Russian military

Alexander Tushkin: “Os média russos chamam 'antifascistas' aos soldados. É perverso”

As lógicas do Kremlin são uma incógnita para o Ocidente. Não há liberdade de imprensa e, por isso, pouco se sabe sobre o que acontece no interior da Rússia. O Setenta e Quatro falou com um jornalista antifascista que se viu forçado a fugir do país ao ser incluído na lista nacional de traidores.

Entrevista
21 Julho 2022

Na primeira década deste século, Moscovo foi palco de uma grande onda de ataques racistas. Os grupos neonazis multiplicavam-se nas ruas da capital russa, acabando por infiltrar-se nas claques de futebol. O agora jornalista Alexander Tushkin juntou-se ao movimento antifascista para lhes fazer frente, inclusive pela violência. Mas não tinham força suficiente e os neonazis escalaram: em 2009 mataram 500 pessoas e começaram a usar armas de fogo e bombas. 

Vários antifascistas foram mortos por neonazis da BORN, com ligações aos serviços de segurança russos. “Havia um homem que lhes dava dinheiro e instruções, outro que lhes dava conctatos e endereços. O Kremlin matou esses antifascistas pelas mãos desses nazis. Depois livrou-se dos nazis”, contou o jornalista em entrevista presencial ao Setenta e Quatro. Chamaram-lhe "nacionalismo controlado".

Há quase 20 anos que Alexander Tushkin, hoje investigador do International Research Group on Authoritarianism and Counter-Strategies (IRGAC), se dedica a investigar e a monitorizar a extrema-direita russa e as suas ligações ao aparelho de Estado russo. Abandonou as hostes antifascistas militantes para se tornar jornalista e, assim, revelar uma realidade pouco estudada. 

Opositor declarado do presidente russo, Vladimir Putin, Tushkin criticou publicamente a invasão russa da Ucrânia e participou em várias manifestações anti-guerra. Foi incluído na lista de traidores nacionais do Kremlin e, para não ser preso, fugiu da Rússia para um outro país europeu que optamos por não revelar. À distância, Tushkin continua hoje a investigar a extrema-direita russa, a sua participação na guerra e as suas ligações internacionais. 

Que força tem o movimento anti-guerra na Rússia? 

No primeiro dia da guerra fui a um pequeno protesto contra a invasão numa cidade muito pequena onde estava a viver com a minha família. Havia cerca de 20 ou 30 pessoas, jovens estudantes que diziam que eram liberais “como o Navalny”. O [Alexei] Navalny está preso e diria, talvez, que o Estado russo foi bastante sábio ao prendê-lo, porque seria definitivamente a figura que organizaria e lideraria o movimento anti-guerra, um que seria completamente liberal, do tipo ocidental, não um minimamente de esquerda. 

"Há algo que quero que os ocidentais entendam claramente: não há democracia na Rússia, de todo. E tem sido assim durante séculos."

A esquerda está muito enfraquecida na Rússia. O movimento anti-guerra na Rússia foi levado para o campo democrático por um movimento chamado Viasna, em referência aos protestos de 1996 na Bielorrússia. É um movimento pequeno que se autodenomina jovem e democrático, mas foi rapidamente esmagado. O Estado simplesmente abafou-os em poucas semanas.

Participei noutras manifestações pequenas, organizadas por ativistas locais, jovens estudantes. Gritavam frases anti-guerra e cantavam de mãos dadas sob -30º graus Celsius. A polícia nunca prendeu ninguém. Depois, no início de março, em Moscovo, participei na maior manifestação anti-guerra até então. Havia uma multidão enorme a ir até ao parlamento nacional, à Duma. Deviam ser umas 3000 pessoas. A polícia chegou e prendeu algumas pessoas. Aí, vim-me embora. Parecia-me óbvio que aquelas pessoas estavam ali por elas próprias. Não era sobre ação política, porque na Rússia não há espaço para isso. 

Há algo que quero que os ocidentais entendam claramente: não há democracia na Rússia, de todo. E tem sido assim durante séculos. Talvez tenha havido um pequeno momento de democracia no período dos sovietes de trabalhadores durante a Revolução de Outubro. Ou em 1993, quando a União Soviética colapsou. Mas aí veio um Estado policial que tomou conta de todas as instituições. Ou seja, o povo russo nunca se democratizou à maneira ocidental e nenhum partido no parlamento ou eleições que tenhamos tido foram sobre “democracia”. 

Vi as pessoas a irem a esse género de protestos anti-guerra apenas para se livrarem do seu sentimento de culpa. Eu também o sinto. Não falo com ucranianos, exceto com os que são meus familiares. Tenho família ucraniana e sinto medo e culpa por de certa maneira partilhar a responsabilidade de ter começado esta guerra. E isto é uma grande questão dentro da sociedade russa. 

