Manifestação antirracista Portugal

Miguel Dores: “Há uma negação profunda do racismo ligada a projetos celebrativos”

No documentário Alcindo, o antropólogo conta-nos como a reformulação do mito do excecionalismo colonial português nos impediu de falar de uma “história violenta e de um presente marcado por violências e desigualdades”. E como esse discurso contribuiu para criar o contexto que levou ao assassínio de Alcindo Monteiro. 

Entrevista
29 Outubro 2021

10 de junho de 2020, Dia de Portugal. A Câmara de Lisboa homenageia Alcindo Monteiro com a instalação de uma placa com o seu nome na Rua Garrett, onde há precisamente 25 anos foi brutalmente assassinado por neonazis. A poucos metros de distância, na Praça Luís de Camões, um dos assassinos, João Martins, participa num comício do Partido Nacional Renovador, defendendo as mesmas ideias que o levaram a matar naquela noite. 

São as duas faces do feriado nacional: por um lado, a do reconhecer que o racismo mata e do seu impacto na sociedade e, por outro, a do elogio da história colonial portuguesa e da pureza da raça, de como o país recusa refletir sobre o seu legado histórico.

Foi com esta dualidade em pano de fundo que o antropólogo Miguel Dores se dedicou por mais de dois anos ao tema da sua tese de mestrado: o homicídio de Alcindo Monteiro. O documentário Alcindo, baseado na tese, estreou no domingo passado na edição deste ano do Doc’Lisboa e o Setenta e Quatro falou com Miguel Dores, o realizador.

O filme segue a história do dia de Portugal, explica o realizador, entrando na fatídica noite de 10 de junho de 1995, quando dez pessoas racializadas foram espancadas e Alcindo Monteiro, português de origem cabo-verdiana, assassinado. “O dia em que este linchamento racial acontece é um momento tão carregado de símbolos – a violência nas claques, o Dia de Portugal, o momento histórico em que acontece – como se fosse uma caixa de ressonância. E o filme opera nessa caixa”, explica.

Mas o documentário vai além do brutal momento racista: “oferece uma tentativa de compreensão profunda sobre aquilo que aconteceu a Alcindo naquela noite, e isso é obviamente extrapolar a dimensão biográfica dele, é preciso discutir todo um projeto de país”, onde o racismo institucional e a violência policial fazem parte do quotidiano de milhares de pessoas racializadas. Ao mesmo tempo que a glorificação do colonialismo é uma constante e o país se recusa a ver-se ao espelho, a enfrentar o racismo e o seu passado de massacres coloniais.

“Há uma negação profunda do racismo ligada a estes projetos celebrativos. Tudo isto é uma muralha de aço que não permite discutir na prática os casos concretos de violência, assédio, as dimensões de desigualdade que cruzam a sociedade”, critica.

Um dos grandes símbolos dessa glorificação, desse projeto de país, continua Miguel Dores, é precisamente o Dia de Portugal. Na sequência do 25 de Abril de 1974, o Dia de Portugal, até então conhecido como “Dia de Portugal e da Raça”, foi abolido pelo seu cunho marcadamente nacionalista e fascizante, mas não tardou a regressar depois de a contra-revolução tomar conta do país.

Em 1977, o então presidente Ramalho Eanes voltou a instituí-lo, e fez disso pompa e circunstância com um discurso na televisão. “O discurso de Ramalho Eanes no primeiro dia de Portugal apresenta logo as suas matrizes: a hiper identificação linguística, a lusofonia e a diáspora portuguesa pelo mundo, aqui mais ligada à ideia da emigração portuguesa, ao conglomerado de ideias de uma evocação ecuménica de Portugal, de uma entropia portuguesa no mundo”, afirma o antropólogo. 

“Essa criminalização e guetização são usadas pela extrema-direita para linchar, ou seja, há uma permissão para matar em torno da relação da ameaça, uma muito vincada na história política colonial.”

Um discurso que “teve impactos muito grandes na forma como nos relacionamos com as migrações e o racismo, porque é um discurso que barra a possibilidade de uma história que é violenta e de um presente marcado por violência e desigualdades”. Funciona, em suma, como “uma muralha de aço”. 

As antigas colónias tinham conquistado a independência há poucos anos e a classe política do país estava à procura de um novo rumo geoestratégico, virando-se para a Europa, com a entrada em 1986 na Comunidade Económica Europeia a ser o clímax. Mas o discurso colonial português não desapareceu, transformou-se com a ideia da lusofonia e com a narrativa histórica de o colonialismo português ter sido excecional – humanista e civilizador, ao contrário dos restantes. 

“Precisamos de perceber que houve uma reconstrução do discurso salazarista sobre Portugal no período pós-revolucionário”, garante Miguel Dores. “O Dia de Portugal está muito ligado a essa história, vemos como um certo centro político – Ramalho Eanes, Manuel Alegre e Mário Soares – fez a reconstrução de um projeto lusotropicalista para Portugal”.

