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 A instalação The Love Between in Us da autoria de Verkron no Festival Iminente. | Fotografia: José Amaral 

Verkron: "A nossa arte é uma arma contra o racismo e as desigualdades"

Em entrevista ao Setenta e Quatro, o coletivo Verkron fala sobre a importância da arte urbana como resistência à sociedade patriarcal. Criticando a "cultura fundamentada por ações e princípios ocidentalizados", aponta a necessidade de se olhar para a arte como meio de combate aos discursos racistas e às desigualdades sociais. 

Entrevista
13 Outubro 2022

Há mais de uma década que Irad, Mac, Resem e Hemak partilham um caminho: o projeto Verkron. As paredes que recebem a sua arte estão espalhadas por diferentes países, mas é em Angola que têm a sua base. Integraram a mais recente edição do Festival Iminente, em Lisboa. Pintaram murais, e criaram uma instalação no recinto do festival, no Parque da Matinha, na freguesia das Avenidas Novas, também em Lisboa.

Todos estes elementos vivem em países diferentes, entre Angola, Guiné e Portugal. Poucos anos depois de se juntarem, os quatro artistas multidisciplinares com apelido Verkron, foram catapultados para o universo da arte urbana, dos murais às galerias de arte em Luanda, das conversas entre pares às opiniões de especialistas, das redes sociais aos festivais.

Sentem que em Angola a sua arte "desobedece" ao status quo. Em Luanda, onde “a tolerância é maior” admitem não seguir as convenções impostas, mas mesmo aí, já viram demasiadas vezes “interesses exteriores a usarem a arte urbana para outros objetivos que não são propriamente promover a arte e a cultura”.

Dependemos de quem nos lê. Contribui aqui.

Partindo das suas obras, contam ao Setenta e Quatro como resistem a “uma cultura fundamentada em ações e pensamentos ocidentalizados”. No constante “desacreditar” da arte urbana africana, relatam a intervenção de forças de segurança em bairros, “onde o grafiti não é bem-vindo”. Porquê? “Porque ainda há muitas políticas de exclusão na sociedade angolana, como consequência de um longo e brutal período de colonização." 

Quando se apresentam dizem evocar “utopias piratas ou zonas autónomas temporárias”. Referem-se a um campo de liberdade a partir do contexto que vivem em Luanda?

Acreditamos que é no campo das interações humanas que se encontra o verdadeiro trabalho a ser desenvolvido. A forma como nos relacionamos uns com os outros acaba por refletir-se diretamente na forma como nos relacionamos com a sociedade e com o planeta. As utopias e espaços autónomos que tentamos evocar são lugares de reimaginar o ser humano no processo de cura consigo e com a sociedade. 

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O coletivo nasceu há mais de uma década, com o objetivo de criar um lugar autónomo com uma filosofia de vida enraizada nas nossas próprias experiências. | Fotografia: coletivo Verkron 

Em primeiro lugar, somos privilegiados por poder definir o significado destas palavras enquanto artistas e no nosso trabalho. Enquanto coletivo multidisciplinar é difícil pensar a liberdade na arte dentro de um contexto só, ou dentro de um meio de expressão artística. Somos corpos negros que vivem em Luanda, por isso absorvemos principalmente as dinâmicas socioculturais desta cidade. 

E que dinâmicas são essas? Há muitos aspetos da cultura africana deixados de fora das narrativas dominantes? 

Pensamos em comunidade, em grupo, em sociedade como um organismo vivo, e isso entra em contraste com as políticas de exclusão que se vive em muitos aspectos da sociedade angolana, como consequência de um longo e brutal período de colonização. As narrativas dominantes estruturam-se em torno do eu contra a outra [narrativa]. Criam narrativas ilusórias que nos isolam em casulos e nos levam a acreditar que somos elementos isolados, quando na verdade somos parte de um mesmo organismo social vivo que é Angola.

Ainda se vive uma cultura fundamentada em ações e pensamentos ocidentalizados. Os interesses em usar a arte urbana para outros objetivos que não são propriamente os de promoção da arte e da cultura são cada vez maiores. A tendência é explorar a popularidade da arte que se faz nas ruas por “verdadeiros artistas de rua” para promover e anunciar campanhas que diferem do que é a nossa essência. 

The Love Between Us [obra exposta no Festival Iminente] é também uma crítica a esse pensamento ocidentalizado a que se referem, ainda que relacionado com temáticas de género?

