O país africano vai levar Israel ao banco dos réus do supremo tribunal das Nações Unidas. A acusação enumera crimes de guerra, declarações genocidas de governantes israelitas e as condições desumanas vividas em Gaza. É a primeira ação consequente para responsabilizar Israel pelas suas ações contra o povo palestino.
As bombas continuaram a cair no octogésimo terceiro dia do ataque israelita ao povo de Gaza. Era 28 de dezembro e pelo menos 50 palestinos foram mortos em várias partes do sul da região, para onde lhes foi ordenado que fugissem. Nesse dia, Israel bombardeou um edifício residencial que albergava dezenas de refugiados perto de um hospital, na cidade de Rafah, matando pelo menos 20 pessoas.
Ainda nesse dia 28, o porta-voz do governo israelita, Eylon Levi, afirmou que o elevado número de vítimas mortais (pelo menos 70) resultantes do bombardeamento do campo de refugiados de Maghazi, no anterior dia 25 e perto da cidade de Deir al Balah, foi "um erro" e que se “estão a aprender lições”. Um oficial do exército israelita afirmou no mesmo dia que foram usadas “munições impróprias”, mas não especificou qual a munição apropriada para bombardear campos de refugiados.
Também nesse domingo, Volker Türk, alto-comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos denunciou o preocupante aumento da violência praticada por colonos israelitas contra os palestinos da Cisjordânia ocupada. Além de ataques violentos e pogroms, a ONU contabilizava a essa hora pelo menos 300 mortos no território ocupado desde 7 de outubro, dos quais oito foram assassinados por colonos israelitas.
Ao todo, o Ministério da Saúde de Gaza contava a 28 de dezembro 21.320 mortos, dos quais 7729 crianças, mais de 55 mil feridos, pelo menos 312 trabalhadores de serviços de saúde mortos, bem como 103 jornalistas, 40 agentes de proteção civil e 144 funcionários da ONU.
Mas os brutais números não se ficam por aqui. Contavam-se mais de sete mil palestinos como desaparecidos, presumidos mortos debaixo dos escombros dos edifícios bombardeados. As Nações Unidas calculavam já mais de dois milhões de pessoas em risco iminente de fome e a UNICEF informou que mais de oito mil crianças já sofreram a amputação de um ou mais membros — e cerca de mil tiveram de ser operadas sem qualquer tipo de anestesia.
Foi também nesse dia, o octogésimo terceiro, com o ano de 2023 quase a terminar, que chegou a primeira resposta consequente aos repetidos apelos palestinos para que o resto do mundo denunciasse o ataque israelita ao povo de Gaza como uma limpeza étnica sustentada por numerosos crimes de guerra evidentes. A República da África do Sul submeteu ao Tribunal Internacional de Justiça, o supremo tribunal das Nações Unidas sediado em Haia, uma petição para iniciar um processo de acusação de genocídio contra o Estado de Israel.
Para além dos mais de 21 mil palestinos mortos, contam-se mais de 7 mil desaparecidos, presumidos mortos debaixo dos escombros. Mais de mil crianças terão tido membros amputados sem qualquer anestesia.
As 84 páginas da acusação explicam, sustentada e cuidadosamente (são mais de 570 as notas de rodapé com fontes que sustentam todas as afirmações), os atos praticados por Israel que configuram o genocídio do povo de Gaza: não só os mais de 20 mil mortos, mas também os “danos corporais e mentais causados” à população e a “imposição de condições de vida calculadas para causar a sua destruição física”: como a fome e a destruição de hospitais.
O documento também descreve como Israel “falhou em prevenir o genocídio e comete genocídio em manifesta violação da Convenção de Genocídio” de 1948, que o país assinou em 1949 e ratificou em 1950. Para os sul-africanos, Israel “violou e continua a violar outras obrigações fundamentais” à luz da convenção, ao não prevenir ou punir “o incitamento direto ao genocídio por parte de oficiais israelitas e outros”.
