foto_2

Foto: Ana Patrícia Silva 

Pussy Riot: “Somos o Inferno para a Rússia de Putin”

Saíram do país em digressão contra a invasão da Ucrânia pela Rússia. Portugal foi um dos destinos. Conversamos com Masha Alyokhina, um dos membros fundadores das Pussy Riot, sobre a perseguição de que é alvo, a sua fuga do país e o quão perigoso é denunciar a guerra na Rússia.

Entrevista
16 Junho 2022

Majia Alyokhina, mais conhecida por Masha, deixou a Rússia, contornou a prisão domiciliária e fugiu de uma nova ida para uma colónia penal. Desta vez foi detida por organizar uma manifestação contra a prisão do opositor de Putin, Alexei Navalny. Já é a sexta detenção, mas isso não é, para si, razão suficiente para não mais voltar à Rússia.

Agora é hora de “pensar na Ucrânia”. Foi por ela que a ativista russa ‘saltou’ fronteiras, com um fato de estafeta vestido. Primeiro Bielorrússia, depois Lituânia e seguiu-se a Europa ocidental. O seu objetivo era participar de corpo presente na digressão anti-guerra e anti-Putin das Pussy Riot, grupo do qual faz parte, e que estaria a angariar dinheiro para a construção de um hospital para crianças, em Kiev.  E assim foi. 

Foi num lugar onde os gulags viraram centros de correção, em Perm, mesmo às portas dos montes Urais, que Masha Alyokhina esteve durante 21 meses. Seguiram-se dias incontáveis em solitária, privada do sono, a trabalhar mais de 18 horas por dia, seis dias por semana, com uma greve de fome num corpo que já não deixava ao engano: “a primeira greve de fome é como o primeiro grande amor, confuso, mas ainda assim vale a pena”, disse durante o concerto. 

Tendo como pano de fundo a Casa da Música, no Porto, e o Capitólio em Lisboa, transportaram quem as ouvia para uma luta com mais de uma década contra a opressão russa. Voltaram a orar, a ‘berrar’ e a caracterizar um apelo que trazem consigo: fazer com que o governo de Putin seja destruído e, consequentemente, acabar com a guerra. 

Image
concerto_4
 Masha Alyokhina escapou da Rússia para participar na tour anti-Putin e anti-guerra com o coletivo Pussy Riot. |Foto: João Biscaia

Não gostam da definição de banda. “Chamam-nos uma brigada de teatro”. Por outras palavras, um coletivo. E pedem ao público que seja “o mais punk possível” para que a sua atitude seja um mote de reivindicação de direitos e liberdades. Numa série de sete atos as imagens, vídeos, palavras e sons desconcertantes que apresentaram em palco durante uma hora e meia, a um ritmo desconcertante, não deixam dúvidas: contavam uma epopeia do punk. Neste relato recorriam também ao Riot Days, publicado em 2018, com as experiências das numerosas penas a que Masha Alyokhina foi sujeita, assim como a história do coletivo. 

Com slogans assíduos que incitam à ação contra o regime de Putin, as performances reconstroem alguns dos momentos mais marcantes do percurso da banda, desde as primeiras ações na Praça Vermelha, passando pelo controverso episódio na Catedral de Cristo Salvador em que subiram ao altar para rezar o “Punk Prayer” (Oração Punk) e imploravam à Virgem que livrasse os russos de Vladimir Putin, a subsequente detenção das ativistas políticas, o julgamento e a prisão.

Com o concerto quase dado como terminado, voltam ao palco para cantarem uma última música sobre a guerra na Ucrânia, onde é reproduzida uma chamada desesperada de um soldado russo para a mãe: “Porque estão a chamar à guerra uma operação militar especial, mãe?”. O culminar é um longo grito com a palavra “Bucha”. Nele palco "despejaram a raiva". Seguiu-se a emoção das Pussy Riot - “Ucrânia, eu amo-te.” - e é dela que Masha Alyokhina parte em conversa com o Setenta e Quatro. 

Começo por uma das imagens do concerto a que acabamos de assistir: as camisolas e bandeiras alusivas à Ucrânia. Este concerto é um manifesto que o mundo precisa de ouvir? 

Estás completamente certa. Este espetáculo é claramente um manifesto, é um apelo à ação. Apelo esse que fazemos a todas as pessoas para quem atuamos. O nosso objetivo é levar as pessoas a protestar e a agir. É importante que percebam que existe uma estreita ligação entre o que está a acontecer na Rússia e o que está a acontecer na Ucrânia. O nosso concerto é também isso: uma mensagem do que aconteceu nos últimos dez anos na Rússia e como isso se relaciona com tudo o que está a acontecer agora. A nossa principal mensagem é que nos mantenhamos unidos com a Ucrânia, que enfrentemos a Rússia com medidas internacionais, como o embargo do petróleo e do gás russo.  

Tenho milhares de histórias sobre a polícia a prender-me como se eu fosse nada. Muitas mesmo. E a questão é que sei perfeitamente que todas estas pessoas envolvidas com Putin não estão a trabalhar de graça. Eles têm salários enormes. Podemos dizer a mesma coisa para o exército russo. Portanto, este dinheiro vem de onde? Da Europa, dos países ocidentais. Estão a ‘patrocinar’ esta guerra. Estão a patrocinar Putin, mesmo que não apoiem diretamente a Rússia. Queremos gritar, e não apenas explicar, que é necessário pará-lo, porque eles não o vão parar. Putin não se vai ficar pela Ucrânia, também vai tomar o leste da Ucrânia. Países como a Lituânia, a Letónia, a Estónia e a Finlândia serão os próximos. Não é um problema de uma só região. É a tentativa de construir um império que precisa realmente de ser travada. 

