soldados israelitas

Foto: Timon Studler

Illan Pappé: “A nacionalidade israelita baseia-se na desumanização do palestino, do árabe”

O historiador israelita diz que a chegada da extrema-direita ao poder em Israel era “inevitável” e que a radicalização do projeto colonial sionista vai alienar os israelitas mais liberais e judeus de todo o mundo. E garante que os palestinos não procuram vingança, apenas a descolonização.

Entrevista
11 Maio 2023

Na madrugada de terça-feira, 9 de maio, Israel voltou a bombardear Gaza. Numa operação apelidada “Escudo e Flecha”, mais de 40 caças israelitas sobrevoaram o território palestino (que tem menos de metade do tamanho da ilha da Madeira e mais de 2,3 milhões de habitantes) para levar a cabo um bombardeamento de “precisão”. O ataque matou 13 pessoas, incluindo três comandantes da Jihad Islâmica da Palestina — os alvos originais. Colateralmente, foram mortos dez civis: quatro crianças, quatro mulheres e um homem. No dia seguinte, quarta-feira, houve novos bombardeamentos. Morreram mais cinco palestinos, incluindo uma criança de dez anos.

A Jihad Islâmica é um dos grupos armados que se vem reorganizando na luta pela descolonização da Palestina desde a “intifada da unidade”, em maio de 2021. Khader Adnan, um dos seus porta-vozes, morreu numa prisão israelita no passado dia 2 de maio, após 87 dias de greve de fome contra a sua detenção sem direito a julgamento. As mortes causadas pela operação "Escudo e Flecha" já levaram os palestinos a retaliar.  Vários rockets foram disparados em direção a Tel Aviv. Não há qualquer notícia de vítimas.

Há dois anos que a situação em Gaza e na Cisjordânia se vem tornando cada vez mais tensa, repetindo-se as incursões armadas e os bombardeamentos israelitas. Um relatório das Nações Unidas contou 204 palestinos mortos pelas forças armadas israelitas em 2022. Foi o ano mais mortífero para o povo palestino desde 2006, mas nos primeiros três meses deste ano pelo menos 95 palestinos foram mortos só na Cisjordânia ocupada. Como retaliação, multiplicaram-se os ataques contra civis israelitas, com 20 mortos e vários feridos em 2022. Ao mesmo tempo, aumentou a violência letal de colonos israelitas contra palestinos. A mais recente vítima foi Dayar Omari, de 20 anos, morto a tiro no trânsito, na região da Galileia.

Dependemos de quem nos lê. Contribui aqui.

Para Illan Pappé, historiador israelita exilado no Reino Unido, Gaza está “a ser sitiada porque a sua população elegeu [em 2007] um governo que desagrada” a Israel. Na manutenção desse estado de sítio, o Estado israelita aplica “políticas genocidas” e obriga a população palestina a viver “em humilhação, sem dignidade, num medo constante da morte”. O diretor do Centro Europeu de Estudos Palestinos da Universidade de Exeter, e autor dos livros The Ethnic Cleansing of Palestine e Dez mitos sobre Israel (publicado em Portugal pela Edições 70), passou por Portugal e esteve à conversa com o Setenta e Quatro.

O professor nascido e crescido em Haifa, filho de refugiados judeus alemães, refletiu sobre a recente radicalização do governo e da sociedade civil israelitas, o possível futuro do sionismo e da luta anti-colonial palestina, a resistência das populações de Gaza e da Cisjordânia e o silêncio mundial em relação ao apartheid Israelita.

“Israel tem de perceber que onde houver palestinos haverá resistência”, afirma Pappé, considerando que a adesão das novas gerações palestinas à luta armada “é apenas o início”. E, a par e passo, a radicalização generalizada da juventude israelita também é um fator disruptivo: o sistema educativo de Israel tornou os jovens mais dispostos “a praticar atos brutais e cruéis contra os palestinos”.