Ainda que os redatores do texto façam questão de condenar o ataque de 7 de outubro, liderado pelo Hamas, a várias bases militares e kibutzim israelitas e a um festival de música eletrónica — que terá causado cerca de 1200 vítimas mortais —, estes explicam que “nenhum ataque armado ao território de um Estado, por mais sério que seja — mesmo um ataque envolvendo crimes atrozes — pode, todavia, providenciar qualquer justificação” para a violação da convenção de 1948 para a prevenção de genocídio.
O governo israelita reagiu prontamente à acusação sul-africana e, pela voz de Eylon Levy, afirmou que foi o Hamas a praticar um ato de genocídio, a 7 de outubro, com “crueldade de tipo nazi”, recusando qualquer acusação de genocídio levado a cabo por Israel. “O Estado de Israel condena enfaticamente a decisão tomada pela África do Sul de querer ser advogado do diabo”, informa Levy num vídeo publicado na rede social X (antigo Twitter), acusando a África do Sul de ser “cúmplice” dos massacres de 7 de outubro.
Segundo o governo israelita, Israel está a tomar “medidas sem precedentes para minimizar as vítimas civis”, ao contrário do “Regime Violador do Hamas [Hamas Rapist Regime]”, aplicando os “princípios da proporcionalidade, precaução e distinção”, tendo inclusive avisado os residentes do norte de Gaza que teriam de “evacuar temporariamente” a região para que se pudesse começar uma campanha de bombardeamento sem precedentes e, depois, uma invasão terrestre.
“O Regime Violador do Hamas tem toda a responsabilidade moral”, continua Levy, por “todas as vítimas mortais desde 7 de outubro” e, agora, a África do Sul “partilha a culpa de toda a trágica perda de vidas humanas”. O porta-voz do governo israelita garante que Israel irá a Haia defender-se de um “libelo de sangue” (tipo de alegação, comum na perseguição medieval aos judeus, que afirmava que estes sacrificavam ritualisticamente recém-nascidos) e que a “História julgará a África do Sul por encorajar os herdeiros modernos dos Nazis”.
Segundo o governo israelita, Israel está a tomar “medidas sem precedentes para minimizar as vítimas civis” e a África do Sul, com esta acusação, "partilha a culpa de toda a trágica perda de vidas humanas” no ataque de 7 de outubro.
No documento de acusação, a África do Sul diz-se “ciente do peso particular da responsabilidade de iniciar procedimentos contra Israel por violações à Convenção de Genocídio”, mas que também está consciente da sua “obrigação de prevenir genocídio”. É que, argumenta, “os atos e omissões de Israel em relação ao Palestinos violam a convenção” e têm a intenção de destruir uma parte do grupo “nacional, racial e étnico palestino”, isto é, os palestinos de Gaza.
Essa visão é partilhada por outros Estados que ratificaram a convenção e que desde outubro têm denunciado a campanha militar israelita em Gaza como um genocídio, além das múltiplas violações da lei internacional. Países como Argélia, Brasil, Colômbia, Turquia ou Cuba têm, através dos seus presidentes, “acusado Israel de genocídio”, lê-se no documento. Representantes oficiais do Bangladesh, do Egipto, da Malásia, da Namíbia e da Tunísia também têm avisado para “o genocídio ou o perigo de genócidio” dos palestinos de Gaza.
Nota-se ainda que “há mais de dez semanas que os peritos das Nações Unidas” consideram que existe um "risco de genocídio contra o povo palestiniano". Consideram-no por causa das sucessivas “declarações dos dirigentes políticos israelitas e dos seus aliados, acompanhadas de uma ação militar em Gaza e de uma escalada de detenções e assassinatos na Cisjordânia".
Para a ONU, tem sido clara "a incapacidade do sistema internacional em mobilizar-se para impedir o genocídio" contra os palestinianos. A África do Sul decidiu assumir esse papel: “estabelecer a responsabilidade Israelita pelos atos cometidos” e garantir a proteção urgente dos palestinos de Gaza contra “os continuados atos de genocídio”.