Como exemplo dessa reconstrução, Miguel Dores refere imagens que encontrou no arquivo da RTP. “Há um arquivo muito evidente em que Mário Soares vai a Pernambuco [no Brasil] visitar Gilberto Freire [sociólogo fundador da tese lusotropicalista], já velhíssimo, e cumprimenta-o pela sua grande obra. E diz que os democratas portugueses abraçavam o lusotropicalismo, essa ideia do legado universal do povo português”, revela o realizador. “É um discurso absolutamente musculado do Estado Novo – o de Portugal não ser um país pequeno – e está absolutamente vinculado à forma como o país mantém colónias até tão tarde”, salienta. 

Ou seja, “não é só uma forma de significação do seu passado colonial, tem também vívidas correlações como Portugal constrói concretamente o seu projeto de continuidade colonial”.

Um projeto que exclui automaticamente milhares de pessoas racializadas da nossa história coletiva, relegando-as para um papel (no mínimo) subalterno, enquanto tem “matrizes económicas muito marcadas”. Seja por causa dos laços económicos neocoloniais seja por precisar de mão-de-obra imigrante (nas décadas de 1980 e 1990 era sobretudo oriunda das antigas colónias) para os mais diversos sectores da economia nacional.

Daí que Miguel Dores aborde também no documentário a questão da criminalização da imigração, da criação de fronteiras urbanas onde os corpos negros não são permitidos, tal como nos dias de hoje. “Naquela altura [1995] estava muito em voga um tratamento das migrações como ameaça e de criminalização do sujeito imigrante, sobretudo na figura do clandestino, do ilegal”, explica o realizador. “O Dias Loureiro [então ministro da Administração Interna] é o grande construtor dessa ideia a partir das políticas públicas e de um discurso de Estado, e isso corresponde também à assinatura dos Acordos de Schengen, em 1993”.

Políticas públicas que encontraram nas narrativas mediáticas um aliado. As televisões privadas recém-criadas SIC e TVI apontaram o dedo aos bairros da periferia de Lisboa como epicentros de criminalidade e de violência, estabelecendo como ameaça os ditos gangues, supostamente fruto da imigração. “Essa criminalização e guetização são usadas pela extrema-direita para linchar, ou seja, há uma permissão para matar em torno da relação da ameaça, uma muito vincada na história política colonial”, explica, referindo-se a “séculos de bestialização” dos sujeitos negros para justificar a escravatura e a colonização, mas também crimes praticados durante a Guerra Colonial.

Uma dita “bestialização” não permitida no centro da Lisboa. “O filme tenta discutir fronteiras urbanas, essa ideia do cerceamento do uso do centro e que está muito marcado no caso de Alcindo Monteiro, quase como se fosse a resposta à criação de uma noite negra no Bairro Alto”, continua. E faz comparações com o presente: “Repego na manifestação da Avenida da Liberdade para falar dessa fronteira urbana, do estabelecimento dos lugares que podem ser habitados por corpos negros e os que não o podem”. Em janeiro de 2019, mais de uma centena de manifestantes antirracistas manifestaram-se contra a violência policial no bairro da Jamaica, no Seixal, e a polícia respondeu com balas de borracha.

É neste caldo de elogio ao legado histórico colonial, de criminalização da imigração, de cerceamento do espaço público a corpos racializados que a trágica noite de 10 de junho de 1995 aconteceu.

“Um caso de inoperância injustificável”

10 de Junho de 1995, Dia de Portugal. Alcindo Monteiro sai do barco que o trouxe do Barreiro para ir dançar ao Bairro Alto. Estava sozinho a descer a Rua Garrett quando, subitamente, foi puxado por um grupo de neonazis, cercado e brutalmente espancado. Arrastaram-no pela rua abaixo, desferiram-lhe mais golpes. Até que um dos neonazis lhe deu o golpe fatal: com um objeto de cimento, deu-lhe duas pancadas na cabeça. Dirigiram-se depois para o Cais do Sodré, onde voltaram à carga uma última vez nessa noite. Dez pessoas negras foram espancadas e Alcindo Monteiro assassinado. Era o “dia da raça” para a extrema-direita.

“Duas horas a espancar pessoas. O acórdão é violentíssimo, é toda a descrição de cercar pessoas e lhes ferir golpes letais na cabeça”, explica Miguel Dores. “Era com o intuito táctico de não serem apanhados: fazia-se o cerco, espancava-se, espancava-se e seguia-se para o próximo. Há um momento em que o grupo se divide, volta a encontrar-se num certo momento, vê-se que há uma tentativa de confundir as autoridades”. Por isso mesmo foram condenados também por associação criminosa, enquanto a acusação de genocídio caiu já na parte final do julgamento.

