar, ou porque haverá retaliações da chefia, o que deixa as mães a pensar na hipótese de rescisão de contrato — quase 1400 grávidas ou mulheres a amamentar foram despedidas de empresas em 2022, um aumento de 13% comparado com 2021. Num mundo em que se luta pela igualdade salarial entre homens e mulheres, a maternidade representa, portanto, um atraso ainda maior que o habitual quando não há creche. 

A nossa procura acabou por ter um final feliz por dois motivos. Em primeiro lugar, e o essencial, a construção de creches pela Câmara Municipal de Lisboa (CML) no âmbito do programa b-a-ba. Em segundo, uma desistência — espero que por bons motivos para a família que desistiu da vaga.

Estamos radiantes com a creche, é o que devia acontecer com todas as famílias. É a cinco minutos a pé de casa, tem espaço ao ar livre para a nossa criança brincar, uma sala linda, educadora e auxiliar muito queridas, tudo isto a custo zero para a nossa família. Uma creche pública, fruto do investimento público da CML e sem a qual não teríamos vaga. 

Feliz que estava e curiosa que sou, resolvi pesquisar a origem do programa b-a-ba para saber quem seria o responsável por esta ideia incrível cuja execução me resolveu a vida. Talvez, quiçá, escrever-lhe uma carta de agradecimento pelo serviço público, enviar-lhe um ramo de flores ou uma caixa de chocolates, mediante consulta dos estatutos do funcionário público, não se vá dar o caso dos presentes se enquadrarem no crime de corrupção. Tenho um filho para criar e não quero problemas, só queria demonstrar gratidão. 

Quase 1400 grávidas ou mulheres a amamentar foram despedidas de empresas em 2022, um aumento de 13% comparado com 2021.

O motor de busca fez-me chegar a um site que explicava que o programa foi lançado em setembro de 2010, com o objectivo de aumentar a rede pública de creches em 2500 vagas. Ou seja, alcançar-se 50% de taxa de cobertura. 2010… comecei a fazer contas de cabeça e a rir. Tive de verificar na Internet quem era o presidente da CML em 2010. Confirmado: era António Costa. Esse mesmo, o atual primeiro-ministro. 

Qual será a razão para António Costa presidente da câmara ser a favor de uma rede pública de creches e António Costa primeiro-ministro ser contra? Passa-me pela cabeça a frase “dentro de mim existem dois lobos”, e sorrio. Como é que o PS de 2010 viu a necessidade de se criar uma rede pública em Lisboa e o PS de hoje é contra uma rede pública para o país? 

Refiro-me ao recente projeto-lei do PCP para a criação de uma rede de creches públicas, discutido, votado e rejeitado no dia 24 de junho de 2022 com os votos contra de PS e Iniciativa Liberal e abstenção do PSD e Chega. Só o PCP, o Bloco de Esquerda e o LIVRE votaram a favor. Este projeto-lei visava a criação de uma rede pública de creches, com o objetivo de adicionar 100 mil vagas até 2026, garantindo a universalidade, a gratuitidade e a coesão territorial. A responsabilidade pela construção das necessárias infraestruturas caberia ao governo e a rede de creches ficaria sob tutela do Ministério da Educação. 

O projeto-lei atribuía ainda ao Ministério da Educação a responsabilidade pela criação de orientações pedagógicas, sendo estas de carácter universal, devendo ser adoptadas por todas as creches, públicas ou não. O BE e o LIVRE apresentaram também no mesmo dia os seus projetos-lei que iam no mesmo sentido, mas também foram rejeitados por uma maioria PS aliada à direita. 

Poderão sugerir que o problema são os grandes centros urbanos e, por isso, no resto do país a oferta é suficiente e não se justifica o investimento. Essa sugestão é fácil e rapidamente rebatida abrindo a aplicação “creche feliz”. Basta procurar por uma vaga em cada município. Vila do Bispo, Crato, Terras do Bouro e Sertã têm duas coisas em comum: não são grandes centros urbanos e não têm vaga para berçário. 

Numa nota positiva, e se a anterior selecção aleatória de municípios não te agradou, posso informar que em quatro dos cinco municípios de menor densidade populacional há vaga! Se viveres em Monforte, Mértola, Alcoutim e Idanha-a-Nova poderá inscrever o seu filho no berçário.

Qual será a razão para António Costa presidente da Câmara ser a favor de uma rede pública de creches, em 2010, e António Costa primeiro-ministro ser contra? 

A falta de creches é um facto indiscutível. As vagas existentes no país em IPSS e no sector privado eram 120 mil, metade das necessárias para garantir vaga a todas as crianças dos zero aos três anos, de acordo com dados da PlanApp, em 2020. As medidas tomadas pelo governo, como a do aumento do número de alunos por sala (aplicável até certo ponto, atenção), não só são insuficientes como põem em causa o bem-estar e a aprendizagem das crianças, além de dificultarem o trabalho dos educadores e auxiliares de educação. Sublinhe-se que a creche não é um lugar onde se depositam bebés e crianças, mas um de socialização, aprendizagem e desenvolvimento.

Uma outra medida do governo, através da Portaria n.º 305/2022, de 22 de dezembro, diz respeito ao alargamento da aplicação da medida da gratuitidade das creches às crianças que frequentem creches licenciadas da rede privada lucrativa. A portaria descreve o processo e as regras, sendo o pagamento feito pela segurança social à creche privada, definindo a mensalidade de 460 euros por criança. 

Esta medida é insuficiente, ineficiente e injusta. Restringe a oferta a creches que aceitem esta mensalidade, sendo que muitas praticam valores superiores, pelo que nesses casos haverá crianças excluídas do apoio do Estado. Além disso, representa um maior gasto para o erário público: por quanto tempo haverá este apoio? Por enquanto parece ser uma medida temporária, mas, não havendo a criação de vagas na rede pública, até quando se estará a dar lucro aos privados? Qual a necessidade de o fazer quando o Estado dispõe de meios para garantir a educação destas crianças? 

Há, ainda, um outro ponto a ressalvar: a questão da prioridade. No arranque deste ano lectivo, a opinião pública dividiu-se e entrou em discussões inflamadas sobre os critérios de prioridade para as vagas, em vez de se unir na luta pela resolução da raíz do problema, isto é, a inexistência de infraestrutura e recursos para  todas as crianças. 

As vagas existentes no país em IPSS e no sector privado eram 120 mil, metade das necessárias para garantir vaga a todas as crianças dos zero aos três anos.

Os novos critérios de prioridade estão a causar celeuma porque beneficiam os mais pobres em vez dos pais trabalhadores. Parece uma medida razoável — a cada qual segundo as suas necessidades —, visto que o relatório anual "Portugal, Balanço Social 2022" aponta que 67,4% das crianças até aos três anos que vivem em famílias mais pobres não vão à creche. A creche para estas crianças representará,além de todos os benefícios educacionais, uma alimentação garantida e nutritiva, um ambiente com temperatura confortável. É, portanto, de particular importância que se garanta este acesso a estas crianças. Por outro lado, não se pode deixar sem solução as famílias de classe média que dependem financeiramente dos seus empregos e que não têm onde deixar os seus filhos. 

Nestas discussões o superior interesse da criança deveria ser o foco, independentemente dos recursos, origem e situação laboral dos pais. Todas as crianças beneficiam da creche. Todas as crianças residentes em Portugal merecem do Estado português igual tratamento e iguais oportunidades. Vagas para todas, oportunidades para todas.