Doutor em Ciências da Comunicação e investigador vinculado à Universidade Federal de Pernambuco. Investiga sobre género e sexualidades, colonialismo e Jornalismo.

Procura-se trabalho digno no jornalismo

Porque continuamos nós, jornalistas, a insistir numa profissão onde a precariedade grassa, em que há sérios obstáculos à autonomia editorial e perspetivas pouco animadoras de futuro? Ao regressar do Brasil, fiz um acordo comigo próprio: não aceitar menos que o que considerasse digno. Spoiler: continuo à procura.

Ensaio
10 Novembro 2022

Alentejo, verão, 40º graus. Na redação, ar condicionado, respira-se melhor. Secretárias lado a lado, alguns papéis estão espalhados, telefones e outros equipamentos para trabalhar, estúdio, emissão no ar. A antecipação de tudo o que ali poderá ser construído ajuda-me a respirar mais que bem, é uma alegria. Voltei a morar em Portugal há pouco tempo e é uma das primeiras entrevistas de emprego a que vou. A redação está quase vazia, a pessoa responsável pela direção do órgão de comunicação faz uma breve apresentação do espaço e sentamo-nos para falar de coisas sérias.

Conversa terminada, despedimo-nos e, à medida que me afasto da artificial atmosfera da redação, concluo que não se tratou do tipo de entrevista que esperava. A dinâmica foi semelhante à de outras entrevistas que se seguiram: entrevistador com poucas perguntas, muito mais interessado em falar do que ouvir. Falou sobre o ambiente de trabalho, os objetivos na redação, o seu funcionamento, a importância social da atividade, as dificuldades que se impõem, os públicos a que se dirige. Ao menos eu não poderia alegar completo desconhecimento sobre ao que ia.

E ao que se ia? Com mais propriedade, só o saberá quem fica. Não foi o meu caso. Por escolha própria, recusei o trabalho. Fi-lo por causa da perceção da precariedade laboral e da existência de relações interpessoais extremamente tóxicas. Entretanto, uma das perguntas que nos últimos anos mais me tem preocupado é: se a precariedade laboral está tão presente no jornalismo, o que leva uma pessoa a escolhe ser jornalista, à constante insistência para entrar e permanecer na profissão?

Dependemos de quem nos lê. Contribui aqui.

Agora que regressei a Portugal, confrontei-me mais de perto com a precariedade. Falei com pessoas com responsabilidades de direção em três diferentes veículos regionais. O bloco de notas onde anotei as impressões das conversas ajudaram-me a reconstituir as conversas.

Uma das entrevistas de emprego aconteceu neste verão. Mal começou, fui informado por uma responsável do órgão de comunicação social que se trabalha por metas, que o objetivo é atingir largos milhares de visitas diárias no site. Por isso, argumentou-me, não interessava ter alguém muito bom que demorasse uma manhã inteira a escrever uma notícia. São as finanças, é o digital, é a crise. Infelizmente é assim mesmo, disse-me.

Não tardou a surgir outra das clássicas fórmulas: ser-se jornalista não é uma profissão como as outras, não há horário certo de trabalho, os acontecimentos é que o ditam. Para ilustrar o sucesso nesse aspeto, essa responsável relatou-me uma conversa em que uma pessoa muito admirada com a quantidade de produções do veículo tentou adivinhar o número de jornalistas na redação. Seriam 50? Aproveitei a deixa para sugerir que seria bom se fossem tantos. Não, respondeu do outro lado da mesa. Referiu depois que mesmo se pudesse não queria: assim o ambiente era mais… pausa na procura da palavra certa… familiar. Sem muita capacidade de reação da minha parte, partimos para o ponto mais sensível: o salário.

Revelando, como quem não quer a coisa, que no dia anterior tinha recebido uma outra candidatura, sugeriu-me um tempo à experiência a recibos verdes e 800 euros brutos. Quase em modo automático, digo-lhe que estou elegível para estágio profissional, frase que já tinha engatilhada antes de me sentar à mesa. Ah, já podias ter dito!, respondeu-me contente.

Com a sensibilidade possível, adiei a confirmação do acordo para o dia seguinte. Telefono e informo que gostaria de ter mais tempo para decidir, sugerindo voltar a conversar nas próximas semanas. Tudo bem. Poucas horas depois, SMS para dar conta da sua “estupefação”, afinal “fostes tu que nos procuraste”. Porta fechada.