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Miguel Dores
Miguel Dores dedicou-se por mais de dois anos a fazer o documentário Alcindo | Foto de Rafael Medeiros

Tudo começou quando os neonazis decidiram “atirar garrafas e agredir verbalmente pessoas negras, numa atitude provocatória”. Um pequeno grupo de jovens, três ou quatro, revoltaram-se e pediram satisfações. “Foram as primeiras vítimas, a partir daí [os neonazis] saem a correr e não param mais”.

A polícia demorou duas horas a dar resposta aos linchamentos da extrema-direita. “Parece-me óbvio que é um caso muito grande de inoperância injustificável da polícia por não ter mobilizado um aparelho policial claro, conciso, para parar os linchamentos”, quando existiam na zona no Bairro Alto cinco esquadras e não apenas uma como agora. As autoridades justificaram a falta de resposta com o jogo da final da Taça de Portugal, na qual o Sporting se sagrou campeão, e disseram ter sido informadas da violência bem mais tarde.

Porém, explica o antropólogo, “várias pessoas ligaram para a polícia mais cedo do que esta diz ter sido notificada”. “Falei com pessoas que disseram explicitamente à polícia que [neonazis] estavam no Bairro Alto e que, antes de tudo isto acontecer, já a tinham avisado sobre uma grande reunião de neonazis."

Abordar o passado para falar do presente

A Revolução de Abril e a descolonização tornaram a narrativa da pluricontinentalidade e da sociedade multirracial insignificante para uma nova geração de militantes de extrema-direita, vindos essencialmente da pequena burguesia e da classe trabalhadora das periferias das grandes cidades. À semelhança do resto do país, viraram-se para a Europa à procura de referências e encontraram-nas nos movimentos de boneheads (skinheads de extrema-direita) que praticavam violência nas ruas das grandes cidades europeias abraçando o racialismo, a ideia da pureza da raça.

Vestiam-se todos de forma bastante semelhante, código de pertença ao grupo: calças de ganga curtas e dobradas ao fundo, para mostrarem as botas de biqueira de aço, normalmente da britânica Doc Martins e Sendra, e t-shirts e calças de camuflado. Também usavam blusões negros e cabelo rapado.

“A análise que fiz das revistas nacionalistas e do Movimento de Ação Nacional [MAN] é justamente a da viragem para uma fase da extrema-direita com um objetivo popular em contraposição aos movimentos de extrema-direita que a antecedem", explica Miguel Dores. “A maior parte dos movimentos anteriores era liderada por altas patentes militares, intelectuais, classe alta. O MAN marca essa viragem para um movimento que se proletariza e que procura espaços de recrutamento populares: as claques de futebol são o maior exemplo disso, na medida em que os sindicatos estavam de algum modo blindados”.

A grande maioria dos assassinos de Alcindo Monteiro eram um espelho da nova composição social desta extrema-direita: “tirando o Nuno Cláudio Cerejeira, que vinha de famílias abastadas, a maior parte dos jovens – e o próprio acórdão é explícito – vem de famílias meio destruídas. Os jovens trabalhavam, e autonomizando-se cedo, ganhavam o salário mínimo da altura”. “Vemos uma realidade mais ou menos proletária, tínhamos um país a desindustrializar-se: ‘sou um jovem proletário do subúrbio e estão a tirar-me o trabalho’”, acrescenta.

Foi a primeira vez, refere Miguel Dores, que se “criou em Portugal um conflito com esta estrutura, e o caso Alcindo Monteiro acabou por ser a consequência bizarra”.

“O maior desafio [ao produzir o documentário] foi lidar pessoalmente com a dor insondável da família e o luto familiar que vem até aos dias de hoje”, disse Miguel Dores. 

Os assassinos de Alcindo Monteiro fizeram parte do MAN, mas em 1992 este dissolveu-se para evitar a provável extinção ordenada pelo Supremo Tribunal de Justiça. O MAN foi fundado em março de 1985 por um grupo de jovens da periferia de Lisboa e ficou marcado pelo uso da violência nas ruas portuguesas, até esta culminar no assassínio de José Carvalho, militante do trotskista Partido Socialista Revolucionário (PSR), na Rua da Palma a 28 de outubro de 1989. Foi a primeira vítima mortal às mãos da extrema-direita depois da ‘normalização’ democrática. 

Houve elementos do MAN que não viram com bons olhos a autodissolução do movimento e, portanto, criaram em 1991 a efémera Frente de Defesa Nacional. Os seus membros estavam ligados às claques de futebol e a final da Taça de Portugal ia disputar-se a 10 de Junho. Mais de 60 boneheads juntaram-se no restaurante O Ribeiro, em Cacilhas, para ver o jogo e celebrar o “dia da raça”, e daí partiram para o bar O Minhoto, no Bairro Alto. O desfecho é o que se conhece.