Os liberais de tipo ocidental estão a tentar construir um enorme sentimento de culpa e dão o exemplo da Alemanha depois de 1945. Para eles, é preciso construir uma nova nação sobre um novo consenso social, baseado no sentimento de culpa, como os alemães depois do nazismo, do Holocausto e da destruição da Europa. Estão a tentar implementar a mesma coisa na nação russa, o que é interessante.

Como estão a tentar fazê-lo? 

Há uma pessoa chamada Ilya Krasilshchik, ex-publisher de um grande jornal digital liberal, o Meduza. Antes [da guerra] trabalhava na gestão comercial do serviço de entrega de comida Yandex. Mas, de repente, tornou-se num ídolo para as pessoas que tentavam criar esse sentimento de culpa generalizado. Criou uma conta no Instagram, começou alguns projetos paralelos dedicados ao movimento anti-guerra, o que é bom, mas é tudo baseado nessa coisa de ética e moral. 

Não se trata de política, de se construir uma nova visão política. Só quer pôr todo o discurso sobre a guerra dentro dessa moral liberal e dizer “somos todos culpados e destruímos a Rússia enquanto nação”. Há até um novo termo para designar essas pessoas: “tudo-está-perdido”. Acreditam que a nossa nação tem que ser destruída e reconstruída do zero. Eu diria que algumas dessas pessoas, realmente radicais, querem atacar a Rússia e destruí-la, fragmentando-a.

"Em meados dos anos 1990, os jornalistas eram realmente livres. Muitos deles foram mortos, o que é prova de que tiveram a oportunidade de falar livremente."

Em vários Estados?

Sim, mas não são representativos da maioria dos russos. Isso é outra coisa complicada. Quando se fala na nação russa, pensa-se num grande monólito étnico, o que não é a realidade. 

Os russos apoiam a guerra ou não? Deste lado não conseguimos perceber o que está a acontecer na Rússia.

É complicado. Se quiseres uma resposta curta, sim mas não. Quando vemos as sondagens, conduzidas pelo Estado, as pessoas apoiam a guerra. Isso é muito importante para o Kremlin. Uma das sondagens diz que a popularidade de Putin é altíssima: 82%. Antes da guerra andava pelos 62% e de repente subiu. O que aconteceu? As pessoas não apoiam a guerra, não querem derramamento de sangue nem mais sanções. Algumas veem os ucranianos como parte da nação russa, o que também é meio complicado. 

Falamos a mesma língua e temos muito em comum. Diria que a Ucrânia é o país mais próximo da Rússia. É típico haver famílias em que alguns são russos e outros ucranianos. Não posso dizê-lo desta maneira, mas não há realmente uma grande diferença entre a Rússia e a Ucrânia. Os ucranianos dirão que isso é propaganda russa, mas, para mim, olhando para isto de forma simplista, vejo que compartilhamos a mesma herança cultural, os mesmos idiomas. Há muitas famílias, muitos amigos, que compartilham essa mistura de heranças russa e ucraniana. Diria que é claro que as pessoas não querem esta guerra, mas, ao mesmo tempo, apoiam Putin. E, claro, esse número é um bocado alto. Talvez não seja 82%, mas 60% ou 70%.

Podemos confiar nas sondagens?

Não. E não podemos confiar nas pessoas que respondem às sondagens porque as próprias não confiam em quem está a fazer as perguntas. Quando a pessoa com um bloco de notas e uma esferográfica vem ter contigo e pergunta, “apoia Putin?”, a resposta é simples: “claro que sim”. Mas não é verdade. Voltas para casa e quando estás na cozinha, a comer com a tua mulher, queixas-te que Putin é um estupor. É típico da mentalidade russa. Chamamos-lhes “cães de cozinha”, vem dos tempos da União Soviética, quando tinhas de ser um grande apoiante do regime, ir aos comícios e às reuniões, mas em casa, a jantar com a família, podias ser honesto. 

Mas tenho de ser honesto: a maioria dos russos apoia Putin, porque para muita gente foi ele que impediu o desmoronamento da Rússia. Promoveu a estabilidade e conseguiu dá-la, em comparação com o período de [Boris] Ieltsin, quando o povo russo foi humilhado. Antes tínhamos um grande país e isso era motivo de orgulho. Depois vieram os anos 1990, toda a gente ficou pobre. A minha família não tinha comida para pôr na mesa. A melhor coisa que podias comer era frango. Esse capitalismo tão bom, importado da Europa e dos Estados Unidos, arruinou o nosso país. 