Seguiram-se os dias e no início de julho consegui entrevista noutro media regional. No primeiro encontro foi-me dito que apenas tinham falta de recursos humanos e que o meu doutoramento até podia ser bom para se concorrer a bolsas e outros fundos. Queriam peças de qualidade, de investigação e não caçavam cliques. Estávamos alinhados e se possível avançaríamos para o estágio profissional. Entretanto, sugeriram-me que propusesse temas para futuras peças.

Alegria, alegria, (e “o peito cheio de amores vãos”, canta Caetano Veloso enquanto escrevo). Passaram dias, propus ideias, comecei a desenvolvê-las, mas o período de candidaturas a estágio já tinha encerrado, reabria meses depois. Marcamos novo encontro.

Numa das entrevistas de emprego fui informado que o objectivo era atingir milhares de visitas diárias no site. Por isso não interessava ter alguém muito bom que demorasse uma manhã a escrever uma notícia.

Conversa vem, conversa vai. Debatem-se ideias, o percurso de cada um, o jornalismo que se quer fazer, a família e o tempo. O assunto sensível, que nos dizem para nunca levantarmos nas entrevistas de emprego, teima em vir ao de cima: e o pagamento? Não podemos pagar, disse-me. Compreendo, digo, embalado por uma falsa sensação de horizontalidade, mas assim não conseguirei ter tanta disponibilidade para avançar com as peças que já comecei. Assim até parece que nos estás a fazer um favor, disse-me rispidamente. Vieste falar connosco, estamos a colocar os recursos à disposição e não temos garantias de ganhar qualquer coisa, realçou.

Suspiro, explico que tenho 33 anos, que estou desempregado e que preciso de pôr comida na mesa. Teria de continuar à procura de trabalho remunerado e por isso não poderia dedicar tantas horas do dia às peças com que concordaram, mas continuaria a desenvolvê-las. Por fim, acrescento: para que fique claro, não digo que vos esteja a fazer um favor, mas tampouco me estão a fazer um com trabalho voluntário. A resposta: se não dás garantias, acho melhor não avançarmos por enquanto. Tudo bem, digo descrente, se preferir voltamos a falar em outubro. Diz-me que afinal o estágio seria difícil porque a empresa teria de pagar uns 300 ou 400 euros por mês. A rejeição não é direta, mas é óbvia. Porta fechada.

Nos últimos cinco meses, desde que voltei a residir em Portugal, tenho-me desdobrado em candidaturas, a maioria espontâneas. No geral, os retornos têm sido semelhantes: referência às dificuldades económicas que impedem a integração de mais alguém ou o famoso ‘voltaremos a contactar’, que quase nunca se concretizou. Aliás, o mais frequente tem sido a completa ausência de respostas.

Ainda em julho submeti candidatura a uma das raras vagas de estágio anunciadas. Sem resposta, duas semanas depois telefonei para redação. Apresentei-me, informei que tinha enviado CV e que gostaria de saber se a vaga já estava ocupada. O que sabe fazer?, perguntou-me asperamente alguém do outro lado da linha, como se falar comigo já fosse um favor por si só. Apanhado de surpresa com o tom da pergunta, tentei fazer um resumo do meu percurso, de competências e interesses, concluindo dizendo ter feito doutoramento em Comunicação no Brasil.

O que não falta neste país são doutores e engenheiros, disparou. A vaga é para estágio, mas queremos alguém que saiba trabalhar: fotografia, vídeo, digital, que saiba estar à frente de uma câmara, fazer diretos, entrevistar, continuou. Tudo feito bem e depressa. Depois deu um exemplo: temos cá um jornalista que faz trinta notícias por dia. Perguntei com quem estava a falar mas recusou dizer o seu nome. Para onde poderia reenviar o CV? Que procurasse no site, lá encontraria algum e-mail.

Há portas que não vale a pena tentar abrir. Haverá, no entanto, quem tem menos margem para recusar estes trabalhos se quiser entrar no mundo do jornalismo. Eu ainda estou em condições que permitem um relativo espaço de manobra: tenho uma rede de apoio que diminui (mas não elimina) a urgência de trabalho remunerado, não tenho filhos ou outras pessoas à minha responsabilidade e o meu grau académico permite-me concorrer a vagas de trabalho inacessíveis à maioria da população.