Image
illan pappe
Em Gaza, "os níveis de desespero são inqualificáveis", considera o historiador israelita. "A única resistência possível é a resistência violenta, desesperada e pouco eficaz." | Foto: L. Willms

No seu livro mais recente lista e critica dez mitos sobre Israel. Um deles diz que Israel é a única democracia no Médio Oriente. Com seis meses de governo de extrema-direita, parece ter ficado claro que esse chavão é, precisamente, um mito. Como se explica a radicalização política em Israel?

A chegada ao governo de políticos e partidos de extrema-direita — depois de 30 anos nas margens — era inevitável. É um resultado direto da forma como o Estado de Israel foi criado e, especificamente, da nova realidade criada depois de 1967, com a tomada de controlo da Cisjordânia e da Faixa de Gaza e uma nova conceção sionista dos nativos palestinos.

Há 75 anos que se repete que Israel pode ser, ao mesmo tempo, um Estado judeu e um Estado democrático. Muitos de nós percebemos que chegaria um momento em que o eleitorado judeu israelita teria de perguntar a si próprio se quer ser democrático ou judeu. Não pode ser ambos.

É infeliz que a maioria dos israelitas prefira viver num Estado judeu, mesmo que não seja democrático, que num Estado democrático que não seja judeu. Ainda assim, dentro dessa ideia de um Estado judeu não-democrático — e que a Amnistia Internacional categorizou acertadamente como uma espécie de apartheid — há duas versões.

A primeira é a de um Estado secular de apartheid, em que a maioria dos palestinos vê os seus direitos básicos negados, enquanto todos os judeus israelitas os têm garantidos, incluindo direitos LGBTQ+, autodeterminação de género e liberdade de expressão e tudo mais. Na África do Sul, chamava-se "a democracia da raça superior", herrenvolk.

Do outro lado está um outro grupo, o que está agora no poder, que diz que se Israel é um Estado judeu, então não pode ser secular. Tem de ser leal ao judaísmo enquanto religião. São contra a comunidade LGBTQ+, contra a vida secular e cosmopolita celebrada em Tel Aviv. Não dão qualquer valor aos ideais democráticos. Não querem jogar à democracia, nem percebem porque é  uma questão. Crêem que quem está no poder também deve controlar os tribunais, o parlamento, todo o aparelho de Estado. Como numa ditadura. 

Estas duas ideias sobre o que deveria ser o apartheid israelita estão hoje em confronto. No Ocidente, os protestos protagonizados pelos israelitas seculares são vistos como manifestações por uma democracia real. Esses protestos nada têm que ver com a colonização da Palestina ou com a opressão dos palestinos, apenas com os direitos dos judeus israelitas, uma comunidade privilegiada.

Como é que os israelitas conseguem ignorar essas contradições?

Primeiro, aqueles a quem chamamos sionistas liberais, ou sionistas de esquerda — pessoas que querem sentir que vivem num Estado judeu mas com liberdades democráticas —, mentem a si mesmos. Não conseguem ser honestos e há várias coisas que os ajudam a viver nesse paradoxo. Uns dirão que o apartheid "é temporário", que o problema da opressão dos palestinos será um dia resolvido. Muitos acreditam na solução de dois Estados, vagamente, e não se preocupam muito com isso, porque o problema se resolverá sozinho.

Depois, repetem para si mesmos que "o problema é dos palestinos, que não querem a paz". Dizem que não há ninguém do lado palestino com quem se possa conversar. Portanto, não há alternativa a não ser viver assim, em apartheid. A antiga primeira-ministra Golda Meir disse uma vez: "nunca perdoaremos os palestinos pelo que eles nos obrigaram a fazer aos seus filhos". Essa é a lógica dos sionistas liberais. Têm muita pena por fazerem o que fazem aos palestinos, mas a culpa é deles. E é assim que se reconciliam com a sua própria culpa.

Depois, repara, o apartheid não afeta as relações com os governos do resto do mundo. Continuam a apoiar Israel ou a ignorar a questão do apartheid. Até Estados do mundo árabe aceitam Israel como é. Nada empurra os israelitas para encontrarem uma solução.