E hoje em dia as pessoas veem Putin como o homem que salvou o nosso país do capitalismo selvagem dos anos 1990, quando havia máfia, oligarcas, todos juntos a beber champanhe em iates. Putin concentrou toda essa gente à sua volta e impôs alguma ordem. Ainda é um país capitalista mas, como dizem, é estável. “Estabilidade” é a palavra-chave para o regime de Putin. Quando perguntam a alguém porque o apoia, a resposta é sempre a mesma: estabilidade. As pessoas habituaram-se a Putin.

O jornalismo independente ainda existe na Rússia?

Nesse período louco, em meados dos anos 1990, os jornalistas eram realmente livres. Muitos deles foram mortos, o que é prova de que tiveram a oportunidade de falar livremente. Houve ataques à bomba a editoras. Os meios de comunicação social ainda não tinham sido consolidados pelos capitalistas. Então surgiram os novos oligarcas, apoiados pelo regime de Putin e que começaram a construir um novo poder mediático. E a televisão tornou-se num dos maiores meios de propaganda. 

A Internet era o espaço mais livre. E hoje em dia temos essa divisão forte: as pessoas mais velhas vêem televisão, lêem jornais, e são mais pró-Putin; os jovens estão na Internet, obtêm a informação pelo Telegram. Por isso é tão importante trabalharmos dentro de redes sociais como o Telegram, porque é relativamente independente. 

A oposição a Putin tenta agora replicar a experiência do canal de Telegram da Nexta, um meio de comunicação bielorrusso que organizou a revolta de 2020 na Bielorrússia, que fracassou. Mesmo assim, o canal da Nexta tornou-se o melhor exemplo de um meio alternativo de organização e oposição no mundo pós-soviético. E alguns deles tentarão definitivamente replicá-lo.

Um oligarca russo, Mikhail Khodorkovsky, esteve na prisão por dez anos depois de tentar ir atrás de Putin. Isso não significa que ele fosse inocente, porque Khodorkovsky também conseguiu os seus bens durante a viragem para o capitalismo. É rico porque roubou bens/ativos do Estado, como refinarias de petróleo. Depois foi libertado por Putin, foi para a Alemanha e começou a trabalhar contra ele, a investir muito dinheiro nesses meios de comunicação online. Diria que é Khodorkovsky quem está por trás da propaganda anti-Kremlin e o Kremlin tenta opor-se a ela com a sua própria propaganda.

Teve que fugir da Rússia. Como funciona a perseguição a jornalistas na Rússia?

Sou membro de um sindicato independente de jornalistas. É muito pequeno, mas somos agressivos. E, claro, tentamos construir os nossos próprios espaços seguros. Ainda existem jornalistas independentes que tentam fazer coisas realmente boas, mas é um trabalho hercúleo. Às vezes tem que se ser um verdadeiro mártir para fazer esse género de jornalismo. Depressa te encontram e te enfiam numa prisão. Há uma lei precisamente contra essa tipologia de jornalista: a “lei da informação falsa”. 

O Estado russo só considera verdadeiras as informações sobre a guerra quando vêm de fontes oficiais, como o Ministério da Defesa. Se usares alguma fonte independente, vão dizer que é falso. E vais para a prisão porque usaste informação falsa. Nestes casos não podes fazer jornalismo independente. É por isso que muitos jornalistas deixaram o país. 

A maioria deles vive hoje na Geórgia e na Lituânia, os países mais próximos e que estão contra o Kremlin. Há na Geórgia uma grande comunidade russa de ex-jornalistas e técnicos de IT que estavam com muito medo do Kremlin. E o Meduza, é claro, cuja redação está em Riga. São liberais ao estilo ocidental, mas tentaram opor-se ao Kremlin, e, para ser realmente honesto, a qualidade do seu trabalho diminuiu por colocarem todos os seus esforços na luta contra a propaganda de Putin. Isso significa que se escolhe um lado, já não é possível ser-se neutro. Claro, Putin é mau e a guerra é má. Estão a ser cometidas atrocidades na Ucrânia. Mas quando o Meduza tenta desconstruí-lo, cai na armadilha de fazer propaganda.

Para o ocidente?

Sim. Por vezes, sim. Sou jornalista profissional, quero algo verdadeiramente honesto. Mas, quando leio esses jornais liberais, vejo que estão a trabalhar precisamente contra isso: há uma guerra e não estão a fazer jornalismo, não são jornalistas, são “soldados informacionais”. Porque há uma guerra de informação. E neste caso talvez já não tenhamos jornalismo independente, porque já nem é jornalismo. É uma guerra informacional. Há soldados de ambos os lados. É realmente muito difícil perceber o que é verdade. Talvez o jornalismo já não seja sobre a verdade, mas sobre tomar partido. Talvez tenha sido sempre assim…

A guerra da informação e as sanções estão a funcionar? 

