Investigador do Laboratório Colaborativo para o Trabalho, Emprego e Proteção Social - COLABOR, do Instituto Português de Relações Internacionais (IPRI) e membro do conselho editorial da editora Outro Modo. Interessa-se pela interseção entre teoria social, história imperial, tecnologia e globalização.

Professor de Relações Internacionais na Universidade Portucalense e investigador do Instituto Português de Relações Internacionais (IPRI). Interessa-se por diplomacia e política externa, segurança e defesa, globalização e governação global e pela União Europeia, com especial enfoque na Europa do Sul.

A colonização do espaço à boleia da guerra na Ucrânia

Testam-se novos armamentos, estratégias e táticas militares na guerra da Ucrânia. Como os satélites Starlink do multimilionário Elon Musk. Até que ponto as democracias liberais não são o produto de um interesse nacional que representa os interesses de empresas multinacionais? Se a Rússia atacasse o Starlink, seria considerado um ato hostil contra uma empresa privada ou contra os EUA?

Ensaio
23 Outubro 2022

O modo de se fazer a guerra está em permanente evolução e os campos de batalha sempre foram terrenos para se experimentarem inovações tecnológicas produzidas pela indústria militar privada. As guerras seguem lógicas políticas e económicas próprias e a guerra na Ucrânia não é exceção. Se olharmos com atenção, reparamos que o conflito ilumina uma arquitetura específica das relações entre empresas privadas e o poder estatal na condução do esforço bélico. 

Há três décadas, em 1991, a Guerra do Golfo mostrou ao mundo a relevância estratégica do espaço. Assistiu-se em direto na CNN aos mísseis balísticos norte-americanos, disparados de navios a centenas de quilómetros, a embaterem em alvos iraquianos. Pela primeira vez, o mundo viu a guerra em direto no ecrã.

No palco desta guerra, foram testadas as constelações de satélites lançadas no período da “guerra das estrelas” iniciada nos Estados Unidos sob a administração de Ronald Reagan, no princípio dos anos 1980, e que ameaçou desestabilizar a competição entre as duas superpotências. As redes de satélite entraram em combinação com os sistemas de computação no terreno, garantindo às tropas norte-americanas uma maior rapidez no abate de mísseis iraquianos de fabrico soviético, os Scud, com os seus mísseis Patriots.

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Hoje, a Ucrânia é palco de testes de novos armamentos, estratégias e táticas militares. Washington, Pequim, Taipé, Paris, Londres, todas as capitais olham com atenção para os resultados no terreno. O espaço não é exceção e o seu peso estratégico aumentou significativamente com esta guerra. Chegou a um patamar operacional determinante, em simultâneo com a entrada direta de empresas privadas norte-americanas no centro do teatro bélico.

Os interesses dos grandes grupos empresariais sempre estiveram ligados às projeções internacionais dos Estados, especialmente se forem grandes potências ou, como os EUA, a superpotência, cuja hegemonia se manifesta na imposição das regras e no controlo político-militar dos mercados. O mundo caminha para a multipolaridade, mas Washington ainda é a grande potência no sistema internacional. E tenta continuar a sê-lo por todos os meios ao seu dispor.

No entanto, existem mudanças contemporâneas na modalidade de ação destas grandes alianças entre potências hegemónicas e grupos empresariais. O papel de Elon Musk na guerra da Ucrânia é um símbolo desta transformação. Vale a pena relembrar uma pequena história.

Se a SpaceX serve a estratégia de interesses políticos dos EUA, o contrário também é verdade. Os interesses privados desta mesma empresa passam a ser encarados como interesses nacionais.

A 24 de julho de 2020, Elon Musk escreveu no Twitter que um segundo "pacote de estímulo [do governo dos EUA] não é do melhor interesse do povo". Alguém respondeu pouco depois: "Sabe o que é que não foi do melhor interesse das pessoas? O governo dos EUA organizar um golpe contra Evo Morales na Bolívia para que pudesse [Musk e a sua empresa Tesla] obter o lítio", essencial para as baterias dos carros elétricos da sua empresa. Musk replicou: "Faremos golpes a quem quisermos! Lidem com isso".

Esta história revela algumas pistas sobre a relação entre Musk e os governos dos EUA. Desde o início da guerra na Ucrânia que o CEO da Tesla tem disponibilizado gratuitamente a sua rede de satélites ao governo de Kiev e às forças armadas ucranianas. A sua empresa SpaceX, fundada em 2002, dispõe das tecnologias mais avançadas em lançadores de satélites e dos próprios satélites, os Starlink.