É possível viver numa fantasia de Israel, onde se pode ter uma democracia em Tel Aviv, um apartheid na Cisjordânia e uma ditadura militar na Faixa de Gaza. Basta acreditar que o importante é o que se passa em Tel Aviv, não o que está a acontecer a dez quilómetros.

Algo particular deste governo é a conceção bastante restrita de quem deve ser considerado judeu israelita. Israel tem dependido do retorno da diáspora para aumentar a sua população, mas os fanáticos religiosos no governo querem limitar profundamente quem pode ser considerado cidadão pleno do Estado judeu. Que pensa disto?

É um processo de politização da religião judaica que acontece desde o início da criação de Israel. Quando se politiza uma religião, redefine-se o que é a fé. A identidade religiosa torna-se parte da identidade nacional. Isso será sempre problemático. Uma religião poderá ter sempre diversas escolas de pensamento, diferentes interpretações. Não é assim tão fácil reinterpretar identidades nacionais, é mais exigente.

O sionismo começou como uma tentativa de redefinir o judaísmo enquanto nacionalismo. Em si mesma, a ideia não era má, mas, quando se tornou parte de um projeto colonial a autodefinição de um judeu passou a estar ligada a uma conceção de raça. Um judeu era aquele que não era árabe. Tudo se baseou numa noção racista do mundo. Havia um problema: muitos judeus eram árabes. Foram "desarabizados". Convenceram-nos que quanto mais odiassem a sua ascendência árabe, mais judeus israelitas se tornariam. A nacionalidade israelita baseia-se no racismo e na desumanização do Outro. De que outra maneira se pode justificar não dar os mesmos direitos a toda a população? Ou não dar quaisquer direitos a milhões de palestinos que estão sob algo erroneamente chamado de "ocupação". Já não é uma ocupação, é anexação, é colonização.

O sistema de educação israelita, produtor de uma certa cultura israelita, reflete esse racismo. Não é fácil —  especialmente na Europa, e eu percebo porquê —  falar de racismo judaico. Pode falar-se de racismo islâmico ou de racismo cristão. Mas quando se fala de racismo judaico metemo-nos em sarilhos. Isso é ridículo. Hindus podem ser racistas. Podemos ver isso no partido de Narendra Modi, atual primeiro-ministro da Índia. Cristãos e muçulmanos podem ser racistas —  e judeus também. Nem todos os judeus são racistas, nem todos os racistas são judeus. Mas os judeus racistas têm uma ferramenta importante: um Estado. Isso causa muita dor e sofrimento às suas vítimas.

É o resultado de se construir um Estado-Nação sobre o desprezo pelo Outro? O "nós" torna-se uma categoria cada vez mais restrita?

Absolutamente. Hoje em dia, na academia, falamos muito sobre o sionismo enquanto colonialismo de povoamento: comparamos a colonização da Palestina à colonização da América do Norte, por exemplo. Creio que a maioria dos académicos concordaria que, ao contrário do colonialismo clássico (como o português), no colonialismo de povoamento o desejo não é explorar os colonizados em nome do império. É remover a população indígena e nativa, para que se construa um novo lugar. Há quem lhe chame a lógica da eliminação do nativo. Quando é esta a lógica que te guia, não é surpreendente que quando não se tem sucesso em eliminar todos os nativos, e estes rejeitam essa tentativa de eliminação, haja um conflito quase impossível de resolver. E essa ainda é a ideologia vigente, que só se pode radicalizar.

O caminho obrigatório dessa ideologia é a aniquilação total? 

É um cenário possível. Não creio que seja, ou será, o tipo de genocídio que concebemos quando pensamos no passado —  algo massivo, feito de uma só vez. É algo gradual. É o que vemos na Cisjordânia onde todos os dias são mortos três ou quatro palestinos. Vemos isso em território israelita, quando gangues de colonos entram em áreas palestinas para matar palestinos com a aquiescência das autoridades. 