Ainda que esta acusação se refira apenas ao crime de genocídio e se restrinja aos últimos três meses, “é importante situar os atos de genocídio no contexto mais amplo da conduta de Israel para com os palestinos”, ou seja, “durante os 75 anos de apartheid, os 56 anos de ocupação militar do território palestino e os 16 anos de bloqueio de Gaza, incluindo as violações graves e permanentes do direito internacional que lhes estão associadas”.
Este tipo de processo costuma ser particularmente moroso e, por isso, entende-se que a intenção da África do Sul é obrigar Israel a parar as ações beligerantes em Gaza. Um processo deste tipo, neste tribunal, não é inédito. A Gâmbia apelou junto do TIJ pela aplicação de medidas provisórias à Malásia em 2020, invocando violações à Convenção de Genocídio, e a Ucrânia fez o mesmo em relação à Rússia em 2023.
Na última década, o TIJ indicou medidas provisórias em 11 casos. E ainda que não se possa saber se Israel irá obedecer a qualquer determinação do tribunal, as decisões deste são vinculativas – e podem, pelo menos, causar danos reputacionais e obrigar a uma mudança na campanha militar em Gaza. As primeiras audições serão já nos dias 11 e 12 de janeiro, em Haia, nos Países Baixos.
Após a introdução que contextualiza a acusação e justifica a tomada de ação por parte da África do Sul, são dados os contextos histórico, geográfico e administrativo da Faixa de Gaza à luz dos factos atuais. Desde local de reassentamento de palestinos coercivamente deslocados em 1948 — durante a nakba, a limpeza étnica e o êxodo massivo de palestinos que permitiu o estabelecimento do Estado de Israel — a ghetto bloqueado por ar, terra e mar, tendo “sofrido quatro guerras altamente assimétricas contra Israel nos últimos 13 anos”.
É dada especial atenção à Grande Marcha de Retorno, um protesto pacífico de massas que se estendeu durante ano e meio e no qual grupos de palestinos de Gaza se dirigiram até ao muro fronteiriço para exigir o fim do bloqueio. É notado no texto que as forças israelitas mataram 214 palestinos, disparando do outro lado do muro: “entre as vítimas estão crianças, paramédicos, jornalistas e pessoas com deficiências”.
Uma comissão de investigação descobriu que os snipers israelitas tinham autorização para disparar para os membros inferiores de manifestantes (houve 156 amputados) e que muitos dispararam intencionalmente sobre crianças (46 foram assassinadas). Ao todo, contabilizaram-se mais de 36 mil feridos, dos quais mais de oito mil crianças. Estes e outros factos (descritos em relatórios datando de 2001 a 2023) são dados como exemplo das inúmeras violações da lei internacional e de crimes de guerra, cometidos por Israel em inúmeras ações militares em ou sobre Gaza antes de 7 de outubro.
A acusação é ainda clara sobre evidências de atos “caracteristicamente genocidas”, decorrentes, praticados por Israel, através da informação disponível, ainda que “Israel esteja a impôr um blackout deliberado às telecomunicações em Gaza e restrinja o acesso a orgãos de investigação e comunicação internacionais”.
Assim, o documento sul-africano estabelece inequivocamente que Israel “está a matar palestinos em Gaza em grande número, incluindo crianças” e a causar “danos corporais e mentais graves” na população; a “infligir condições de vida destinadas a provocar a sua destruição enquanto grupo”, como “expulsões e deslocações em massa, juntamente com a destruição em grande escala de casas e áreas residenciais” e a “privação do acesso a alimentos, água, abrigo, vestuário, higiene e saneamento adequados”; a destruir “a vida do povo palestino” e a impôr medidas ”destinadas a impedir nascimentos”.
Cada uma destas acusações é substanciada com exemplos, ainda que seja facto que há mais de 20 mil mortos e sete mil desaparecidos como resultado direto da campanha de bombardeamento de Gaza. São citados os bombardeamentos de casas e blocos residenciais, escolas, hospitais, mesquitas e igrejas, bem como os ataques aos “corredores humanitários” e aos locais onde Israel disse que os refugiados palestinos estariam seguros.