As sanções não funcionam como as sociedades ocidentais pensam, e ainda querem avançar com mais. Acham que o povo russo vê a comida ficar demasiado cara e que vai a correr derrubar Putin. Não vai funcionar, nunca funcionou. É por isso que o Kremlin e Putin não se importam muito com isso. 

Não gosto quando as pessoas dizem que os russos não fazem parte da sociedade europeia porque não têm uma democracia. Ou que não são europeus, o que considero uma treta racista. Os russos são europeus, mas temos outra condição histórica. Nós não tivemos uma democracia, não sabemos como votar, mas isso não significa que sejamos um outro povo. 

"O Estado russo só considera verdadeiras as informações sobre a guerra quando vêm de fontes oficiais, como o Ministério da Defesa. Se usares alguma fonte independente, vão dizer que é falso."

Estas sanções funcionam na direção oposta. Quando impõem sanções à nação russa, o povo diz “muito bem, vou estar do lado do meu líder”. E é por isso que Putin subiu nas sondagens de popularidade. Na verdade, os jovens tentam concentrar-se em torno de Putin porque é entendido como líder, um defensor da nação contra um Ocidente que sempre esteve contra nós. E agora os jovens vêem que o Ocidente os tenta matar, roubar, empobrecer e apoiam Putin. Dessa forma, a nação russa sobreviverá. Não querem saber de sanções. O preço do leite pode duplicar? “Não quero saber e não me importo”. 

E há, claro, o sentimento do grande império russo. Há quem acredite que o povo russo está pronto a empobrecer para ver o seu império crescer. São alguns, mas a maioria da sociedade russa é apenas um povo europeu normal com os seus problemas normais, como tu e eu. 

Algumas pessoas dizem que a economia vai colapsar.

Parece que as empresas e os Estados ocidentais tentaram aumentar a pressão sobre a Rússia proibindo as importações de petróleo e gás. Dizem que a Rússia terá que concordar com as exigências. Mas isso criou outra situação no mercado: os preços do petróleo e do gás subiram. Não compreendo como essas pessoas não pensaram nisso antes de aplicarem as sanções. Mas para o Kremlin está tudo bem: a Rússia recebe um milhar de milhão de dólares por dia a vender gás e petróleo aos países ocidentais, porque não podem sobreviver sem gás. E eles sabem disso perfeitamente. A União Europeia quer livrar-se do petróleo e gás russos, mas os russos estão a tentar reconstruir o seu sistema de transporte para a Ásia. O preço não é tão bom, mas estamos no meio de uma guerra.

As sanções podem criar brechas dentro do Kremlin permitindo que outra pessoa assuma o poder? Essa é a esperança ocidental.

Há uns dois meses havia gente a perguntar se Putin deveria levar com uma caixa de tabaco na cabeça. É uma piada russa. O czar Pavel I [1754-1801] foi assassinado por uma conspiração de pessoas próximas quando não quis abdicar do trono. Um dos seus aliados mais próximos deu-lhe com uma caixa de tabaco na cabeça. Houve quem achasse que talvez Putin acabasse morto de forma semelhante por causa dessas pressões sobre as pessoas do seu círculo próximo. Não acredito, mas é o Kremlin, portanto nunca se sabe. 

Pelo menos três oligarcas russos já “caíram” de falésias. 

Sim, bem, isso é problema deles. O Ministério da Economia disse nos jornais: “vêem o que eles fizeram com os vossos bens? Coloquem o vosso dinheiro na Rússia, comprem um iate russo ou um clube de futebol russo, não o Chelsea”. Até agora não vi sinais disso [divisões internas] e a política do Kremlin é muito complicada. Quem sabe? Algumas pessoas tentam construir as suas próprias narrativas sobre isso, especialmente as mais liberais. “Vejam bem, Putin está sentado numa mesa muito longa, isso significa que não confia em ninguém”. Talvez seja assim, não sei, mas visto daqui não notamos isso. 

Alguns oligarcas já deixaram o país, como Anatoly Chubais, que já foi o amigo mais próximo de Putin. Ajudou os Chicago Boys a privatizar os antigos bens soviéticos. Agora mora algures na Turquia. Chubais e Khodorkovsky não têm forma de aniquilar Putin e os oligarcas que ainda moram na Rússia estão bem com isso. Diria que talvez estejam ainda mais concentrados em torno de Putin, porque a sociedade ocidental roubou os seus bens. Não têm escolha.


"Os russos são europeus, mas temos outra condição histórica. Nós não tivemos uma democracia, não sabemos como votar, mas isso não significa que sejamos um outro povo."

A Rússia invadiu a Ucrânia usando a narrativa de haver nazis em Kiev, a tal “desnazificação”. Por que usou Putin esta narrativa?