As políticas são genocidas, mas não creio que terão sucesso a eliminar o povo palestino. Até entenderem que estas ações não resultarão em nada, muita gente morrerá. É terrível pensar nesses termos, porque os palestinos jamais desistirão, nunca deixarão de resistir. Aliás, a evolução política em Israel poderá fazer com que haja mais solidariedade internacional, seja de governos ou das sociedades civis. 

Os sionistas não conseguirão completar o seu projeto genocida. Estão, aliás, a enfrentar a sua maior crise ideológica e, creio, estamos a assistir ao fim do sionismo enquanto ideologia. Mas um "fim", na história, pode demorar 20 ou 30 anos a acontecer. Esse momento é muito perigoso para os palestinos. Na África do Sul, as últimas fases do regime de apartheid foram as mais violentas e cruéis. Ainda assim, o fim do sionismo é mais provável que o fim do povo palestino. 

Mas, como disse, vejo isto no tempo longo e o cenário não é favorável. Preferiria assistir a um processo genuíno de reconciliação, sem derramamento de sangue. Mas, por enquanto, não vejo essa opção.


"Sabíamos que chegaria um momento em que os israelitas teriam de perguntar a si próprio se queriam um Estado democrático ou judeu. Não pode ser ambos. [...]
A maioria dos israelitas prefere viver num Estado judeu, mesmo que não seja democrático, que num Estado democrático que não seja judeu"

O cineasta israelita Avi Mograbri, famoso dissidente, diz que se o sionismo completar o genocídio do povo palestino, a sua própria existência deixa de fazer sentido. Essa crise do sionismo a que se refere, é uma crise existencial?

O sionismo é suportado por um pilar moral e um pilar material. Materialmente, Israel poderia continuar a existir —  enquanto potência militar, tecnológica e industrial. Muitos Estados párias sobrevivem dessa forma. O problema é que o pilar moral ruiu. É difícil convencer as pessoas com os argumentos morais do sionismo, que está agora a perder a batalha moral. 

O sionismo sem qualquer justificação moral, e sem apoio moral —  até mesmo dos judeus de todo o mundo, porque é isso que vai acontecer —,  não criará um Estado sionista. Deixará um Estado pária, especialmente agressivo, que muitos judeus israelitas, especialmente os de origem europeia, não irão tolerar. Não creio que irão lutar contra ele, mas não continuarão lá. Emigrarão. Muitos judeus com passaportes europeus já estão a sair de Israel. A última batalha está a ser travada em Tel Aviv com estas manifestações. Não querem desistir da sua fantasia, do Israel em que acreditam, mas não terão sucesso. 

No futuro, Israel será um Estado governado por forças teocráticas, nacionalistas e racistas. Até para muitos judeus sionistas de todo o mundo isso será demasiado para tolerar. Depois, irão os Estados Unidos continuar a considerar Israel um "asset"? Quando Israel se parecer mais com o Irão ou a Arábia Saudita, continuará a ser preferido sobre esses? Talvez a Arábia Saudita seja mais importante: tem mais petróleo. Se Israel tiver de competir pelo apoio norte-americano —  não no que diz respeito à moral e aos valores —,  baseado naquilo que pode oferecer, não estará estrategicamente numa posição melhor que qualquer outro país do mundo árabe. 

Se os israelitas forem espertos, perceberão que têm muita sorte. Os palestinos não procuram vingança, procuram uma vida normal, e Israel poderia oferecer-lhes isso. Não seria um Estado judeu, mas um Estado democrático. Teria problemas, como todos os Estados, mas seria muito melhor do que temos hoje.

Mencionou os ataques de colonos a palestinos. Sabemos que o exército está a recrutar jovens colonos das zonas mais violentas dos colonatos na Cisjordânia. Além disso, a radicalização da sociedade israelita está estreitamente ligada à educação das gerações nascidas depois da Segunda Intifada. Como é que isso aconteceu?