A acusação cita os relatos de que haverá “soldados israelitas a levar a cabo execuções sumárias”, incluindo de “homens, mulheres e idosos” e palestinos a morrer "lenta e agonizantemente" de lesões resultantes de queimaduras de fósforo branco.
A acusação cita os relatos de que haverá “soldados israelitas a levar a cabo execuções sumárias”, incluindo de “homens, mulheres e idosos”. Por exemplo, pelo menos 11 membros masculinos da família Annan terão sido “abatidos à frente das mulheres e das crianças”, antes de estas serem também atacadas. Também há relatos de “pessoas desarmadas — incluindo reféns israelitas — mortas a tiro, apesar de não representarem qualquer ameaça, incluindo enquanto agitavam bandeiras brancas”.
Sobre os graves danos corporais causados por Israel, a acusação diz haver mais de 55 mil feridos em Gaza, “a maioria mulheres e crianças”. Por causa do uso de fósforo branco em áreas densamente populadas, Israel tem infligido queimaduras de quarto e quinto graus na população: o fósforo branco queima a mais de 800ºC e só pára no osso. Como já não há qualquer hospital a funcionar no Norte de Gaza, os feridos morrem “lenta e agonizantemente das lesões ou das infeções delas resultantes”.
Sobre os danos mentais, o documento relata que ainda antes de outubro de 2023 já as crianças em Gaza sofriam desproporcionalmente: a maioria apresentava “distúrbios emocionais” (80%) e mais de metade dizia ter “pensamentos suicidas” (55%). “Onze semanas de bombardeamentos implacáveis, de deslocações e de perdas terão necessariamente conduzido a um novo aumento desses números, em especial para as dezenas de milhares de crianças palestinas que se estima terem perdido pelo menos um dos pais, e as que são os únicos membros sobreviventes das suas famílias.”
Logo no dia 13 de outubro, Israel ordenou a evacuação do Norte de Gaza, incluindo da cidade de Gaza. Mais de um milhão de pessoas teria de sair daquela zona em apenas 24 horas, em completa e aberrante violação da lei humanitária internacional. Hoje, cerca de dois milhões de pessoas (85% da população de Gaza) foram coercivamente deslocadas. “Aqueles que se recusaram”, afirmam os sul-africanos, “foram mortos ou estão em iminente perigo de serem mortos nas suas casas”.
Segundo a ONU, 60% das habitações de Gaza foram destruídas, o Norte está “inabitável” e o Sul apresenta níveis de destruição equivalentes, o que choca de frente com a ideia israelita de “evacuações temporárias”. Para a África do Sul, a intenção genocida das deslocações forçadas é clara: “causar a destruição física dos palestinos de Gaza”.
O corte do abastecimento de eletricidade ao Hospital Al-Shifa matou cinco bebés prematuros e 40 pacientes em cuidados continuados ou dependentes de diálise. A falta de anestesiantes obriga a que grávidas tenham sido submetidas a cesarianas sem anestesia.
Sobre a privação intencional a água, comida, abrigo, saneamento e higiene adequados, a acusação lembra o “bloqueio total” declarado por Israel a 9 de outubro. O país ocupante cortou todo o fornecimento de eletricidade, água e combustível que entrava em Gaza. Antes de outubro, entravam cerca de 500 camiões com ajuda humanitária todos os dias. Hoje, poucas vezes chegam a ser uma centena. Citando a Organização Mundial de Saúde (OMS), “93% da população de Gaza enfrenta níveis críticos de fome”.
Tudo isto é exacerbado pelos ataques israelitas a “padarias, instalações de abastecimento de água e o último moinho em funcionamento” e a destruição de “terrenos agrícolas, culturas, pomares e estufas”. Segundo a ONU, “o pão é escasso ou inexistente”. A falta de água, cujo abastecimento, tal como o de alimentos, já era restrito por Israel, está a afetar “mulheres que amamentam” e que são forçadas “a preparar fórmula infantil com água impotável”.