Também foi inesperado para mim. Ninguém esperava que Putin fosse usar essa propaganda. A vitória na II Guerra Mundial, que nós chamamos de Grande Guerra Patriótica, é absolutamente sagrada. Não há nada mais importante do que isso, porque perdemos mais de 25 milhões de pessoas na guerra contra os alemães. Cada família russa tem a sua tragédia. Essa vitória é mais importante que Deus e o Estado. 

Quando a União Soviética entrou em colapso, a Federação Russa emergiu como novo Estado burguês e capitalista. Tentaram construir a sua própria ideologia, mas era oca por dentro. Ninguém sabia o que pôr dentro dessa suposta ideia de Rússia. Lembro-me disso nos meus tempos de criança, porque antes era o comunismo e a União Soviética estava cheia de ideias. Ainda me considero um homem soviético, porque nasci nos últimos anos da União Soviética. 

A Federação Russa emergiu simplesmente como ideia de uma sociedade capitalista ocidental, uma realmente cruel: “rouba o que puderes, mata quem quiseres e constrói o teu império capitalista”. Todos os oligarcas hoje à volta de Putin sabem isso muito bem. Mas, para a sociedade, para a grande fatia da população, essa ideia era vazia e continua vazia. E por isso trouxeram outra coisa: o “nacionalismo controlado”. 

Era uma das principais ideologias do Kremlin, uma ideia desenvolvida por Vladislav Surkov para construir um nacionalismo cívico em qualquer lado da federação, controlando-o e sem que fosse um nacionalismo popular. Foi então que começaram a surgir muitos grupos nacionalistas contra a imigração, ainda que só tenham durado dez anos. Foi tudo bloqueado, as organizações nacionalistas foram todas desmobilizadas, não desmobilizaram. E, antes que o fossem, os nacionalistas mataram muita gente. 

Como assim?

No início do século XXI houve uma grande onda de ataques racistas em Moscovo e fui para lá. Diria que me tornei antifascista em 2004, e a maior onda de ataques racistas foi em 2009, quando mataram mais de 500 pessoas. Eram todos nazis declarados, skinheads nazis organizados em diferentes grupos. 

Então o movimento antifascista russo surgiu, todo copiado do alemão. Havia uma pessoa, chamada Kostunica, nos círculos anarquistas russos que falava alemão e que esteve na Alemanha nos anos 1990. Copiou tudo sobre o movimento autónomo alemão e trouxe-o do Ocidente para a Rússia. 

Captou a nossa atenção e as pessoas tentaram copiar a coisa toda. Bandas, crachás, música, fanzines, tudo. No início começou apenas como subcultura, não era realmente político. Começou-se uma enorme cena musical punk e hardcore com os skinheads anti-racistas em Moscovo. Era muito divertido, envolvi-me e fiz muitos amigos. Descobri que há outra maneira de existir neste mundo. 

Tornei-me muito próximo de todas essas ideias anarquistas e comunistas, o que me levou ao antifascismo. Havia um punk chamado Esmaga-Ossos, um dos mais importantes da cena punk de Moscovo, e quando os neonazis começaram a atacar os nossos concertos, ele organizou todos os punks locais. Disse que tínhamos de nos defender a nós mesmos e começámos a designar-nos como Antifa. Começámos a nossa própria organização antifascista, a segunda - a primeira foram os Skinheads Troianos de Moscovo. Eram menos políticos do que nós, que nos definíamos como anarquistas. E sim, batíamos neles [neonazis]. Nunca matámos ninguém, mas eles começaram a matar-nos. Mataram Ivan [Khutorskoy], em 2009, e camaradas nossos dos Skinheads Troianos de Moscovo. 

"Se és antifascista tens de ir mais longe. Tens que te organizar e organizar os teus camaradas em algum movimento político."

Então nós parámos, porque os nazis passaram para o nível seguinte, o do terrorismo bombista. Passaram a ter armas reais, não as nossas garrafinhas de vidro e punhos. E nós éramos muito fracos. Com os neonazis é tudo sobre violência, adoram violência; nós não. Temos que nos defender e é óbvio que também organizámos ataques contra os concertos deles. Tentámos afastá-los da juventude moscovita.

Houve anos muitos maus em que ias na rua e só vias suásticas em todos os lugares, as 14 palavras, o número 88. Invadiram a cena de futebol e os hooligans tornaram-se de extrema-direita. Tentaram criar o seu próprio partido, o Partido Nacional-Socialista. E, claro, nós tentámos criar oposição a esse nível.

Algo que começou como movimento de música, subcultura, chegou a uma conclusão política. Se és antifascista tens de ir mais longe. Tens que te organizar e organizar os teus camaradas em algum movimento político.

E Putin precisava de controlar o nacionalismo [radical] com tanta morte nas ruas. 