Em 1999, escrevi um artigo para o Journal of Palestine Studies em que afirmava que Israel se iria tornar numa "zelotocracia", um regime liderado por fanáticos. Muita gente ficou irritada: "isso não vai acontecer!". Disseram que era uma estupidez. Os trabalhistas estavam no governo, a Segunda Intifada ainda não tinha começado e, enfim, achavam que estava maluco. Justifiquei-me dizendo que não estava a afirmar isso por causa da realidade política de então. Simplesmente conseguia ver como o sistema educativo israelita estava a doutrinar as gerações mais novas. Vi que se tornariam racistas, nacionalistas, mais religiosas e mais extremistas. Mais dispostas a praticar atos brutais e cruéis contra os palestinos. Ou seja, a radicalização da sociedade civil israelita é, primeiro, resultado do sistema educativo criado e desenvolvido por Israel.

Israel também socializa o seu povo na sua ideologia através do exército. O serviço militar é obrigatório. Fá-lo também através da comunicação social, que é extremamente leal ao Estado, muito temerosa de criticar as ideias básicas do Estado.

É muito difícil sair desta teia. Muitos israelitas crêem que a sua realidade, que lhes é doutrinada, é a única que existe, e orgulham-se muito dela. A maioria da juventude israelita vive nessa realidade. Em centros urbanos como Tel Aviv ou Haifa, o sistema educativo privado pode dar aos jovens formas diferentes de pensar, outras perspetivas, mas são uma minoria. Muitos deles não servirão nas forças armadas e, provavelmente, sairão do país. 

A colonização da Palestina acontece em várias frentes, numa rede de diferentes apartheids. O professor já chamou à Faixa de Gaza "a maior prisão do mundo", o filósofo Achille Mbembe fala numa lógica de campo de concentração. Qual seria a melhor definição para o que acontece todos os dias em Gaza?

O campo de concentração é um método único que pertence ao período tardio da colonização europeia (como na África do Sul, na Namíbia, na Indonésia) e, especialmente, na Alemanha Nazi. Chamar-lhe gueto seria mais acertado. O campo de concentração é um sítio de extermínio industrial. Não é isso que acontece em Gaza, ainda que lá sejam aplicadas políticas genocidas.

O problema de todos estes conceitos é que, apesar de estarem corretos, falham na particularidade da situação em Gaza. Mas não faz mal. Digo sempre aos meus estudantes para nunca se contentarem com um soundbite. Quando afirmamos algo temos de garantir que há tempo para nos explicarmos. Se não descrevermos exatamente o que Israel faz em Gaza, e optamos em vez disso por simplesmente lhe dar um nome, não vamos entender o essencial do problema.


"Cristãos e muçulmanos podem ser racistas —  e judeus também. Nem todos os judeus são racistas, nem todos os racistas são judeus. Mas os judeus racistas têm uma ferramenta importante: um Estado"

O cerco a Gaza foi, em primeiro lugar, um castigo pela escolha democrática do povo em ser governado pelo Hamas, em 2007. Gaza está a ser sitiada porque a sua população elegeu um governo que desagrada a Israel. Há uma tendência para esquecer isso. Diz-se que era porque o Hamas estava a lançar rockets. Não. 

Em segundo lugar, o cerco permite que Israel controle tudo o que se passa em Gaza: quantas calorias consome cada palestino, que tipo de materiais de construção podem lá entrar, quem entra e quem sai. Isso é insuportável. Gaza é uma das áreas com maior densidade populacional no mundo. O desemprego é altíssimo. Os níveis de desespero são inqualificáveis. No final, a única resistência possível é a resistência violenta, desesperada e pouco eficaz. A maioria dos palestinos prefere uma solução pacífica. Por outro lado, também creem que o Hamas não tem alternativa e que deve mostrar alguma resistência, nem que seja com morteiros rudimentares.

A ONU previu, em 2020, que Gaza se tornaria um sítio inabitável e é verdade. Piora de ano para ano: não há medicamentos, não há emprego ou qualquer tipo de assistência social. Até os israelitas perceberam isso e passaram a permitir que um grande número de palestinos de Gaza trabalhem em Israel. Mas a situação continua desumana e inaceitável.