Uma relatora especial da ONU comparou os planos israelitas de alagamento do sistema de túneis de Gaza com água do mar ao “mítico ‘salgar do chão’ que os romanos fizeram em Cartago, para impedir a agricultura e tornar o território inabitável”. O comissário-geral da Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina no Oriente Próximo (UNRWA) afirmou que os abrigos para pessoas deslocadas, quase dois milhões, estão “chocantemente sobrelotados”: há locais onde “mais de 700 pessoas utilizam uma única casa de banho, mulheres dão à luz (uma média de 25 por dia) e pessoas tratam das suas feridas abertas”. Há “dezenas e dezenas de milhares” de pessoas a dormir ao relento ou em tendas, a “queimar plástico para se aquecerem”.
Acima de tudo, “o assalto militar a Gaza tem sido um ataque ao sistema de saúde”, ao qual Israel “declarou uma guerra implacável”. De forma a privar os palestinos de Gaza de acesso a cuidados médicos, a África do Sul refere que “Israel tem atacado e sitiado hospitais e centros de saúde”, privando-os de eletricidade e combustível, material médico, alimentos e água, “forçando a sua evacuação e o seu encerramento e, efetivamente, destruindo-os”.
O corte do abastecimento de eletricidade ao Hospital Al-Shifa matou cinco bebés prematuros e 40 pacientes em cuidados continuados ou dependentes de diálise. A falta de anestesiantes obriga, além das já mencionadas amputações a frio, a que diversas grávidas tenham sido submetidas a cesarianas sem anestesia.
Feridas abertas “empestadas de moscas e larvas” rapidamente ficam “infetadas, necróticas ou gangrenosas”. Não há medicamentos para diabéticos ou hipertensos. “Peritos avisam que o número de Palestino mortos em resultado de fome ou doença pode já estar a ultrapassar o número de Palestinos” assassinados pela campanha militar de Israel, diz a acusação. A OMS registou mais de “100 mil casos de diarreia”, metade em crianças com menos de 5 anos, e mais de “150 mil casos de infeções pulmonares”, e múltiplos casos de meningite, enxatema, sarna, varicela e hepatite.
O documento de acusação contabiliza 61 edifícios hospitalares atacados por Israel, aos quais se acrescentam os ataques a “geradores, painéis solares e outros equipamentos vitais, como estações de oxigénio e reservatórios de água”, e a ambulâncias, caravanas médicas e socorristas. À hora da redação da acusação havia 311 trabalhadores de saúde mortos, “uma média de 4 por dia”.
De seguida, enumeram-se as evidências da “eliminação da vida Palestina em Gaza”: a destruição de casas, hospitais, escolas, universidades, bibliotecas, arquivos, museus, portos, sítios arqueológicos, mesquitas, igrejas, panificadoras, terrenos agríciolas e redes de distribuição de água e eletricidade ou de saneamento, e até de “bairros inteiros”, para tornar impossível a continuação da vida em Gaza.
A África do Sul acusa: “o exército israelita está a destruir o próprio tecido e a base da vida palestina em Gaza”, enquanto ergue a bandeira de Israel sobre os escombros de casas palestinas e promete “terraplanar Gaza” para se construírem colonatos israelitas.
Por fim, sobre as “medidas impostas para impedir o nascimento de palestinos”, regista-se um número crescente de recém-nascidos que morrem em Gaza de doenças curáveis ou preveníveis e os “nascimentos de bebés prematuros aumentaram entre 25% a 30%”, com escassas chances de sobreviência. Estima-se que 70% do total de vítimas mortais sejam mulheres e crianças e há testemunhos de “mulheres grávidas mortas por soldados israelitas, inclusive quando procuravam apoio médico”.
A África do Sul acusa: “o exército israelita está a destruir o próprio tecido e a base da vida palestina em Gaza”, enquanto promete “terraplanar Gaza” para se construírem colonatos israelitas.
O documento dedica cinco páginas à transcrição de expressões de intenção genocida contra o povo palestino “proferidas por oficiais israelitas e outros”. São citados o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, o presidente Isaac Herzog (“É uma nação inteira que é responsável. Não é verdade sobre os civis não estarem envolvidos.”); ou o ministro da Defesa, Yoav Gallant (“Estamos a combater animais humanos e agiremos em concordância.”).