Entre o homicídio de Carvalho (1989) e o de Alcindo Monteiro (1995), “houve 60 ataques contra sujeitos racializados, segundo as contas do SOS Racismo”. “As pessoas [racializadas] não tinham um medo generalizado, mas sim de certos momentos da vida, sobretudo transportes e de vinda para o centro da cidade em períodos de lazer nocturnos”, diz Miguel Dores. “Aquilo que mais me dizem é que nas transições, ali nos barcos de Almada para Lisboa, do Barreiro para Lisboa, muitos jovens negros viviam esse medo de encontros. Havia histórias de pessoas atiradas ao rio, violências físicas de neonazis”. Era, portanto, uma questão de tempo até haver mais uma vítima mortal.

A morte de Alcindo Monteiro foi também um “momento de viragem”. “Até aquele momento as associações de imigrantes estavam muito mais focadas na interação local, no folclore, na ajuda intercomunitária, mas tinhas ali a nascer um movimento dos pioneiros do rap que estavam a construir um discurso antirracista reivindicativo sobre Portugal, de disputa do imaginário do país”, salienta o realizador. 

O racismo entrou na agenda mediática, organizaram-se manifestações antirracistas, e o SOS Racismo, criado na sequência do assassínio de Carvalho, e a Frente Anti-Racista ganharam força. “O facto de Alcindo ser português traz também a questão racial, do sujeito negro. É uma longa noite, mas também é um despertar.”

E é aqui que Miguel Dores usa o passado para falar sobre o presente. “Há uma crescente agenda de uma ideia securitista, de um inimigo público, e como isso está articulado com a reintrodução de mortes racializadas, seja por parte da população ou pelas forças de segurança. É a criação do outro que depois a extrema-direita se alimenta”, explica. “Estes momentos fazem-nos perceber como há um gesto e uma conjuntura de 1995 com parecenças com o que estamos a viver agora”, acrescenta, salientando haver “uma violência policial constante que marca sistematicamente a vida das populações negras, sobretudo nas periferias.”

O antropólogo refere-se à tortura de cinco jovens às mãos de polícias na esquadra de Alfragide em 2015, à violência policial no bairro da Jamaica, à repressão da manifestação da Avenida da Liberdade, à violência policial contra Cláudia Simões (por a filha não ter o passe de autocarro), ao assassínio de Luís Giovani em Bragança, ao homicídio do ucraniano Ihor Homenyuk nas instalações do SEF no aeroporto de Lisboa. As violências vão-se acumulando, e deixam de ser invisíveis. 

“Achei que contar esta história neste momento fazia não só todo o sentido como era necessária, era urgente”, reflete o antropólogo.

Consequências que Miguel Dores diz serem fruto da infiltração inorgânica da extrema-direita nas forças de segurança, das suas ideias racistas. “Não é por acaso que vemos setores da esquerda na polícia serem saneados dos sindicatos, não é por acaso que vemos André Ventura a propor leis para retirar a possibilidade de filmar ações policiais. Há um imbricamento desta violência para a possibilidade da ação impune da polícia”, explica.

Foi esta violência que deixou de ser invisível e o crescimento da extrema-direita que levaram Miguel Dores a regressar ao passado para reflectir sobre o presente. Fê-lo porque, à semelhança de tantos outros e outras, tem a “história de Alcindo encravada”. “Achei que contar esta história neste momento fazia não só todo o sentido como era necessária, era urgente”, reflecte.

“O maior desafio [ao produzir o documentário] foi lidar pessoalmente com a dor insondável da família e o luto familiar que vem até aos dias de hoje”, confessa. Houve outro, desta vez de ordem financeira, que mostra como o realizador se empenhou pessoalmente para que o filme chegasse às salas de cinema. 

“Fiz o filme sem nenhum recurso: gastei o meu subsídio de desemprego de um ano para conseguir fazer o filme”, revelou. Lançou ainda um crowdfunding, que recolheu mais de 12 mil euros, para poder terminar o filme: “serviu para pormos o filme em mãos de técnicos que o conseguissem colorir, fazer uma mistura de som que desse para salas de cinema, para fazer uma edição final em cima da minha montagem”.

O que vem a seguir? “Não sei se vou continuar a ser produtor de audiovisual, mas pode ser que continue a fazer filmes, não sei”, responde. A prioridade do momento é fazer com que o documentário chegue ao maior número de pessoas possível. 

Por agora, garante, está satisfeito por ter dado um empurrão para se acabar com a longa noite de Portugal, para que haja uma verdadeira reflexão sobre a nossa história coletiva, para que a existência do racismo deixe de ser negado. Mas sobretudo para que seja combatido.