Sim. Para mim, é muito importante relembrar, enquanto antifascista, que eles mataram camaradas meus. Foram mortos pela BORN, uns ultranacionalistas russos à antiga. O seu departamento legal tinha ligações diretas ao Kremlin. Havia um homem que lhes dava dinheiro e instruções, outro que lhes dava contactos e endereços de antifascistas. O Kremlin matou todos esses antifascistas pelas mãos desses nazis. Depois livrou-se dos nazis. Um deles [dos neonazis] disse no tribunal: “tínhamos um homem no Kremlin que nos ajudava a encobrir o nosso trabalho”, e nomeou-o. Foi por isso que os antifascistas russos destruíram, no dia seguinte, o escritório do partido Rússia Unida [de Putin]. Para nós, era preciso lidar com um Estado capitalista que nos tentava matar com nazis.

Voltando à desnazificação…

A narrativa da desnazificação é algo novo. Antes disso, talvez fosse mais sobre a defesa do povo de Donbass. Parece que o Estado russo estava à procura de um novo conteúdo para essa suposta ideia russa e acabou por descobri-lo: explorar toda a ideia sobre a Grande Guerra Patriótica. E isso é tão cínico, porque Putin simplesmente não é de direita, é preciso entender isso. Putin não é um político de direita, não é Hitler. No campo moral, sim, ele está a cometer atrocidades.

Quer ser czar? Imperialista, como Catarina, a Grande?

É só uma pessoa cínica, um político cínico. Ele vai para a esquerda, vai para a direita. Usará os meios que forem necessários para alcançar os seus objetivos. Recentemente, na Ucrânia, soldados russos reconstruíram os monumentos de Lenin que os ucranianos deitaram abaixo, colocaram bandeiras soviéticas em prédios administrativos ucranianos para reivindicar território. Propagaram até uma imagem de uma avó com uma bandeira soviética. Chamaram-lhe babushka soviética.

Talvez haja algumas pessoas de esquerda ou comunistas confusas com isto no Ocidente. Mas são só imagens, é só exploração, uma “lavagem vermelha” da guerra. Não há nada por trás disso porque, por dentro, o ideal russo está vazio. Só estão a usar todo esse antigo império soviético da Rússia e a sua imagem e estéticas por ser necessário pôr algo dentro da ideia de Rússia. Se não é sobre religião, sobre a monarquia, se não é sobre morrer pelo czar ou por uma ideia, então colocam-se estas bandeiras vermelhas nos prédios por não se conseguir inventar nada mais interessante. 

"A ideia russa está vazia por dentro, como o Rússia Unida está vazio por dentro. Portanto, não há nada realmente interessante, nenhuma ideologia. É apenas sobre ser-se cínico: em relação à política, ao dinheiro, ao capital."

Hoje em dia, nos meios de comunicação russos, chamam aos soldados russos “antifascistas”, o que me ofende bastante. Ando nisto há anos. Os meus camaradas foram mortos e agora colocam esse rótulo de “antifascista” nos assassinos de uniforme que enviam para a Ucrânia? Para quê? É uma situação realmente perversa, pós-moderna, na qual estes chamados “antifascistas” agem como verdadeiros agressores e assassinos na Ucrânia. 

Temos neonazis de ambos os lados. O Batalhão Azov são verdadeiros nazis, é uma unidade neonazi. Usa símbolos nazis e recebeu todos aqueles combatentes de extrema-direita que vieram para a Ucrânia. São neonazis, ponto final.

O consenso ocidental é que Putin é de direita, pelo menos de direita radical.

Sim, mas não é verdade. É um político de direita porque não sobrou mais nada, mas diria que é sobretudo cínico. Ele usará qualquer ideologia, de esquerda ou de direita, que funcionar. E se funciona, quem se importa? Não gosto das comparações entre Putin e Hitler, porque isso não nos levará a lugar algum. Quero dizer, em termos de ética e moral, é claro que se pode fazer isso, mas se queremos ser realmente objetivos, então temos que dizer que vivemos num regime autocrático, bonapartista. Há muitas definições boas para Putin e o regime russo. Não é só nazismo isto, nazismo aquilo.

A lógica é: se Putin financiou Le Pen, Salvini e outros grupos de extrema-direita e usa a extrema-direita no seu próprio país, então é de extrema-direita.

É um argumento fraco. É claro que ele estava a financiar esses partidos, e isso é parte do meu trabalho, investigar. Mas, da mesma forma, todos esses partidos livraram-se de Putin em pouco tempo. Antes de 24 de fevereiro, houve uma grande conferência em Madrid onde todos esses partidos se reuniram, censuraram Putin e a sua provocação e disseram que não estavam mais com ele. Todos esses partidos europeus tentam construir a sua própria narrativa, e é realmente perigoso para eles terem qualquer ligação com o Kremlin.