Milhares de palestinos estão hoje detidos em prisões israelitas, incluindo centenas de crianças, sem julgamento. São vítimas de torturas arbitrárias e sobrevivem em condições desumanas. Khader Adnan, ativista palestino, morreu no dia 2 de maio depois de 87 dias de greve de fome contra a sua prisão sem julgamento. Entretanto, formam-se novos grupos de resistência armada. Após duas intifadas, vários acordos internacionais falhados e incumpridos, quais podem ser os futuros do povo palestiniano na luta contra a sua colonização?

Há muito desentendimento e muita desinformação sobre a luta palestina. Em 1962, os palestinos que estavam nas prisões entraram em greve de fome. Muita gente morreu. Também houve guerrilha contra a ocupação israelita em Gaza e na Cisjordânia. Portanto, não estamos numa fase nova. O capítulo é o mesmo. Como dizem os palestinos: "a nakba ["catástrofe"; designa, de maneira lata, a limpeza étnica do povo palestino iniciada em 1948] continua, mas a intifada também". 

Não creio que a resistência palestina tenha descansado um só dia nos últimos 75 anos. Também não creio que tenha ideias novas sobre o que fazer. Lutam pelas suas vidas, pela sua existência. Lutam com armas, com bombas — mas também com protestos, com marchas pacíficas, com greves de fome. Faz tudo parte da mesma resistência. A comunicação social ocidental pega num aspeto só, mas tudo isto acontece simultaneamente. Não há qualquer estratégia nova.

O que está a mudar é a demografia. Os palestinos são uma das populações mais jovens do mundo. Está a haver um render da guarda, uma troca geracional. Temos de ser pacientes e tentar perceber o que a nova geração de ativistas e líderes palestinos irá fazer. Já vemos alguns indicadores de certas tendências: não acreditam em política internacional nem processos diplomáticos, ao contrário das lideranças anteriores. Será interessante ver como isso evoluiu. Acreditam, ainda assim, que a luta palestina deve estar mais ligada a outras lutas em redor do mundo, como a dos afro-americanos ou a dos nativos indígenas nos Estados Unidos, na Austrália e na Nova Zelândia. 

Não deslegitimizam a luta armada — pelo contrário. E jamais lhe chamarão terrorismo. Será uma guerrilha. A maioria não tem afinidade política com qualquer partido ou grupo, seja o Hamas ou a Fatah. Não se limitam geograficamente, trabalham em todos os territórios. Vimos isso na "intifada da unidade", em maio de 2021, organizada a partir das bases — e não pelo Hamas — de forma impressionante. É apenas o início. 

Israel tem de perceber que onde houver palestinos haverá resistência. Não será da mesma maneira, nem ao mesmo tempo. Enquanto a colonização continuar, a vida será miserável tanto para os palestinos como para os israelitas. Estejam em Tel Aviv ou num colonato na Cisjordânia. Ainda assim, não creio que os palestinos tenham uma estratégia. Querem a descolonização da Palestina. Estão pouco interessados em discussões pós-coloniais. 

Deveríamos prestar atenção ao que eles dizem: "vamos ser nós, e não os judeus israelitas, a decidir o futuro de uma Palestina livre". Haverá espaço para toda a gente, e tempo para conversar sobre isso, mas não vão abdicar dessa liderança. No futuro próximo, teremos uma nova espécie de Carta Nacional, como a de 1968, e provavelmente uma nova Organização para a Libertação da Palestina, que incluirá grupos políticos islâmicos, mas terá uma presença muito mais forte da sociedade civil palestina. Já vemos alguns sinais disso, mas é um processo longo. Não acontece num dia. 

As pessoas em Jenin e Nablus pensam no dia de amanhã, não no dia depois de amanhã. Pensam na sua sobrevivência, pensam se será melhor lutar e morrer ou não lutar e deixar a humilhação continuar. As autoridades israelitas humilham e abusam os palestinos, diária e quotidianamente, de formas horríveis. E permitem que os colonos sejam ainda piores na sua crueldade. 