Números que ilustram uma precariedade subrepresentada

Em 2016, a maioria dos 1496 jornalistas que participaram num estudo sobre condições laborais tinha licenciatura: 80%, proporção muito superior à então encontrada entre a generalidade da população portuguesa (17%). Uma percentagem significativa também tinha mestrado (13%) e uma pequena parcela doutorado (1,5%). Os dados recolhidos apontavam ainda que 55% tinha realizado formações complementares nos últimos cinco anos, a maioria (40%) por iniciativa própria. Entretanto, 57% recebia menos de 1000 euros (19% estava acima dos 1500 euros) e mais de 80% não tinha progressão na carreira há pelo menos 4 anos.

De forma muita resumida, os dados apontam, acredito, para pelo menos dois aspetos que servem para se refletir sobre precariedade laboral, fenómeno que, como fica explícito no ensaio de Manuel Afonso, é de difícil qualificação. Por um lado, o elevado investimento na especialização, que normalmente não é acompanhado pelo aumento de ganhos materiais. E, por outro, um investimento que tende a ser assumido individualmente pelo jornalista.

Daqui surgem várias questões, algumas delas centrais para se refletir sobre o jornalismo e a nossa sociedade: que condições (económicas, de tempo etc.) possibilitam investimentos que tendem a não reverter em significativos ganhos materiais? O que justifica esse movimento? Que ações são realizadas e quais os seus custos (para relacionamentos familiares, saúde etc.)? Quem tem acesso, e em que medida, a condições para este investimento na carreira?

Regresso à pesquisa, folheio as suas páginas no meu ecrã à procura de respostas e os números são assustadores. Contratualmente, 65% dos/as jornalistas trabalhariam entre 35 e 40 horas semanais, no entanto, 61% afirmou trabalhar mais de 40 horas e 63% declarou não ter qualquer tipo de compensação pelo trabalho extraordinário.

A maioria dos jornalistas já pensou abandonar a profissão e diz-se insatisfeita com as suas condições laborais. Entretanto, 60% afirmou que voltaria a escolher a profissão de jornalista. Porquê?

Mais de metade (57%) julgava provável perder o emprego em breve e, se em situação de desemprego, apenas 10% pensava conseguir voltar ao jornalismo em menos de 12 meses. A maioria (64%) já tinha pensado abandonar a profissão. Considerados vários elementos relacionados ao trabalho, em nenhum deles houve uma taxa maioritária de jornalistas a dizer-se satisfeita. Entretanto, 60% afirmou que voltaria a escolher a profissão de jornalista. Porquê?

Alguma da perplexidade inicial com a possibilidade da escolha repetida aumenta se consideradas algumas antecipações dos jornalistas: 71% não concordava com a afirmação de que no futuro a profissão seria mais satisfatória e compensadora em termos pessoais, 84% acreditava que a remuneração e regalias iriam diminuir para a maioria, 57% que a atividade seria mais estressante do que qualquer outra profissão liberal e 89% que o trabalho seria mais precário e incerto.

Antes de continuar, é necessário sublinhar que os dados de 2016 são recuperados por causa da elevada quantidade de participantes e de temáticas abordadas no estudo. Entretanto, investigações mais recentes, como as divulgadas em 2020/2021 pelo Sindicato dos Jornalistas e na revista Comunicação e Sociedade, apontam que a degradação das condições de trabalho de jornalistas tem aumentado. Com a pandemia de covid-19 a situação terá piorado por causa de fatores como a exposição a riscos para a saúde ou o aumento dos ritmos e horários de trabalho, que não foi acompanhado por crescimento significativo dos salários ou dos vínculos laborais.

É também de frisar que os números não refletem toda a complexidade das vidas, prazeres e sofrimentos dos jornalistas. Além disso, muitos dos estudos realizados em Portugal não abordam, ou não o têm feito muito detalhadamente (não se trata de afirmar que são de pouca qualidade), importantes temáticas, como:  as relações entre trabalho e saúde (física e mental); do trabalho com a esfera privada (influência sobre os tempos de descanso e lazer, sobre as dinâmicas familiares, etc.); e o trabalho e carreira na conexão com diversos marcadores sociais (entre outros, a etnia e área de residência de jornalistas). Afinal, a precariedade, as dimensões e modos de lidar com ela, não está limitada à remuneração e ao vínculo contratual.

