Manuel Carvalho da Silva

Manuel Carvalho da Silva foi líder da CGTP durante 25 anos | Mário Cruz/LUSA

Manuel Carvalho da Silva: "O neoliberalismo apresenta coisas velhas como novas por negar a memória"

No mês do Dia do Trabalhador, o antigo secretário-geral da CGTP diz só ser possível apresentar a precariedade como algo inovador por desconhecimento do passado. E deixa críticas aos sindicatos a pensar nos combates do futuro: perderam qualidade, precisam de se reinventar e de formar melhores quadros. Mas, sobretudo, precisam de estar onde estão os trabalhadores.

Entrevista
5 Maio 2022

Chegou a ser candidato à Presidência da República, mas foi na luta sindical que deixou marcas, 13 anos como coordenador e outros 12 como secretário-geral da CGTP. Manuel Carvalho da Silva dedica-se hoje à Sociologia do Trabalho. Está ligado ao Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e é presidente do Laboratório Colaborativo para o Trabalho, Emprego e Proteção Social (Colabor). 

O ex-sindicalista falou com o Setenta e Quatro sobre os muitos perigos e os muitos desafios que o mundo do trabalho enfrenta nos dias que correm. Não foge ao problema do crescente descrédito dos sindicatos junto dos trabalhadores, que diz precisarem  de se reinventar e qualificar os seus quadros. E não deixa de apontar o dedo ao neoliberalismo pela estratégia encapotada de apagamento da memória.

Dependemos de quem nos lê. Contribui aqui. 

Há uma quebra acentuada – de 45,5% – do número de trabalhadores sindicalizados portugueses desde 1978 até 2016. A que se deve esta quebra?

Deve-se a uma multiplicidade imensa de fatores, o primeiro é o avanço daquilo a que comummente chamamos de neoliberalismo, na sua agenda e nas suas práticas. Agenda essa conjugada com alterações na organização e na prestação do trabalho – desde logo na organização empresarial, na estruturação dos poderes empresariais à escala de um país ou à escala global. Há ainda um terceiro fator: a relação demolidora entre o individualismo e o consumo. 

E, no meio disto, a emergência da financeirização da economia, que também gerou a ilusão de que era possível aquilo que era propagandeado: deixar de dar centralidade ao trabalho para dar centralidade ao consumo. Essas dinâmicas desfocaram o lugar do trabalho e dos seus valores que estruturam a vida das pessoas, como é o controlo sobre o tempo, sobre o salário, sobre os direitos sociais.

"Não vamos ter as condições de desenvolvimento nos próximos 50 anos que tivemos nos últimos 50. Acabou. Ainda não assentámos para pensar nisso."

E a precarização do trabalho?

No meio disto, a precarização do trabalho tem sido um instrumento brutal, inserido neste processo de globalização. Passou, no decorrer da década de 1980 e no início da década de 1990, a falar-se muito da segmentação do mercado de trabalho. 

Do ponto de vista da organização das sociedades, existe sempre um conjunto de trabalhadores que estão em condições de serem mais explorados. Isso gerou uma espiral regressiva. A institucionalização da palavra “crise” é demolidora. Porque não é preciso justificação para impor cortes de direitos, para limitar condições de acesso ao trabalho, etc. Basta invocar a palavra crise.

O conceito de crise normalizou-se.

Na preparação da minha tese de doutoramento, usei muito a expressão “espiral regressiva”, o que marca o mundo atual em termos das novas dinâmicas geopolíticas e geoestratégicas. Países que há 30 anos se considerava que não pesavam (o caso da China é o mais relevante) estão aí para influenciarem e disputarem a liderança do mundo. Houve muitos defensores da globalização, dizendo que trouxe avanços. Não, o que trouxe avanço foi um conjunto de dinâmicas que nem sempre caem dentro do conceito chamado globalização. 

Estas novas realidades são favorecidas pela existência de uma agenda social onde a harmonização do retrocesso tem um peso muito importante. Nós, europeus, temos um quadro de direitos laborais e sociais mais estruturados, também porque andámos a explorar os outros. Mas não vamos ter as condições de desenvolvimento nos próximos 50 anos que tivemos nos últimos 50. Acabou. Ainda não assentámos para pensar nisso. 