Esta obra pode decifrar várias leituras, mas é importante reforçarmos que a masculinidade, o conceito em si, o “corpo” que queremos desmembrar e desmistificar, existe em todas as sociedades. Debater a masculinidade é sempre uma das questões mais importantes e urgentes nas nossas sociedades. The Love Between Us fala sobre os processos de cura e da construção da masculinidade tóxica. A instalação propõe olhar para a fase da pré-adolescência e adolescência masculina de forma mais responsável, com maior sensibilidade.

É preciso perceber que muitas das questões que queremos curar hoje no mundo são continuamente perpetuadas nessa fase. Continuamos a não ver o ponto mais importante: emoções reprimidas e incapacidade de lidar com os sentimentos de exclusão, que posteriormente acabam por levar à infantilização de homens adultos.

No princípio achámos um bocadinho descontextualizado criar a peça fora de Angola, porque é uma consequência do período em que vivíamos no nosso estúdio, localizado no bairro marginalizado do Sambizanga. Observámos a falta de infraestruturas de Educação, o que tirava aos jovens qualquer oportunidade para que se descobrissem a nível emocional. 

No ano passado, o Resem criou uma série de fotografias com um grupo de adolescentes que frequentavam o nosso estúdio. Foi a partir dessas fotografias que nasceu esta instalação. Apesar do nosso receio, acabou por funcionar muito bem em Lisboa. Há muitas realidades relativas no nosso mundo. As crianças são obrigadas a crescer de forma rápida sem terem tempo para descobrir o seu universo emocional. Isto que te dizemos existe a cada passo que damos nos nossos bairros, como em qualquer outra parte do mundo. Para não falar de todos os outros fatores que se perpetuam dando base a um discurso problemático e tóxico, envolvendo racismo e maus-tratos. 

Acreditam que esta realidade não é invisibilizada? Há projetos culturais em diversos bairros sociais que tentam desmistificar valores e ideologias...

A nossa existência devia ser revolucionária. Podemos mencionar muita coisa sobre isso. Principalmente como corpo negro, africano. A maior parte dos bairros são de autoconstrução, pobre, maioritariamente habitado por pessoas não-brancas, imigrantes ou descendentes de imigrantes. 

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O coletivo defende que a arte urbana pode influenciar no desenvolvimento de novas estratégias sociais, culturais e políticas de um país. | Fotografia: coletivo Verkron. 

O nosso trabalho é uma arma que expõe coisas menos positivas que acontecem pelo mundo fora e este é também o nosso objetivo: derrubar estes discursos.

Numa das entrevistas que deram, o Resem mencionou a importância de uma luta por “um espaço exterior”. Criticou também que “não adianta lutarmos pelo posicionamento de outras pessoas”. Há um pensamento muito definido e edificado na Luanda moderna?

Luanda por si só é uma cidade que emana caos e muito desse caos é trazido por estímulos externos causados pela própria cidade. Várias dessas "almas velhas", que habitam essa falsa modernidade, ainda têm uma ligação com vários traumas causados pelo período caótico de esperança, que se ecoa enquanto nos construímos como uma nação.

E há espaço de pensamento para mudar ou refletir essas vivências de uma cidade, de um país em crise económica e social, ainda com os estilhaços da guerra civil e da ocupação colonial?

É meio hipotético pensar que a arte por si só tem este poder, uma sociedade é constituída por vários intervenientes. Obviamente a arte tem um papel significativo em qualquer mudança ou revolução social, mas em Angola ainda permanecem vivos muitos traumas. É necessário que muitas responsabilizações advenham de vários setores sociais que teimam em não se responsabilizar, especificamente o governo e depois toda uma sociedade civil. 

O nosso dever, ou o que nos propomos enquanto artistas, é continuar a fomentar um diálogo, na tentativa de que as nossas vozes não caiam no esquecimento. É bonito ver como várias frentes ativistas têm moldado a face da nossa sociedade, apesar de todas as adversidades que vivemos durante e após o regime colonial. 

O vosso trabalho está maioritariamente ligado aos espaços públicos abandonados, como é o caso do "Hotel Globo", em Luanda, e a grandes murais em lugares que levantam o véu sobre questões sociais e revolucionárias.

O “Hotel Globo”é um espaço cheio de vida. Não é de todo um lugar que consideremos abandonado. É um lugar de resistência. O que há de mais político em nós é o nosso posicionamento enquanto coletivo, criar laços, curar relações... e isso para muita gente pode ser só idealizações.

A arte urbana envolve, agrega e estimula o melhor que há em nós, isto é um facto. Observa como as comunidades se envolvem quando a intervenção de artistas urbanos está em processo na comunidade, no bairro.