A normalização

Há algumas semanas, ao desabafar com um amigo sobre as desanimadoras respostas na procura de trabalho, recebi em troca uma pequena lista de problemas no jornalismo. Cansado, disse já saber de tudo do que falava, afinal sou jornalista e a minha investigação de doutoramento também foi sobre precariedade. Ainda assim, julgava que seria mais fácil fazer estágio profissional, que me parecia a melhor hipótese de trabalho estável e remunerado. Rimos do absurdo. Então porque continuas à procura?, questionou. Porque gosto, respondi simplesmente. Continuamo-nos a rir da desgraça.

É claro que a odisseia está relacionada com a necessidade de pagar contas e, entre outros aspetos, aos recursos que permitiriam a entrada noutras áreas de atividade. Ainda assim, uma das principais razões que me leva a insistir é o envolvimento com a profissão – elemento que, dependendo de como o compreendemos e com ele lidamos, pode ser muito problemático. Compartilhado por jornalistas que, apesar de todas as dificuldades e insatisfações, voltariam a escolher a profissão, acredito que o gosto ou prazer pela atividade tende a contribuir para uma normalização da precariedade.

Normalização e não necessariamente naturalização. A diferença é importante: com a segunda remete-se para a noção, mais ou menos consciente, de que as condições não dependem sempre de ações e relações sociais – a vida segue o seu curso natural de sempre. Com a primeira são percebidos causas e efeitos, mas, por quaisquer que sejam os motivos, vão deixando de surpreender, de serem percebidos como extraordinários e até passíveis de mudança – vida segue dentro da normalidade possível.

No jornalismo, essa normalização incide sobre, por exemplo, a quase ininterrupta disponibilidade para o trabalho ou a grande e crescente diversificação de saberes técnicos e acumulação de funções: as chefias exigem que jornalistas, principalmente os mais novos, consigam escrever, gravar podcasts, fazer multimédia, gestão de redes sociais, e assim por diante.

A normalização da precariedade incide sobre a quase ininterrupta disponibilidade para o trabalho e a crescente diversificação de saberes técnicos. Quanto mais elevados os ganhos simbólicos, maior a tendência para se tolerar os insuficientes ganhos materiais.

O que tem o ‘gosto’ ou prazer pela profissão a ver com isso? Quanto mais elevados os ganhos simbólicos, maior a tendência para, na falta de melhor palavra, se tolerar os insuficientes ganhos materiais. Nesse sentido, o prazer é também pelo trabalho, que permite o desenvolver de competências pessoais, o transitar por diversas realidades, o contacto com pessoas e temas variados, a partilha do espaço e tempo com colegas que têm interesses e que atravessarão dificuldades semelhantes, criando-se um espírito parecido com o familiar, e a participação mais direta em eventos socialmente relevantes.

Entretanto, julgo que é o envolvimento com alguns dos fundamentos da profissão – servir como um dos pilares das democracias, fortalecendo a opinião pública e incentivando a participação cívica – que mais fortemente contribui para a normalização da precariedade laboral entre os jornalistas.

Na sua tese de doutoramento, José Carlos Camponez refere que uma das principais dimensões a ter em conta quando pensamos em jornalistas (coletividade) é a de uma certa sacralidade, que “pode encontrar-se em qualidades profissionais como o sacrifício pessoal, a disponibilidade permanente, o altruísmo e a prestação de um serviço de interesse público”. A maioria das entrevistas que fiz ao longo da minha investigação para o doutoramento aponta para isso. Dou exemplos, todos com nomes fictícios.

Ana tinha saído da profissão há pouco tempo. Questionada sobre quais os maiores prazeres, emociona-se e soluça trabalhos com populações socioeconomicamente mais vulneráveis. Conclui dizendo que “essa função social”, a de serviço público, “é a coisa mais linda do mundo. O que realmente me dava vontade de sair para trabalhar, porque tudo o resto era muito difícil”. Emanuel, com experiência em órgãos de comunicação social de diferentes estados do Brasil, ponderava: “jornalismo é como o sacerdócio, talvez, ele exige alguns sacrifícios da pessoa que realmente tem a vocação, que realmente quer se dedicar”.