No dia em que Musk anunciou a sua entrada na guerra, o porta-voz do Pentágono afirmou em conferência de imprensa o intuito estritamente privado da ação de Elon Musk, reiterando que o Departamento de Defesa não fornecia apoio material ou logístico às forças armadas ucranianas. Ou seja, nessa altura tentava demonstrar que Washington não estava envolvida no teatro das operações bélicas, situação que mudou radicalmente desde aí: todas as semanas novos pacotes de centenas de milhões de dólares em armamento, a que chamam “ajuda humanitária”, são anunciados.

É, no entanto, de se sublinhar esta dupla dependência: se uma empresa privada como a SpaceX serve a estratégia de interesses dos EUA no teatro bélico da Ucrânia, o contrário também é verdade. Ou seja, os interesses privados desta mesma empresa passam a ser encarados como interesses nacionais, neste caso como interesses de segurança nacional, o mais relevante na política norte-americana. A saúde da SpaceX passa a depender de uma parte importante da política externa norte-americana.    

Elon Musk ajudou o presidente ucraniano, Volodymir Zelensky, a inundar as redes sociais com propaganda e a transmitir os seus discursos em plataformas como a Zoom. Fê-lo através das conexões via satélite, permitindo o acesso à Internet de forma estável, segura e, sobretudo, independente de outras infraestruturas – as telecomunicações ucranianas foram dos primeiros alvos mal começou a invasão russa.

Até outubro deste ano, o esforço da SpaceX na Ucrânia correspondeu a cerca de 80 milhões de dólares.

A SpaceX garantiu ainda a manutenção das comunicações dos militares ucranianos nas zonas de combate, contendo, assim, o impacto dos constantes ataques das forças armadas russas contra as infraestruturas de comunicação terrestres. Durante o cerco, as comunicações dentro e fora do complexo industrial Azovstal, em Mariupol, apenas foram possíveis com a constelação dos Starlink, que atualmente conta com cerca de 2200 satélites em órbita.

Além disso, Musk distribuiu gratuitamente (os números exatos não são conhecidos, estimativas apontam para 15.000) kits de Internet da SpaceX, com acesso ao espaço virtual via satélite, de fácil transporte e configuração. Evitou o uso de infraestruturas expostas aos ataques militares, ou já destruídas pelas forças armadas russas. Até outubro deste ano, o esforço desta empresa na Ucrânia correspondeu a cerca de 80 milhões de dólares. Neste cálculo não é contabilizada a normal atividade da SpaceX, como os custos de manutenção da sua infraestrutura, ainda que se tenha expandido desde o início da guerra.

Corrida ao espaço a todo o vapor

Entre 2016 e 2021, os satélites em órbita triplicaram e a maioria desta colonização do espaço pertence a atividades da SpaceX. Esta empresa dispõe de tecnologia – o lançador Falcon 9 – capaz de levar a cabo um lançamento por semana, posicionando no espaço cerca de 60 satélites por lançamento. Nos últimos três anos, Musk lançou para o espaço mais de 2500 satélites, dos quais 2200 estão atualmente ativos.

Este número já corresponde a mais de metade da constelação total de 4300 satélites que a SpaceX se propôs lançar nos próximos três anos, até 2025, segundo o plano que entregou à agência norte-americana Federal Communication Authority. Passado este período, a empresa do magnata sul-africano, naturalizado norte-americano, dispõe ainda de duas outras opções: 1) lançar mais dez mil satélites e 2) disparar um total de 42 mil até 2030.

Como míssil lançador reutilizável, a inovação representada pelo Falcon 9 é disruptiva. Esta tecnologia é essencial e não existe nenhuma outra empresa norte-americana ou Estado no sistema internacional a dispor dela. Assim, e além de exercer atividade de constelação de satélites própria, a empresa também opera no mercado dos serviços de lançamento de satélites, detendo um monopólio na ocupação privada do espaço.

Outra grande inovação dos satélites da SpaceX é a comunicação bidirecional. Esta tecnologia deriva de chips integrados nos terminais Starlink, o que permite uma fácil e rápida conexão, podendo assim transportar para o espaço as comunicações necessárias para a Internet. Mais de 90% do fluxo informativo da Internet circula através de cabos submarinos e terrestres, um quase monopólio que os Estados Unidos construíram ao longo das últimas décadas, como Edward Snowden denunciou em 2014.