A arte urbana deve ser marginalizada na sua forma de pensar e propor, sendo que em questões de aceitação social a arte urbana desenvolveu os seus próprios mecanismos de inserção.

Outras manifestações artísticas brotam da envolvência de todos neste processo que muda e derruba paradigmas, oferece perspetivas novas aos moradores, inspira os sonhos das crianças e da juventude, enriquece e estimula o gosto pelo belo e pela harmonia. 

Falamos também de tornar não-lugares em lugares? 

Sim. Somos da opinião que street art é a arte de sobrepor, de agredir e de propor. Somos da opinião que a arte urbana deve ser marginalizada na sua forma de pensar e propor, sendo que em questões de aceitação social a arte urbana desenvolveu os seus próprios mecanismos de inserção. Esses lugares de pertença são nossos por direito. 

O nosso papel de responsabilidade é este. Agora, de que forma e como estas intervenções mudam os lugares, depende muito dos contextos sociais em que elas estão inseridas. A grande verdade é que a street art tem um grande poder para discursar, embelezar, gentrificar, criar sentimento de comunidade e por aí em diante. 

"Luanda por si só é uma cidade que emana caos e muito desse caos é trazido por estímulos externos causados pela própria cidade."

O percurso feito por uma série de artistas e curadores até aqui mostrou o potencial que a arte tem no espaço público e nas comunidades onde ele é feito. Há uma série de projetos que têm a arte urbana na sua génese. Agora, estamos num caminho inverso disso, numa sobre-exposição em que há um impacto negativo da arte no espaço público, conduzindo à gentrificação, por causa de todo o valor e atenção que consegue trazer a esses sítios. 

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Os quatro artistas multidisciplinares com apelido Verkron, foram catapultados para o universo da arte urbana, mas não se ficam por aqui. Lola & Mami, filme de Resem, foi um dos vencedores do Angola Internacional Film Festival.​​​​​​​​​​

É uma discussão que se deve ter até dentro da comunidade artística, mas também mostra todo o valor que essa arte e que o ativismo cultural pode ter em termos de impacto nos sítios onde são feitos. Ao trabalhar estas vertentes noutras zonas mais periféricas, ao trazer-se essa energia para esses sítios, é sempre um ganho, não só para essas zonas como para as próprias comunidades. Até para alguns artistas que acabam por ter contacto com uma realidade que muitas vezes desconhecem. 

A nível nacional e internacional, a arte urbana ou o grafiti ainda são vistos como meio artístico marginalizado e, por vezes, ilegal. Há relatos de intervenções policiais que envolvem violência. 

Como qualquer artista de rua, obviamente que passámos por estas experiências no início, mas esta não é a nossa realidade agora, estamos mais engajados em criar diálogos com diferentes estruturas sociais. Isso levou-nos a fazer parcerias com órgãos de representação social. 

"Observámos a falta de infraestruturas de Educação, o que tirava aos jovens qualquer oportunidade para que se descobrissem a nível emocional."

Tendo as ruas e espaços urbanos como campo de intervenção, a arte urbana acaba por se tornar a arte das massas, a arte do povo. Nenhum outro meio de expressão artística consegue comunicar com tanta gente e de diferentes estratos sociais de uma só vez. É por isso que a arte urbana tem esta facilidade de comunicar e de dialogar com bairros e cidades.

Olhando para isto com outro filtro, muitas coisas anormais ocupam o seu espaço e nós deixamos. Com o tempo deixamos de reivindicar e acabamos por entrar nesse anormal. Ainda assim, faltam muitos planos e estratégias concretas e suficientes com foco na educação, na saúde e na família sustentada na ética, na cultura e em valores morais. 

Pegando nesses espaços de estratégia que referiram, quais são as possíveis soluções ou caminhos a seguir para que haja uma maior integração e conhecimento desses valores?

Enquanto artistas temos como responsabilidade o prazer de poder representar e demonstrar que a arte urbana também tem o seu espaço de coexistência com outras disciplinas artísticas, em lugares de galeria.

O problema é que há um grande perigo da arte urbana se tornar em arte de consumo e não de intervenção social, daí vem o excesso de produção. A arte tem este poder de refletir e expressar de forma muito transparente o que cada artista vive de dentro para fora e de fora para dentro. Por isso, sim, somos todas e todos parte do mesmo mal e da mesma cura. Enquanto não for derrubado este muro em Angola, Guiné, Luanda, Portugal, não vai ser em lado algum.

Isto também por não fazerem o que é expectável?

Ainda existe espaço para não teres de pedir licença, não seguimos narrativas e tendências. Por isso, há espaço para não fazer o expectável como para invocar “espaços piratas”.