Sociólogo. Professor na Universidade Europeia e investigador no Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa. 

Como argumenta um conservador?

A retórica conservadora organiza-se historicamente de acordo com três teses: a da perversidade, a da futilidade e a do risco. As três visam desacreditar as políticas progressistas e ainda hoje gozam de uma saúde de ferro no debate público.

Recensão
17 Fevereiro 2022

Albert O. Hirschman (1915-2012), economista de orientação progressista, escreveu um livro brilhante sobre a argumentação dos conservadores: The Rethoric of Reaction (publicado em português como O pensamento conservador ou A retórica da intransigência). Nele  uma deliciosa e fina ironia ao longo das suas escassas duzentas páginas: às vezes, na política, os nossos adversários percebem-nos melhor do que os nossos correligionários.

Hirschman abre o seu texto com a seguinte pergunta: como pode alguém ser conservador? Perante a estranheza que lhe provoca quem se opõe à sua visão do mundo, Hirschman interroga-se sobre o modo de argumentar do conservadorismo. Ou, mais especificamente, propõe um percurso histórico por duzentos anos de retórica reacionária para saber como é que os conservadores pensaram desde o século XVIII até aos dias de hoje.

E porque é isto relevante? Para responder, o melhor é regressar a 1991, quando o livro foi publicado. Naquele então, havia pelo menos uma década que conservadores e liberais, dos velhos e dos novos, e dos dois lados do Atlântico, fustigavam o Estado-Providência. Acusavam-no de ser dispendioso, de abafar o empreendimento individual ou de promover a ineficiência. Daí que no debate público, a crise do Estado benfeitor fosse um tema recorrente. Como acontece com todas as crises, os peritos foram convocados para emitir o seu parecer. A Fundação Ford organizou um desses foros de consulta e entre esses peritos estava Hirschman.

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The Rhetoric of Reaction
Capa do livro de Albert Hirschman em inglês.

O economista  contava com uma obra ampla focada em temas como a economia do desenvolvimento e do planeamento ou a história do capitalismo. A sua experiência de vida também era rica: fugiu de Alemanha nazi em 1933, formou-se em França, Itália e Reino Unido, combateu com as Brigadas Internacionais em defesa do governo republicano na Guerra de Espanha, rumou aos Estados Unidos, trabalhou na Colômbia e regressou para dar aulas nas universidades de Harvard, Columbia e Princeton.

Hirschman respondeu ao pedido da Fundação Ford e optou por uma abordagem singular. Articulando economia, história, história do pensamento e ciência política, o autor não se focou na crise do Estado-Providência, mas sim nos seus críticos, tentando entender como estes tinham chegado até aí e quem é que os tinha precedido. Essa é, pois, a origem do livro.

O seu ponto de partida é simples: para entender a argumentação conservadora  é necessário, em primeiro lugar, fixar aquilo que é progressista. E, para Hirschman, progressista é o avanço dos direitos da cidadania desde o século XVIII até aos nossos dias, tal como descrito na clássica palestra Cidadania e classe social (1950), de T.H. Marshall.

A consolidação da cidadania conta com três vagas históricas. A primeira, que corresponde às revoluções francesa e americana, focou-se no desenvolvimento das liberdades individuais de expressão, reunião e justiça equitativa. A segunda, enquadrada no século XIX, relaciona-se com a emergência dos direitos de participação no governo político, entre os quais se destaca o sufrágio universal. A terceira e última, concretizada no século XX, refere-se à componente social da cidadania, ligada ao direito à saúde, à educação e à proteção vital. Cada uma destas vagas contou com a oposição de conservadores de diferente pelagem e condição. Entre os mais ilustres, destacam-se Edmund Burke, Alexis de Tocqueville, Joseph de Maistre, Gustave Le Bon, Gaetano Mosca, Vilfredo Pareto, Friedrich Hayek ou Samuel Hutington.

Face ao avanço dos direitos civis, políticos e sociais, os conservadores esgrimiram diversos argumentos. Ou, dito de um outro modo, valeram-se da retórica para manifestar o seu desacordo. Costumamos associar a retórica à artificialidade e à fala pretensiosa. Hirschman utiliza um conceito mais forte de retórica, não necessariamente vinculado à pomposidade do discurso, mas sim à necessidade de persuadir o interlocutor.

No debate intelectual, a persuasão passa por oferecer provas que possam ser sujeitas a um exame racional. Mas também são usadas as metáforas, as histórias, as comparações ou os modelos exemplares. Isto é, entram em jogo os factos e as evidências empíricas, juntamente com os recursos de estilo. Esta é a retórica que interessa a Hirschmann e a que procura desvendar na reação conservadora ao avanço da cidadania.