A colonização do espaço por um grupo privado, mas também segundo coordenadas geopolíticas, desempenha um papel central nos cenários geopolíticos atuais. A Duma, a câmara baixa da Assembleia Federal Russa, está a considerar aprovar uma lei que proíba o uso e as transmissões dos satélites Starlink no território da Federação Russa. A rede de Musk, ligada aos Estados Unidos, põe em causa o controlo estatal russo e é encarada como ameaça.

Além disso, o representante russo no grupo de trabalho da Nações Unidas para a redução de ameaças espaciais condenou recentemente a ação da SpaceX no teatro de guerra da Ucrânia. Sublinhou que “estas infraestruturas espaciais podem transformar-se num alvo legítimo para retaliação”. O governo chinês tem uma posição análoga. Num artigo publicado na revista chinesa Modern Technology Defence, é feita referência explícita à necessidade de melhorar e desenvolver métodos – hard and soft – para a destruição da constelação de satélites Starlink, enquadrados como perigo para a segurança nacional.

A colonização do espaço por um grupo privado desempenha um papel central nos cenários geopolíticos atuais.

As hostilidades no espaço já estão abertas. Em novembro de 2021, as forças armadas russas destruíram um satélite seu, o Cosmos 1408, lançado ainda durante a época soviética, em 1982, e cujos detritos podiam pôr em causa a rede de satélites de Musk. Este ato suscitou protestos de outras potências espaciais, questionando o porquê desta ação. Não se tratava de um teste, mas de um sinal, já que este satélite foi destruído na mesma faixa orbital onde operam os satélites Starlink. A Rússia fê-lo num momento em que a tensão com Washington em torno da Ucrânia já estava alta e depois de ter anunciado o regresso a programas militares de desenvolvimento no espaço. Só quatro países possuem estes programas, numa nova corrida ao armamento: China, Índia, Rússia e EUA.

A NATO, a aliança militar mais poderosa no mundo, também não ignorou a importância do espaço numa futura guerra, mesmo quando se dizia que  estava em “morte cerebral”. Na última década, os Estados-membros da NATO triplicaram o número de satélites em órbita e, em 2016, a aliança militar publicou orientações globais sobre como atuar no espaço, ainda que o documento tivesse lacunas sobre lidar estrategicamente com o espaço e os seus sistemas militares ofensivos e defensivos.

Três anos depois, em 2019, antes da invasão russa, os líderes da NATO estabeleceram o espaço como “domínico operacional da NATO, reconhecendo a sua importância para nos manter seguros e enfrentarmos desafios de segurança”. E, já em 2022, depois da invasão russa, a NATO publicou um novo conceito estratégico (o anterior foi em 2010) em que o estabeleceu oficialmente: “Manter o uso seguro e o acesso irrestrito ao espaço e ao ciberespaço são fundamentais para uma dissuasão e defesa eficazes”, prometendo o aumento da “capacidade de operar efetivamente no espaço e no ciberespaço”.

Daí que não seja de estranhar que a guerra da Ucrânia seja hoje o tubo de ensaio para várias aplicações dos satélites Starlink. Pelas informações publicadas, os testes correram bem, não apenas pela capacidade de transmissão, eficiência, latência, solidez na manutenção da comunicação em cenários bélicos críticos, mas sobretudo pela resiliência contra os ciberataques. O chefe de Electronic Warfare do Pentágono descreveu num artigo a sua enorme surpresa quanto à capacidade de os operadores de Starlink conseguirem identificar em tempo real ataques informáticos para os enfrentar.

Poucas horas antes da intervenção russa na Ucrânia, um ataque informático bloqueou um satélite geoestacionário posicionado na Europa de Leste. Tinha a Ucrânia como cliente principal. O satélite era originariamente francês, mas foi vendido à empresa americana Viasat. Um vírus transmitido a este satélite, e que desde aí se propagou para todos os seus terminais, bloqueou-o. As comunicações que passavam por esse satélite ficaram em baixo.