Os jovens, desempregados e desesperados, escolhem lutar. Morrerão, provavelmente. Mas, para esses, é melhor morrer mártir que viver em humilhação, sem dignidade, num medo constante da morte, do assédio, da violência. As gerações mais velhas dirão: "também isto passará", "é preciso acreditar na vontade de Deus". Deve haver quem acredite na vontade da "comunidade internacional". Haverá reações diferentes, mas há um núcleo forte na sociedade civil palestina que sabe o que está a fazer e tenta trabalhar com governos e organizações estrangeiras na denúncia do apartheid. E a sua principal questão para esses governos e organizações é: "se Israel é considerado um apartheid, porque é que vocês não fazem nada?".


"A radicalização da sociedade civil israelita é, primeiro, resultado do sistema educativo criado e desenvolvido por Israel. As novas gerações estão mais dispostas a praticar atos brutais e cruéis contra os palestinos"

E porquê?

A resposta difere de lugar para lugar. Na Europa, a sombra do Holocausto e do antissemitismo tem um papel muito importante na incapacitação de qualquer tentativa de abordagem política à questão. Há muita preocupação em se ser considerado antissemita. As novas gerações de políticos, praticamente todos nascidos depois da II Guerra Mundial, concordam com as velhas: a colonização da Palestina é uma óptima solução para o "problema judeu". É uma pena, porque não há qualquer problema judeu na Europa hoje em dia.

O problema é que quando alguém é racista contra um grupo de pessoas, e não lida com isso, então será racista com qualquer grupo. Neste momento, o racismo europeu está direcionado contra muçulmanos, ciganos e refugiados africanos. E esse racismo existe porque a Europa nunca lidou devidamente com o seu racismo contra os judeus. O sionismo ofereceu aos europeus uma solução demasiado fácil para o seu antissemitismo. 

Nos Estados Unidos, por sua vez, há uma comunidade sionista cristã muito forte politicamente e que acredita que Israel representa a consumação da vontade de Deus, da qual não se pode duvidar. O lóbi israelita também é muito forte e garante que a política americana não se esquece de Israel. Depois, há uma série de governos que precisam das tecnologias militares israelitas e do seu saber-fazer securitário para lidar com os seus problemas domésticos. São várias as cínicas razões que muitos governos arranjam para não falar do apartheid em Israel.

Mencionou a humilhação diária do povo palestino. Nos últimos meses, tem estado na Palestina a fazer trabalho de campo. Como é que essa humilhação se expressa no dia-a-dia dos palestinos?

Há centenas de exemplos. Pense num dia normal, aqui, em Portugal, e lá será completamente diferente. É o momento no posto de controlo, em que te despem dos pés à cabeça, em frente a toda a gente. É seres detido sem julgamento, sem saberes porque foste detido. É seres deixado num campo, por horas, algemado e vendado, porque a polícia não gostou da tua postura ou da tua presença. É a possibilidade de um soldado entrar em tua casa, destruir o que quiser e roubar o que sobrar. É não permitir os teus filhos irem à escola. É fazer-te perder o emprego porque demoraste demasiado tempo no posto de controlo e chegaste atrasado. É destruir o teu olival, se fores agricultor. 

Depois, há a atividade terrorista dos colonos: queimam colheitas, casas, carros, envenenam árvores, animais domésticos, espancam e matam pessoas. A cada minuto uma coisa destas acontece a um palestino. Não acontece a toda a gente ao mesmo tempo, mas toda a gente vive, a qualquer hora do dia, na possibilidade de que algo assim lhe aconteça. 

A tua vida está nas mãos de polícias e soldados israelitas, que podem fazer contigo o que bem entenderem, mais do que em qualquer ditadura. É uma maneira assustadora de viver. É por isso que os palestinos lutam com tudo o que têm — chegando até ao cúmulo horrível de fazer do corpo uma bomba. Quando olhamos para um palestino que sai à rua com uma faca, sabemos que o faz por desespero. Ele tem perfeita noção de que será abatido a tiro. Nas notícias dirão que os palestinos não estão a agir da forma correta, mas não falarão do desespero a que estão condenados.