Historicamente, a retórica conservadora organiza-se de acordo com três teses: a tese da perversidade, da futilidade e do risco. As três visam desacreditar as políticas progressistas. Talvez, a melhor maneira de as entender, seja percorrer a alguns exemplos atuais. Dessa forma, podemos constatar que não falamos apenas sobre o passado. A retórica conservadora goza, infelizmente em muitos casos, de uma saúde de ferro. Para isso, vou utilizar dois artigos escritos neste jornal (Os mundos e fundos do RSI (I): Ódios de estimação e Os mundos e fundos do RSI (II): sair do poço) por Rafaela Cortez sobre Rendimento Social de Inserção (RSI).

A tese da perversidade diz-nos que qualquer medida política progressista dirigida à melhoria ou à correção de uma dada situação social tem por resultado um agravamento daquilo que tenciona ser melhorado ou corrigido. É um diagnóstico cruel do porvir baseado na ideia de que as políticas produzem o efeito contrário ao pretendido. Isso acontece por uma combinação de boa vontade e ignorância do legislador, quem não tem em conta fatores decisivos ou não pode antecipar as consequências imprevistas das suas propostas. Hirschman rememora, neste ponto, as reflexões de Edmund Burke sobre a revolução francesa.

Para o pensador irlandês, a tríade “liberdade, igualdade e fraternidade” desabou, paradoxalmente, na tirania do Comité de Salvação Pública, no reinado do Terror e na ditadura bonapartista.

O progresso cívico não é feito tão só de lutas materiais. Hirschman ensina-nos que uma parte da disputa com o conservadorismo desenrolou-se e continua a desenrolar-se no campo da retórica.

Olhando para a atualidade, quando o CHEGA apresenta o seu projeto de resolução em agosto de 2020 sobre o RSI, joga também a carta da perversidade. O projeto diz que a medida desincentiva a integração social, pois convida as pessoas a não procurar emprego e, consequentemente, a não contribuir com os seus impostos para o bem-estar da comunidade. E se não contribuem, a comunidade acabará por pô-los de lado. O RSI acaba por gerar um resultado perverso: aumenta a desintegração daqueles que previamente nem sequer estavam integrados.

Segundo a tese da futilidade, as tentativas de melhoria ou de correção de um problema social nunca conseguem atingir o núcleo do próprio problema. São medidas cosméticas que ficam pela superfície. Ou, por outras palavras, medidas essencialmente inúteis. Hirschman lembra-se aqui de Vilfredo Pareto e de Gaetano Mosca. Para eles, a extensão do sufrágio nunca afetaria substancialmente as estruturas de domínio nas sociedades. Com mais ou menos votos, sempre haverá uma vasta majoria sem poder e uma minoria de poderosos.

Hoje, o Chega também recorre à futilidade: o RSI não funciona porque é aplicado a populações que vivem num estado permanente de acomodação e conformação. Contra isso, qualquer subsídio nada pode fazer. Ou seja, o RSI não penetra no fundo do problema. E como não confronta o busílis da questão, as populações acomodadas e conformadas limitam-se a aguardar pela chegada do subsídio. Trata-se da famosa “cultura da subsidiodependência” das “comunidades subsídio-dependentes”.

Para a tese do risco, os custos provocados pelas políticas progressistas não compensam os benefícios que supostamente trazem consigo. As reformas podem ter aspetos positivos, mas em seu nome não vale a pena arriscar normas, leis ou instituições bem valorizados pela sociedade. Hirschman olha, por exemplo, para Friedrich Hayek. Segundo o pensador austríaco, a ampliação das funções e a extensão do Estado benfeitor, embora possam ser positivos para alguns grupos da sociedade, ameaçam a liberdade individual e o sistema democrático.

Mais próximos de nós, vale a pena recuar até 1993 e 1994, quando se apresentaram os primeiros projetos de lei sobre o RSI pelo PCP e pelo PS. Não foram aprovados e contaram com a oposição do PSD e do CDS. A razão da sua negativa prendia-se com a estabilidade da Segurança Social. Se o projeto avançasse, o sistema seria colocado sob pressão pela existência de um novo subsídio. O melhor seria não aprovar nada que ameaçasse algo que os portugueses viam com bons olhos.

Os conservadores cultivaram a perversidade, a futilidade e o risco para discutir o progresso da cidadania. São teses historicamente, mas não intrinsecamente, conservadoras. Nada impede que um progressista se expresse nos mesmos termos. O interessante e mais apelativo desta questão é ver como Hirschman, um economista, chama a atenção para a importância do discurso e da argumentação no debate. E como este não só é estruturado pelos factos ou pelos dados, mas também pelas figuras de estilo. Isto revela duas coisas.

Por um lado, que há vida além da visão redutora, convencional, dominante e técnica da economia. Ou seja, existe uma rica tradição heterodoxa da qual Hirschman é um bom representante. Por outro lado, a leitura de The Rethoric of Reaction é sempre aconselhável para a esquerda que ainda desconfia da importância do discurso e das componentes culturais da política.

O progresso cívico não é feito tão só de lutas materiais. Hirschman ensina-nos que os avanços também tiveram de confrontar a oposição dos argumentos, que uma parte da disputa com o conservadorismo desenrolou-se e continua a desenrolar-se no campo da retórica. Em suma, que é necessário convencer para vencer.