Abuso da citação e recupero a fala de Adriano, jornalista com mais de vinte anos de experiência profissional: “acho que isso é opção de vida. Ou você é ou você não é. Eu não consigo ser jornalista pela metade. Eu sempre gostei de televisão, desde o início. Então, assim, para fazer televisão... não dá para fazer meia boca. Televisão... você... é um escravo dela. […] eu tive já úlcera, gastrite... numa determinada televisão caí no banheiro com uma dor forte, fui internado com suspeita de aneurisma. […] durante muitos anos eu tinha um final de semana livre para a família. Durante muitos anos eu chegava [à empresa] cinco da manhã... saía às três da tarde. Quando você volta, acha que consegue fazer mais alguma coisa? Você está tremendo, estressado, morto. Toma banho, come alguma coisa e só quer... aí não pode nem dormir, porque precisa ler, precisa se informar, precisa ver todos os telejornais da noite para amanhã às cinco da manhã estar acordado [risos] de novo no batente. Você não tem vida pessoal. Não tem, esqueça”.

Bárbara, jornalista pós-graduada com mais de 15 anos de jornalismo, saiu da profissão devido à precariedade: tinha cargo e salário (muitas vezes atrasado) equivalente ao de jornalistas recém-licenciados. Apesar disso, dizia: “Eu sempre fiz muito além do que era esperado de mim. Fazia o que tinha condição de fazer, porque acreditava que era certo fazer, e porque... enfim, me dava prazer de fazer. Quando eu via um trabalho terminado... é uma coisa... eu sinto falta de estar na redação... sinto, não vou mentir”.

Condicionantes da organização coletiva dos jornalistas

Para ser mais preciso, não julgo que seja o envolvimento com os ideais da profissão que contribui para a normalização da precariedade. São os modos como ele tende a ser cultivado: sobre a pressuposição do sacrifício daqueles – profissionais – que teriam vocação para o serviço à população. Além disso, como já apontou José Nuno Santos, “a precariedade não corresponde a um elemento estranho às relações de trabalho nos meios de comunicação social em Portugal”. Tampouco o será, apesar das diferenças de cada contexto, em outras geografias.

Volto à minha investigação: dizia Caio, ainda estagiário, que “por ser uma situação já tão desgastada, tão repetitiva, tão cíclica... a gente entende como ciclo normal do jornalismo, no Brasil. Ao ponto de a minha experiência ser muito parecida com a dele [colega jornalista em cargo de chefia]. E com a diferença de, sei lá, 20 anos de profissão. Então meio que a gente se lamenta muito, meio que comenta e tal, mas...”.

Por essa perspetiva, se expandirmos o olhar para lá da geografia e do presente, na normalização da precariedade pesa também (entre outras eventuais dimensões) o insistente e naturalizado recurso à palavra ‘crise’. Concordo com Manuel Carvalho da Silva, que em entrevista ao Setenta e Quatro avaliava como “demolidora” a institucionalização daquela palavra, pois com ela “não é preciso justificação para impor cortes de direitos, para limitar condições de acesso ao trabalho, etc. Basta invocar a palavra”. No caso do jornalismo, é demolidora também porque contribui para preocupantes efeitos sobre valores e práticas profissionais.

Cabe perguntar: que jornalismo sobrevive da cronometrada quantidade de notícias a produzir e visualizações a conquistar em cada dia e hora? Que jornalista, enquanto figura profissional idealizada? Que jornalistas, enquanto coletivo constituído por sujeitos atravessados por diferentes marcadores (etnia, classe, género etc.) e papéis sociais (de parentalidade, conjugalidade, atividade política ou associativa etc.)?

Não tenho muitas respostas, mas algumas pistas, propostas de pontos onde tocar, que podem ser importantes para se aprofundar a reflexão. Uma delas é o baixo índice de organização coletiva da categoria na luta por melhorias laborais-profissionais. As taxas de sindicalização são minoritárias em diversos países. Na já citada investigação de 2016, apenas 25% dos/as jornalistas em Portugal estavam sindicalizados. No Brasil, a realidade que estudei mais aprofundadamente, nenhuma das investigações nas últimas décadas (pelo menos as que conheço) apontam para percentagem próxima dos 50%. Qual a explicação?