Assim, a relação entre grupos privados e poder político norte-americano apresenta hoje algumas diferenças em relação à Guerra Fria (1947-1991) e ao famoso ‘complexo militar-industrial’. Este termo, cunhado pelo presidente Dwight D. Eisenhower no final do seu segundo mandato, em 1961, refere-se à penetração dos grandes grupos privados na política externa e de segurança dos EUA e à sua capacidade de condicionar o governo federal e muitos dos governos dos países aliados.

No terreno da Guerra Fria, era o governo que regulava e definia, servindo-se sempre de privados, as políticas, os ritmos e os projetos de expansão militar. As empresas condicionavam o governo e o governo usava fundos públicos para aumentar aa sua capacidade militar, mas o sujeito da política externa continuava a ser o Estado. Agora, é uma empresa a estar diretamente envolvida no teatro operacional.

Paralelismos históricos

Imaginemos que a Rússia decide abater os satélites que hoje permitem às forças armadas ucranianas resistir no terreno. Isto seria considerado um ato de hostilidade bélica contra uma empresa privada ou contra os EUA? Que tipo de resposta esperar de um ato destes?

Não é possível traçar uma resposta definitiva, mas podemos colher algumas pistas olhando mais atentamente para a ação da SpaceX na Ucrânia. No início deste mês de outubro, o exército ucraniano deparou-se com dificuldades no acesso à Internet através dos Starlink, sem que as causas estejam ainda claramente determinadas. No entanto, o aspeto mais interessante neste caso é um tweet do próprio Musk, no qual declara as razões das dificuldades de acesso à rede Starlink como informações classificadas. Isto é, tornadas secretas, assumindo a linguagem típica de instituições estatais, as únicas a dispor da possibilidade de tornar oficialmente secretas algumas informações. Empresas privadas não podem revindicar este mesmo direito sobre a sua atividade perante autoridades públicas.

Pouco depois destas declarações, Musk anunciou que, devido aos elevados custos da atividade na guerra na Ucrânia, a SpaceX não podia continuar a garantir o seu apoio ao governo ucraniano. No entanto, sabemos que Musk pediu financiamento ao Pentágono para suportar a sua ação na Ucrânia. O multimilionário sul-africano não aguardou pela resposta do Departamento de Estado e, dias depois, recuou, reafirmando o seu apoio ao governo da Ucrânia.

Podemos avançar com várias hipóteses: que as dificuldades de acesso à rede Starlink fossem um mecanismo de pressão sobre o governo norte-americano; que o Pentágono abriu uma linha de crédito não-oficial; ou que as declarações públicas sobre estes temas sejam apenas o resultado das características pessoais de Musk, que desta forma procura mostrar ao mundo a relevância da sua ação no terreno geopolítico. Nenhuma destas hipóteses é confirmável neste momento.

Se a Rússia decidir abater um satélite da SpaceX isso seria considerado um ato de hostilidade bélica contra uma empresa privada ou contra os EUA?

O que, ao invés, é amplamente demonstrável é um dado geral já assinalado: a crescente influência de um interesse privado de uma grande empresa multinacional no interesse estratégico nacional. Há anos que os conceitos estratégicos de vários Estados, ou seja, as doutrinas militares para o quadro internacional, consideram o espaço como área de ação central. Mas uma questão impõe-se: qual o sujeito que deve atuar neste teatro estratégico?

No início deste milénio, Everet C. Dolman, um dos analistas geopolíticos norte-americanos que mais se dedicou ao estudo do espaço, defendeu que este campo é um multiplicador de força militar. É-o por várias razões: pela sua importância nas comunicações (como mostra a guerra na Ucrânia), na navegação e no comércio internacional. Trata-se de um ativo global imprescindível.

Os sistemas de comunicação espacial desempenham o mesmo papel que os postos de controlo marítimos na geopolítica imperial britânica do século XIX. Tal como os pontos de estrangulamento marítimos, a colonização do espaço é um objetivo que a principal potência imperial deve controlar militarmente para preservar a capacidade de impor as suas regras ao comércio global, argumentou Dolman.  

São várias as questões que se levantam. A mais interessante, porém, é: até que ponto as democracias liberais não são o produto de um interesse nacional que representa os interesses de empresas multinacionais? É uma pergunta que já levou à escrita de centenas de livros sem que haja uma resposta definitiva. O que sobressai, no entanto, é o paralelo histórico: como o espaço é hoje terreno de uma nova competição entre potências mundiais e como uma empresa multinacional está a desempenhar um papel central à margem de qualquer controlo popular.