O objetivo do Kremlin de financiar Le Pen, Salvini e por aí adiante é mais para criar dissensão interna do que por razões de familiaridade ideológica?

As motivações do Kremlin são simples. Pensaram que se investissem dinheiro nesses partidos europeus de extrema-direita eles chegariam ao poder por causa da crise dos migrantes de 2015. Chegariam ao poder e ajudariam o Kremlin a livrar-se das sanções [impostas depois da anexação da Crimeia pela Rússia em 2014]. É tudo. Não se trata de ideologia. Quero dizer, é claro que o Rússia Unida é mais conservador e de direita, mas por outro lado, não é um partido de extrema-direita. Não é verdade. 

Claro que eles têm essa chamada proximidade ideológica, mas a Rússia Unida era um partido conservador, autodenominava-se conservador. Diziam-no há dez anos e, entretanto, aproximaram-se de uma posição mais centrista. Dizem que são neutros, “nem sequer temos uma ideologia”. Quero ser muito objetivo nisto: a ideia russa está vazia por dentro, como o Rússia Unida está vazio por dentro. Portanto, não há nada realmente interessante, nenhuma ideologia. É apenas sobre ser-se cínico: em relação à política, ao dinheiro, ao capital. 

Vamos voltar ao nacionalismo controlado, porque essa é uma ideia muito interessante. Falou sobre a produção de grupos neonazis e como foram desmobilizados, mas de que forma a guerra mudou isso? 

Nos media russos costuma dizer-se que no Kremlin, porque tem todas aquelas torres diferentes, cada torre tenta tomar o seu próprio caminho. Uma tenta isto, outra tenta aquilo. E hoje talvez haja uma corrida entre a torre liberal e a torre dos militares, que está a vencer porque conseguiram a sua guerra.

Nos anos 2000, o Kremlin tentou um projeto de nacionalismo controlado. Talvez, quem sabe, pudesse construir esse império conservador, tradicional, voltar aos tempos czaristas. Quem sabe? Tentaram colocar dinheiro numa grande organização estatal chamada Nas, que quer dizer “nós”. Era uma organização típica de nacionalismo cívico diretamente dirigida a partir das torres do Kremlin. Construíram muitos gabinetes pelo país, começaram muitos programas, organizavam grandes comícios em diferentes cidades com dez mil pessoas com as mesmas camisolas, a agitar bandeiras. Hoje já não existe, acabaram simplesmente com ela, e o dirigente foi para o exílio. 

A organização era muito artificial, não havia nenhuma ideia real por trás disso. Por isso é que se desmoronou quando o Kremlin parou de despejar dinheiro. Mas havia outros movimentos, principalmente locais. Algumas organizações que se autodenominavam “ecológicas” ou o movimento Occupy. Houve um movimento muito engraçado que tentou lutar contra as pessoas que estacionavam os seus carros em sítios proibidos em Moscovo. Tentaram experimentar maneiras diferentes. Falharam redondamente.

Na criação de movimentos?

Sim, porque não havia resultados reais. Tentaram reunir todos aqueles jovens perigosos num só espaço para os controlar. Talvez tenha sido essa a ideia. Mas depois disso não tinham nada. Então, para que serve? Desde o início que o movimento Nas dizia ser um movimento antifascista russo, o que não era verdade. Não se tratava de antifascismo. Iam aos monumentos ao soldado desconhecido ou a outros monumentos às vítimas e aos soldados da Grande Guerra Patriótica e ficavam parados lá, com bandeiras, com armas, uma parvoíce. 

Quando acabou, algumas pessoas disseram que houve tentativas de o controlar para o tornar especificamente contra imigrantes ilegais. A polícia prendeu os líderes, que eram nacionalistas. Tentaram controlar grupos nazis, mas não funcionou, como a Sociedade Nacional-Socialista, que matou mais de 20 pessoas. Houve planos de ataques à bomba e depois acabou. Eu diria que hoje em dia temos um campo político claro: um vazio. Não há nada, nem mesmo um único movimento independente de organização. Claro, há alguns muito pequenos, mas o Kremlin não se importa por serem muito pequenos. 

Putin usa a extrema-direita como tropa de choque, como o Russian Imperial Movement. 

Não, não é verdade. O Russian Imperial Movement opõe-se a Putin. 

Mas estão a lutar no Donbass. 