Há alguns anos, Manoel Moreira propunha na sua investigação que estes dados estavam relacionados, pelo menos no Brasil, à construção de identidade profissional: dela não faria parte o envolvimento em atividades associativas (incluída a sindical). Isto, propunha o autor, que pode parecer paradoxal devido à participação do jornalismo em “processos históricos de mobilização e participação política das diversas categorias de trabalhadores, é na verdade resultado de uma opção consciente, baseada numa visão identitária que coloca o jornalista como um intelectual, distante, portanto, da realidade plena de dificuldades e de lutas que compõem o universo das demais categorias”.

As taxas de sindicalização são minoritárias em diversos países. Em 2016, penas 25% dos/as jornalistas em Portugal estavam sindicalizados.

Concordando que os processos de construção identitária são importantes sobre essa e outras questões, não concordo por inteiro com a afirmação. Chamo atenção para dois pontos que, nem sempre destacados, podem contribuir para particularizações poucos produtivas.

Os baixos níveis de sindicalização não se verificam apenas entre jornalistas (seja em Portugal ou no Brasil), sendo, pelo contrário, frequentes em diversas áreas de atividade. Trata-se, portanto, de uma problemática mais abrangente que, tendo especificidades em função de diversas variáveis, diz também respeito à divisão e organização social do trabalho. Sendo verdade que a associação depende de diversos aspetos, inclusive, em última instância, da vontade individual, é importante ter em conta os elementos que condicionam essa ‘escolha’ – por exemplo, o tempo disponível para conhecer e participar em atividades associativas.

Elaine (regressamos à minha investigação) estava sindicalizada quando a entrevistei e, à semelhança da maioria, considerava (apesar das críticas) fundamental a atuação dos sindicatos. Lamentava, no entanto, o efetivo baixo envolvimento coletivo, o seu e o de colegas, fosse ou não através do sindicalismo. Questionada sobre qual o principal motivo, respondeu: “hoje, infelizmente, a grande preocupação do jornalista é manter o emprego... e ter sanidade [risos] para conseguir estar neste emprego”. “Você tem pouco tempo para cuidar de si... e menos tempo ainda para se engajar em causas de melhoria da categoria”, concluiu.

O tema é muito mais complexo do que aqui exposto, mas creio que para pensar nos processos e estruturas que alimentam a existência de uma precariedade multifacetada, transversal à maioria das populações (mas com efeitos e pesos diversos entre e nas diferentes categorias), é fundamental tentar escapar a explicações voluntaristas.

Compreendo os discursos que, insurgentes contra as péssimas condições de trabalho de jornalistas, sinalizam a importância de contra elas lutar para fortalecer a qualidade das produções, quer dizer, dos contributos para uma sociedade mais informada e democrática, mas nem por isso me deixam de causar desconforto. A justificação é legítima, atenção. Mas porquê a necessidade de destacarmos a importância ou utilidade social da atividade quando defendemos o fim da exploração? Que exclusões (de corpos e atividades) ou concessões o argumento pressupõe? Serão necessárias? Porquê? Com que efeitos? Até quando?

Já me perguntaram algumas vezes se me arrependo de não ter aceitado a proposta de estágio, única até ao momento de trabalho permanente e remunerado. Respondi sempre que não. A minha recusa não foi baseada nas perspetivas de baixa remuneração e incessante disponibilidade para trabalhar, mas na perceção da existência de um ambiente tóxico, de baixa autonomia profissional (editorial) e pessoal (teria de conviver com valores e posições com que de todo não me revejo e que também influenciam as decisões editoriais).

Ainda assim, a negação do arrependimento não é verdade por inteiro. Agora que escrevo, penso que talvez sirva mais como defesa, como estímulo para continuar à procura de um outro futuro. E isto sabendo que à partida não é fácil definir-se um limite minimamente digno, tanto em termos salariais como de autonomia profissional dentro de uma redação. Talvez a minha posição perante aquela proposta de estágio fosse outra se tivesse chegado depois das várias respostas entretanto (não) recebidas.