Às dinâmicas laborais vindas da China, da Índia ou da África do Sul não lhes surge como primeira ou segunda prioridade estarem a defender os direitos laborais e sociais dos europeus. Este quadro à escala global não favorece as dinâmicas dos países mais avançados. E isso também se reflete em Portugal. Há sempre, em algum sítio, condições para explorar mais.

A deslocalização das fábricas.

A deslocalização interna, externa.  Já agora, conto-lhe uma história de final dos anos 1980, início dos anos 1990. Era muito mencionada, como caminho a tomar por parte das empresas, a criação de uma empresa-mãe e depois várias outras, com administrações próprias. O caso dos Caminhos de Ferro foi gritante, mas houve muitos outros. Um dia, estava eu em Setúbal, já não me recordo de qual mas era uma daquelas grandes empresas, e aparece-me um trabalhador a dizer “Manuel, tenho aqui uma coisa que te quero mostrar”. Era um indivíduo da minha geração e só tinha o curso da Escola Industrial. Foi ver a estrutura inicial da empresa e quanto gastava com a administração e, depois, pegou na estrutura nova, que tinha multiplicado a administração por quatro ou cinco, e havia um incremento da subcontratação. 

É curioso, porque ele fez as contas com todo o cuidado e o aumento dos custos com funções administrativas era, no valor total, igual à diferença de salário que resultava da subcontratação. Ou seja, o que a empresa ganhava com a subcontratação, não pagando os salários contratuais, era exatamente o valor com que depois pagava à multiplicação de cargos de administração.

A linha da precariedade sobe e a da sindicalização desce. Como é que o sindicalismo falhou na antecipação destes novos problemas e na sua travagem?

O sindicalismo falhou na exata medida em que falhou a sociedade toda. Nem mais, nem menos. E, embora esteja a defender uma afirmação em causa própria, porque fui sindicalista, não é essa a questão. 

Desde o início desta precarização do trabalho – que na Europa começou no final dos anos 1970 e no início dos anos 1980, assim como cá, se bem que cá tínhamos um ligeiro atraso – se insistia em culpabilizar os sindicatos pela incapacidade de resposta a estas novas realidades. Não é difícil perceber que os sindicatos não perceberam as dinâmicas todas. Não perceberam porque os sindicatos são os trabalhadores. Mas procuram encontrar respostas.

Que respostas procuram encontrar?

Com lutas dentro de empresas para a passagem de precários a trabalhadores permanentes.

Isso é já remediar o problema. Não é antecipá-lo.

Não foi possível. Os instrumentos da precarização do trabalho vinham da organização empresarial e da organização da economia, que vinham da agenda política. Ou seja, foram feitas leis que facilitaram essa precarização. A argumentação do trabalho sazonal tem validade, mas depois utilizou-se esse facto para instituir a possibilidade de relações precárias, que ia além da sazonalidade. 

Uma ideia que desde o início foi colocada, e que me fartei de referir, foi: se existe um posto de trabalho que tem continuidade – hoje está lá um trabalhador, despedem-no e depois colocam lá outro –, então não se pode invocar volatilidade das formas de prestação de trabalho. Estabeleça-se um princípio: enquanto o posto de trabalho existir, o trabalhador deve ter direito ao vínculo. Há que não confundir instrumentos de trabalho com vínculos de trabalho. Podemos ter um condutor da Uber a fazer tarefas – trabalha umas horas para aqui, outras para ali – mas as horas que trabalha devem ser ancoradas num vínculo de trabalho. Ser mais ou menos presencial não altera o vínculo. 

Os sindicatos tentaram. Mas estou a lembrar-me também de êxitos significativos. Por exemplo, a ida de [Aníbal] Cavaco Silva enquanto primeiro-ministro à fábrica da Grundig em 1990, quando o complexo industrial fez 25 anos em Portugal, e de se ter conseguido uma dinâmica reivindicativa forte dentro da empresa, que 400 e tal trabalhadores precários passassem a efetivos. 

Mas a resposta caso a caso era muito difícil. Houve também ensaios para a criação de estruturas de desempregados. O problema é do modelo de sociedade. A precariedade surgiu já institucionalizada, apresentada como solução, começaram a criar-se figuras contratuais novas. O que proliferou em Portugal foi um mercado de empresas de praça de jornas, de aluguer de mão-de-obra.