Sim, é verdade. Mas temos de seguir esse grande movimento nacionalista na Rússia. O maior movimento nacionalista foi o DPNI [Movimento Contra a Imigração Ilegal, em português] e depois acabou. Então veio o movimento chamado Russians. A mesma coisa, uma cópia, acabou. E esse Movimento Imperial Russo e o Ilija, que se opõem a Putin. Falava com os meus camaradas sobre outros tipos de organizações e ninguém esperava que organizações tão pequenas fossem estar envolvidas em conflitos do Donbass. Ninguém sabia nada sobre eles. Eles são muito pequenos e não tão famosos, não são tão importantes, diria. Mas talvez seja verdade. Têm alguns soloviki [membros do aparelho de segurança] e alguns ex-soldados, é possível que tenham querido ir participar na guerra.


"[O crescimento da extrema-direita] É movimento global, está a acontecer em todo o lado, e temos de nos defender e contra-atacar. Se não formos nós, eles vencerão. Diria que a Rússia é apenas mais um palco dessa batalha da humanidade."

Putin não usa a extrema-direita como tropas de choque na Ucrânia?

Não, mas é claro que tem uma unidade nazi, declaradamente nazi, e ninguém os baniu. Isso foi denunciado nos jornais. Ninguém quis saber.

E o Grupo Wagner.

Diria que o Grupo Wagner é mais sobre o negócio da guerra e a defesa dos ativos petrolíferos russos no Médio Oriente e em África. Agora estão no Donbass. Claro, pode dizer-se que usam neonazis, mas não é um movimento de massas. Quero dizer, talvez na sociedade ocidental as pessoas tentem ver um grande país fascista com um grande movimento fascista. Não é verdade. 

Na Rússia, ninguém gosta de grupos independentes. Se queres agir de forma independente, mesmo em apoio do teu próprio governo, talvez haja algo errado contigo. Então, vamos colocar-te na prisão, mesmo que apoies Putin, pensa o aparelho de Estado. Tens que ser silenciado. Não há nada mais que a grande nação russa. Ninguém gosta de pessoas com iniciativa. No teu movimento, no teu trabalho, ter iniciativa é bom. Aqui, é porque há algo errado contigo.

Depois da guerra começar, vimos muita propaganda russa com a letra Z e que o nacionalismo russo estava a aumentar. Putin pode perder o controlo do campo nacionalista com esta guerra? 

Temos de falar sobre diferentes tipos de nacionalismo. Temos o nacionalismo cívico, que é visto como um bom nacionalismo. É sobre como organizar a própria nação. Não se trata de etnias, não se trata de raças, não é sobre bater em judeus ou queimá-los em fogueiras. É sobre ter orgulho em ser-se russo, é um movimento patriótico. Mesmo que tenhas vindo de alguma república muçulmana, podes ser um nacionalista cívico. 

Mas, noutros casos, é preciso mais cuidado. Há uma maioria étnica, os ruskye. E, claro, quando fazia trabalho antifascista a primeira coisa que pusemos em cima da mesa foi o nacionalismo ruskye, nacionalismo de supremacia branca. Eram contra os russos de repúblicas muçulmanas, da Chechénia, das montanhas do Cáucaso ou os russos asiáticos.

Se hoje falarmos do nacionalismo cívico, temos de dizer que é controlado pelo Estado. E talvez possamos falar sobre uma organização juvenil do Ministério da Defesa. Deram aos jovens umas bermudas muito engraçadas e um lenço vermelho ou algo parecido. Mas não era nada como as alemãs SA. Não é assim, não é realmente um movimento de massas. Não os vi no desfile militar do 9 de maio [quando se comemora a vitória da União Soviética contra a Alemanha nazi]. 

Uma forma de diferenciar um regime totalitário de um autoritário é como o primeiro galvaniza o seu povo e o organiza para a ação. O regime autoritário só tenta manter as pessoas bem caladas e é isso que acontece hoje em dia [na Rússia]. Talvez daqui a uns anos evolua para um regime totalitário com um Estado fascista de pleno direito, com jovens rapazes a pegar em armas contra o Ocidente, quem sabe? Mas hoje em dia não é assim. 

Isto não é sobre a Rússia ou a Europa, é antes sobre marés globais de extrema-direita. Digamos que ao longo do século tivemos um pêndulo político, uma coisa que oscila da esquerda para a direita e vice-versa. No início do século XX, tínhamos pêndulo à esquerda, quando tivemos essa grande Revolução de Outubro, quando os socialistas realmente venceram. Essa foi a primeira vez que na nossa história comum uma ideia nova ganhou. Os capitalistas ficaram com muito medo. 

Mas o pêndulo balançou e voltou para a direita. E agora estamos a testemunhar o impulso da extrema-direita. Talvez vá mais longe, quem sabe. Talvez no futuro vejamos uma sociedade completamente fascista na Rússia, na Polónia ou nos Estados Unidos. É um movimento global, está a acontecer em todo o lado, e temos de nos defender e contra-atacar. Se não formos nós, eles vencerão. Diria que a Rússia é apenas mais um palco dessa batalha da humanidade contra os movimentos de direita.