Estão ainda compiladas as declarações genocidas do ministro da Segurança Nacional, Itamar Ben-Gvir; do ministro da Energia e Infraestruturas, Israel Katz; do ministro das Finanças, Bezalel Smotrich; do ministro do Património, Amichai Eliyahu; do ministro da Agricultura, Avi Dichter; do vice-presidente do parlamento israelita, Nissim Vaturi; do coronel Yogev Bar-Sheshet; e do major-general Giora Eiland (que ocupam uma página inteira).
São ainda referidas as diversas filmagens de grupos de soldados que cantam músicas que dizem que “não há inocentes em Gaza” e que “Gaza deve ser apagada” e de diversas mensagens genocidas propagadas por comentadores, pivôs de noticiários e figuras mediáticas nos meios de comunicação israelitas, que apelam à total destruição de Gaza e dos seus habitantes.
A África do Sul considera que os factos apresentados sustentam a acusação que apresenta — Israel está a cometer genocídio “através dos seus órgãos do Estado, agentes de Estado e outras pessoas e entidades que atuam sob as suas instruções ou sob a sua direção, controlo ou influência” —, mas diz que há “mais provas a ser apresentadas no decorrer do processo”.
Especificamente, acusa Israel de nove violações à Convenção de Genocídio e declara que o Estado de Israel deve “cessar todos os atos e medidas em violação das suas obrigações” perante a convenção, punir todos aqueles que cometeram genocídio, ou “conspiraram” para tal, e todos os que “incitaram”, “tentaram” ou “colaboraram”, bem como salvaguardar todas as provas e oferecer reparações aos palestinos de Gaza e reconstruir aquilo que destruiu na região.
A principal exigência sul-africana diz que Israel deve “suspender imediatamente” todas as operações militares em e contra Gaza.
Mencionando que Israel nega qualquer transgressão em relação à sua “atividade militar” em Gaza enquanto proíbe a entrada de quaisquer entidades externas que possam documentar os acontecimentos, a África do Sul pede que o Tribunal Internacional de Justiça indique diversas medidas provisórias, “com extrema urgência”, para evitar o agravar do genocídio em Gaza.
A principal exigência sul-africana diz que Israel deve “suspender imediatamente” todas as operações militares em e contra Gaza. É pedido ainda que se faça Israel “desistir” de matar palestinos em Gaza, de causar-lhes danos físicos e morais, e obrigar o país a tomar todas as medidas necessárias para parar de lhes infligir condições de vida “calculadas para causar a sua destruição física”.
No dia 11 de janeiro começa aquele que deverá ser um longo processo de averiguação de culpa e dolo e que deverá abranger, nos próximos anos, outras instâncias penais e judiciais internacionais. As consequências não serão imediatas nem disruptivas, mas poderão colocar pressão sobre Israel e o regime de Benjamin Netanyahu, que negou a acusação de genocídio e disse que o exército israelita “age da maneira mais moral possível”.
John Kirby, porta-voz do Conselho de Segurança da Casa Branca de Joe Biden, disse que a acusação sul-africana “não tem mérito, é contraproducente, e não se baseia em qualquer tipo de facto”. Ainda que, seja a administração norte-americana democrata ou republicana, os Estados Unidos permaneçam irredutíveis ao lado de Israel (votando sempre contra um cessar-fogo ou “tréguas humanitárias” nas Nações Unidas), o reconhecimento de atos genocidas perpetrados por Israel em Gaza, com o apoio norte-americano pelo ICJ, pode ter consequências políticas, mesmo que limitadas.
Poderá, no mais modesto dos casos, obrigar à desintensificação da matança em Gaza por parte das forças armadas israelitas, ainda que a população esteja agora mais à mercê das doenças, da fome, da sede e do frio que do exército israelita. Poderá dar mais tempo à África do Sul para fortalecer a sua acusação e levar a que mais Estados denunciem o genocídio dos palestinos de Gaza noutras instâncias e exijam ações consequentes contra Israel.