"Sempre que foi preciso um impulso para recuperar de grandes descalabros da sociedade, os sindicatos foram valorizados, sempre."

Mas os sindicatos podem pressionar os poderes instituídos com ideias e propostas no sentido de contrariar esse modelo.

Claro. Mas é preciso que a sociedade esteja disponível para fazer funcionar as intermediações. Atualmente, não há instrumento mais forte de promoção da precariedade do que a invocação das crises, de que falávamos há pouco. É aquela bela imagem que Belmiro de Azevedo utilizava e que o povo repetia: “mais vale pouco do que nenhum”. 

Vai fazer dois anos em julho que a OIT [Organização Internacional do Trabalho] pôs cá fora – até fomos nós [Colabor] que fizemos a apresentação em Portugal – um estudo sobre o pagamento do trabalho remoto. O trabalho remoto, que inclui muito trabalho qualificado, era pago, à escala global, a pouco mais de dois dólares por hora. Mas há sindicatos que vão resolver isto isoladamente? Não há. O problema da relação agenda social/ agenda política e o papel dos sindicatos para influenciarem a política e a economia, isso, sim, dá que pensar. 

Mas, como disse há pouco, a sociedade está a desarmar as instituições de intermediação, que é um dos atos que mais está a corroer a democracia à escala global. Sobre um assunto qualquer, põe-se um especialista de ocasião qualquer a pronunciar-se em vez de pedir a uma estrutura instituída, que tem experiência das coisas. Temos o caso de [Donald] Trump, que, à distância de um clique, se pronunciava a ter em conta tanto a opinião do especialista mais cotado de uma instituição como a opinião do indivíduo que não sabia nada daquilo e se estava a pronunciar apenas por objetivos imediatos de ganho pessoal. 

Na segunda metade do século XX, não houve nenhum instrumento tão importante para os avanços na distribuição da riqueza e para a igualdade como a contratação coletiva. Em Portugal foi bem evidente. Se houve uma conjugação de opiniões para estilhaçar a contratação coletiva, o que é que querem que os sindicatos possam fazer no combate à precariedade?

O aumento da precariedade e o consequente aumento dos níveis de pobreza não devia ser um elemento agregador, de união entre os trabalhadores?

Essa é uma pergunta de resposta muito difícil.

As pessoas deixaram de acreditar nos sindicatos?

Há um desgaste. Quando me dizem para identificar fatores centrais para a recuperação da força dos sindicatos, enuncio em regra três, que respondem em parte à sua questão. Primeiro fator: repor memória. Os sindicatos têm duzentos anos de vida, tiveram períodos mais altos e períodos mais baixos. 

Depois da morte do José Manuel Tengarrinha, saiu um livro seu [intitulado Lutas Laborais e Formação da Classe Operária Portuguesa, 2021, ed. Centro de História, Universidade Nova de Lisboa] para o qual escrevi o prefácio. A análise do Tengarrinha, num período já na segunda parte do século XIX, mostrava – de uma forma muito evidente – que a influência do mundo do proletariado na sociedade era tão baixa que os estrategas já nem a consideravam para as decisões. Depois recuperaram. Em Portugal, como noutros países, houve sempre altos e baixos. 

Outra evidência: sempre que foi preciso um impulso para recuperar de grandes descalabros da sociedade, os sindicatos foram valorizados, sempre. Foram os empresários, os progressistas, quem à saída da I Guerra Mundial fizeram pressão para a criação da Organização Internacional do Trabalho. Perceberam que a criação da OIT era uma forma de travar os desequilíbrios na sociedade e os perigos para o desencadear sucessivo de guerras. Depois da II Guerra Mundial, a recém-criada Comunidade Europeia do Carvão e do Aço , que deu origem ao que chamamos hoje de União Europeia, tinha seis comissários, e um era indigitado pelos sindicatos. Porque foi preciso mobilizar o mundo do trabalho para a construção da Europa.

Falava da importância da memória para recuperar a força dos sindicatos.

O movimento sindical deu contributos absolutamente extraordinários para a transformação da sociedade. O estudo do Serviço Nacional de Saúde pode ser pegado por vários campos, inclusive pela evolução das profissões. A criação e o desenvolvimento do Sindicato dos Enfermeiros é de uma evidência absoluta. O SNS foi dando passos conforme as profissões foram ganhando importância, dignidade, e se tornavam mais autorresponsabilizantes. É por isso que é bom pensar hoje nas maldades que estão a ser feitas ao SNS ou à Escola Pública, por pressão sobre os seus profissionais. É dramático.

"Só é possível convencer os jovens de que é assim, é a precariedade, porque eles não têm memória. A precariedade já foi isso tudo."

Como referia, repor memória. Uma das principais agendas políticas do neoliberalismo tem sido a da negação da memória, em particular a recente. Só é possível apresentar muitas coisas como inovadoras por desconhecimento do passado. A precariedade não é nova, já foi absoluta. Quando eu era criança e adolescente, o trabalho era na sua generalidade precário. Costumava dizer-se na minha aldeia que ir para a função pública ou para a CP era o ideal: “ganha-se pouco mas é limpinho”. Era certinho e limpinho. 

Lembro-me de ter entrevistado no final dos anos 1990 um velho operário da Covilhã, que tinha chegado a encarregado. Tinha 91 anos. Ele descreveu-me os 24 empregos que tinha tido entre os 13 e os 21 anos. Só é possível convencer os jovens de que é assim, é a precariedade, porque eles não têm memória. A precariedade já foi isso tudo.

E qual é para si o segundo fator para que o sindicalismo se revitalize?

Voltar a dar muita centralidade ao trabalho. É necessário repor a discussão sobre a importância das profissões, das carreiras profissionais, dos perfis profissionais. Acho curioso: tem-se andado a destruir esta ideia e agora, nos últimos meses, há uma grande consultora que, com outras entidades, criou um curso que vai ao encontro do facto de os jovens terem afinal uma grande expectativa nas carreiras. Têm e hão de ter. Como vão recuperar? Não sei, não sou bruxo. Mas passará inevitavelmente pela clarificação de profissões, pelo lugar ao saber fazer.

O terceiro fator é a formação de quadros. E aí os sindicatos, por razões múltiplas, perderam qualidade. É difícil estar a dizer isto porque podem acusar-me de achar que eu é que era bom e os outros são maus – não é isso. Os sindicatos, por razões objetivas, perderam qualidade. E têm um outro problema: as mudanças no plano tecnológico, da estruturação da economia, de funcionamento da finança, etc, acontecem com uma rapidez tão grande que os sindicatos não têm aparelhos suficientes para responder. E como estão desvalorizados na sociedade, é um problema.

Há uma quarta razão que está associada a estas três: a construção de identidades coletivas. Há aqui uma parte – tal como colocou na sua pergunta – em que os sindicatos têm e devem andar à procura dos novos problemas… por isso é que eles precisam de muito mais qualificação. Os quadros têm de ser qualificados desde o recrutamento.

Estamos a viver uma mudança de paradigma, não podemos voltar ao que éramos. Os jovens são cada vez mais patrões de si próprios, pagos à peça.

Isso é a fragmentação do trabalho.

Aos jovens a ideia de identidade coletiva ainda diz alguma coisa?

Sendo o ser humano um ser social, se não significar e se não se encontrar solução, então o problema é muito mais grave. E corremo-lo. As sociedades humanas podem passar por uma crise brutal. O que eu relevaria é: o que é o Estado senão um compromisso de identidade coletiva?

Estamos a falar no descrédito do Estado e da democracia? Nas abstenções de voto que chegam a ultrapassar os 50%?

Claro. As pessoas não encontram justificação para participarem e defenderem o coletivo. É muito comum ouvir-se dizer hoje em dia que a mudança que está aí obriga a uma busca de valores. Dizem que o problema é encontrar os valores. Sim, é necessário identificar os valores. Mas não chega. É preciso representações coletivas, é preciso compromissos interpretados por coletivos, que sejam responsabilizáveis perante a sociedade. 

Há poucos anos dizia-se que o Estado era uma instituição em desaparecimento. E o que é que a vida mostrou? Aumentou o número de Estados a nível mundial – a instituição está numa tensão enorme, mas está a aumentar de importância, e não o contrário.

Voltemos à realidade que alegam já não existir. O Partido Comunista Português, por exemplo, é muitas vezes acusado disso mesmo: de ter ficado historicamente parado no tempo. Como lê o momento em que a esquerda se encontra, nomeadamente a CGTP?

No movimento sindical usa-se sempre esta luzinha: os sindicatos têm de estar onde estão os trabalhadores.

E estão ou não estão, neste momento?

É difícil para mim estar a pronunciar-me porque posso ser mal interpretado.

Pode pronunciar-se como sociólogo especializado nas questões do trabalho.

Posso pronunciar-me como ex-sindicalista, continuo a pagar as minhas quotas. Dou e darei sempre muita atenção ao movimento sindical. Falou-me do PCP. É complicado perceber como é que o Partido Comunista há de retomar posições de princípio – que acho que são importantes e se têm demonstrado importantes ao longo das décadas –, se não encontra capacidade de nesta fase descer e interpretar de forma mais solidária com as massas (é preciso criatividade, com certeza que é), que estão a perceber outra coisa. 

Ou seja, o PCP não está a colocar-se ao nível das pessoas. Para haver soluções, é preciso estar onde estão os trabalhadores. E é curioso porque o Partido Comunista, durante o fascismo e em relação ao mundo do trabalho, uma coisa que defendeu e foi importantíssima neste país (algo que a Igreja a partir do final dos anos 1950 também fez) foi: não vamos criar novos sindicatos, vamos antes para dentro dos sindicatos, viver nas condições em que estão os trabalhadores e ajudar a transformar. 

Neste contexto da guerra, por exemplo, uma coisa que é evidente é que o PCP não foi capaz de se colocar ao nível da realidade imediata e ficou-se por princípios e por afirmações que, em muitos aspetos, até é capaz de ter razão. Isto é um problema: determina a vida das organizações. Pode matá-las.

"O PCP não está a colocar-se ao nível das pessoas. Para haver soluções, é preciso estar onde estão os trabalhadores. Neste contexto de guerra, o PCP não foi capaz de se colocar ao nível da realidade imediata."

Há lugar para nascerem novas estruturas sindicais?

Quando me falam de sindicalismo tradicional e de novo sindicalismo, costumo dizer: só conheço um sindicalismo, que é o tradicional. O que o sindicalismo sofreu ao longo dos anos foi imensas mutações. Houve alterações estratégicas e táticas. O sindicalismo começa por ser muito operário, mas foi-se alargando. Proliferaram as correntes sindicais. Já as universidades abandonaram não apenas o sindicalismo, abandonaram o trabalho. O que é um drama. E abandonaram a gestação, fazendo de conta que estão a tratar de gestão altamente avançada. Entregaram o estudo da organização do trabalho às lógicas da gestão financeirizada.  Mas hoje, felizmente, começa a haver muitos empresários a dizer: isto não pode ser, nós precisamos de especialistas de organização de trabalho.

Que relação faz do crescimento da extrema-direita com a insatisfação dos trabalhadores? Nas últimas eleições legislativas houve dirigentes sindicalistas da PSP a integrarem as listas do partido de extrema-direita.

E  do Sindicato dos Impostos. É a crise da democracia – e é bom termos noção de que é a crise da democracia. Há uns anos estava a invocar-se na Universidade de Coimbra o aniversário do movimento em que o Alberto Martins foi protagonista, quando os estudantes de Coimbra se dirigiram ao ministro e deu origem à crise [de 1969]. Estava a ouvir na rádio entrevistas a estudantes de hoje, em que lhes perguntavam porque é que não faziam o que fizeram nos anos 1960. Estávamos em 2011, 2012, na época das grandes manifestações. A dada altura, uma estudante de origem brasileira que vivia em Portugal desde os 12 anos disse: “mas se os governantes não dão atenção a manifestações de  200 mil pessoas, como é que vão responder a mim?” 

É a tal crise das intermediações, é preciso representações coletivas. O que se vê em França é isto. Porque é que as democracias estão aceleradamente a diminuir? Pela falta de respostas. Não vejo outra solução que não aquela que lhe disse há pouco: descer à realidade, viver com as pessoas os seus problemas, no estado em que elas estão, com um ancoradouro forte de princípios e de experiência histórica. 

A extrema-direita está a jogar em todos os tabuleiros – desde Moscovo a outras capitais, incluindo na Europa. E está a ganhar em todos os tabuleiros. Depois desta guerra [na Ucrânia], e ao contrário do que parece hoje, os países da UE não vão estar mais unidos. O projeto [europeu] não vai estar mais consistente. E nós, europeus, vamos estar mais dependentes, mais instrumentalizados, pelos Estados Unidos. E não estou a fazer qualquer apreciação sobre o que são os Estados Unidos, ninguém tem dúvida de que se trata da potência líder à escala mundial.

Não será já a potência cessante?

É onde quero chegar. Na passagem do século XIX para o século XX, a Inglaterra teve de ceder o seu lugar aos Estados Unidos. Mas foi tudo a Ocidente, sob uma determinada cultura. A mudança fez-se dentro da chamada civilização Ocidental. Agora, não vai ser. Não está a ser, porque a mudança já está em curso. Continuam com a apetência de dominar quando os outros estão a emergir – vai dar asneira. Os outros não vão abdicar do seu lugar e vêm com outras culturas. 

A mim arrepia-me pensar, por exemplo, nos meus netos que vão ter de lidar com lideranças com outras culturas, com outras visões do mundo – que não são melhores nem piores que as nossas, mas são diferentes. Nós vimos de muitos séculos a dizer que nós é que mandamos, nós é que comandamos, etc. Não tenho dúvidas que, depois desta guerra, a Europa estará menos capaz de ter um rumo, de se congregar. O facto de a Alemanha passar a ser uma força militar não é coisa pequena. O facto de o Reino Unido andar perdido com um governante que é ator de ocasião… tudo isto arrepia. 

E depois temos governantes – alguns são meus amigos – a fazer comparações entre a crise inflacionária dos anos 1980 com a crise inflacionária atual, quando uma tem origens totalmente distintas da outra. Ainda é muito cedo para se perceber quem é que vai perder e quem vai ganhar ao nível económico com a guerra. Há manipulações para aumentar os preços dos produtos que é uma coisa gritante. Ainda não foi afetado nenhum espaço de produção de petróleo. O petróleo está caro porque os mercados futuros colocam o petróleo caro.

Onde pode residir a esperança?

Não tenho dúvida de que os seres humanos hoje, e por consequência as gerações mais jovens, dispõem de instrumentos para o conhecimento e que estão mais despertos do que a minha geração.  Não tem comparação.  E não são menos solidários do que eram os da minha geração. Na minha geração, os que faziam algo eram uma minoria, uma minoria muito pequena. Houve dois fatores muito importantes na altura: a perceção rápida de que as coisas organizadas tinham mais força e a existência de utopias. Mas hoje existem outras utopias. 


"As universidades abandonaram não apenas o sindicalismo, abandonaram o trabalho. Entregaram o estudo da organização do trabalho às lógicas da gestão financeirizada."

Deixe-me falar também do fenómeno da Iniciativa Liberal (IL). Agora, por altura da Páscoa, dediquei-me a fazer uma série de visitas familiares, eu próprio tenho filhos de duas gerações. A minha filha tem 19 anos. O êxito que vejo na IL, e que se torna atrativo para muita juventude, foi ter conseguido construir um discurso que apresenta um passado à esquerda como uma velharia. Se for necessário até dizem: “isso foi importante, naqueles tempos; fizeram combates exemplares”. E depois, em relação aos chamados temas fraturantes, não se metem na discussão. Não significa que estejam de acordo, mas deram como adquirido. E acontece porquê? Precisamente porque os jovens já dão isso como adquirido.

Imagine que teria discursado no 1º de Maio deste ano.

Fiz 25 discursos no 1º de Maio.

O que diria às pessoas, incluindo o que poderia ter feito melhor enquanto foi secretário-geral da CGTP?

Devo dizer que me sinto um privilegiado pelo que vivi e, essencialmente, pelo que partilhei. Tive a sorte de integrar coletivos de grande qualidade, com apoios de pessoas muito importantes, como foi o caso do Manuel Cabrita, grande histórico do sindicalismo de antes do 25 de Abril, que trabalhou diretamente comigo durante 22 anos. 

A primeira coisa que diria à luz dos êxitos e fracassos daquilo que foi a minha ação seria no sentido de reforçar uma preocupação central: o sindicalista deve procurar ter a melhor preparação possível sobre o trabalho, ter conhecimento de cada problema que está a gerir e deve pensar no dia seguinte à luta. Deve ter uma maior preparação para viver com as pessoas os seus problemas. Reforcemos isto. Porque sinto que se estivesse um pouco mais preparado, era capaz de ter feito mais.