Durante o espetáculo há uma mensagem muito específica: partir do individual para que se possa agir coletivamente. Sente que na Europa e em países como Portugal, por exemplo, esse pensamento também está presente? 

"Sofremos bullying constantemente por nos assumirmos como feministas." 

Acreditamos que a comunidade é mais forte do que os governos. E é a primeira vez na minha vida que vejo tantas ações livres contra a guerra, mas já se assinalaram mais de 100 dias desde que começou e ela está a ficar em pano de fundo. Não deveria ser assim, porque é o que o governo russo deseja. Está à espera que haja uma menor atenção, até mesmo mediática, para começar a pressionar. É esta a forma de pensar de Putin, é a sua estratégia.

Deixa-me acrescentar: uma estratégia estúpida e idiota, porque não fazem ideia do que está a gerar. Não reconhece sequer os nossos direitos enquanto cidadãos e seres humanos. Mas há algo que nós sabemos sobre ele: a Rússia não se mantém se atacarmos em grande escala os seus ‘gestos’ políticos através das relações internacionais. Como disse, o gás e o petróleo russo são dois dos seus pontos fracos. Este seria o primeiro passo. 

Em segundo lugar, Putin deveria ser reconhecido como terrorista - porque é uma ameaça internacional - e não como presidente. Não é o nosso presidente. Prende, assassina e envenena todas as pessoas que não concordam com ele e que protestam contra a sua chamada ‘eleição’. 

Foi também por isso que fugiu? 

Não vejo a minha partida como uma fuga. 

Como foi essa partida, chamemos-lhe assim?  

Fiz o que tinha a fazer. É claro que pude fazer isto porque outra pessoa se sacrificou. Um amigo meu chamou as atenções para si, para que a polícia o rodeasse e se focasse nele. Precisei que ele se sacrificasse, digamos assim. 

Eu estava em prisão domiciliária, a correr o risco de ter de cumprir o resto da pena numa colónia penal, por causa de mais uma mudança arbitrária na lei, e não queria perder a oportunidade de participar nesta tour. É a nossa maneira de protestar contra a guerra, contra Putin e de apoiar a Ucrânia. Escrevemos uma canção nova precisamente com este propósito. 

Mas esta também não é a primeira vez que eu e o resto dos elementos usámos fardas para intervirmos ou nos infiltrarmos.  Em 2020 fizemos uma ação para hastear cinco bandeiras arco-íris (LGBT) no Edifício Principal da Presidência, do Ministério da Cultura, da Esquadra da Polícia, do Supremo Tribunal, etc. Usámos uniformes de serviço comunitário, fingindo ser trabalhadores durante uns dias. Desta vez foi bem mais simples. Foi um uniforme de estafeta, fingi uma entrega e atravessei a porta. 

Essa ação coincidiu com a alteração da constituição para proibir o casamento homossexual. 

A homofobia e violência contra pessoas LGBTQ na Rússia é cada vez mais visível. As leis anti-gay que Putin pretendia e conseguiu aprovar no ano seguinte [2021] são reflexo disso.  

Escolhemos aquele dia para a ação, porque no dia em que Putin fez anos seria bom relembrá-lo como é violar as nossas vidas. O Estado não deve interferir na vida da comunidade LGBTQ. Então, se o faz, a comunidade pode intervir na vida do Estado. Foi exatamente isso que fizemos. 

Em 2017 foram raptados e assassinados centenas de homossexuais na Chechênia em campos de trabalho. Isto aconteceu nas mãos da polícia. Foi também algo que pedimos nessa ação: que a Rússia investigasse. Nada foi feito. Chegou até a ser repudiante o líder da Chechênia [Ramzan Kadyrov] ter dito depois que todas aquelas declarações eram falsas e que não existiam homossexuais no país. Mas também não deveria ser surpresa, tendo em conta que é bastante leal a Putin, tem até a sua milícia privada. A Rússia não ia fazer nada. 

O feminismo é visto como inimigo do Estado? 

Image
final
A ativista denuncia a perseguição que as lutas feministas e pela igualdade sofrem na Rússia. |Foto: Ana Patrícia Silva

Sim. A primeira vez em que o feminismo foi visto como, digamos, ideologia inimiga, foi quando as nossas ideias começaram a discordar de todas as violações que o Estado e a justiça quiseram ignorar. Não nos quiseram ouvir nos últimos dez anos. Legitimaram-nos como vítimas por querermos agir. 

Somos o único país na Europa, além da Bielorrússia creio, que não tem uma lei contra a violência doméstica. Por exemplo, se deres um murro na rua ao teu marido ou companheiro tenho a certeza que vais acabar na prisão. Mas se o teu marido te bater em casa, será multado em 50 euros e pronto. É importante dizer que o valor é semelhante a uma multa de estacionamento. Como é óbvio, na Rússia já se fazem muitas piadas obscuras com base no real. Estou a lembrar-me de uma em particular, de um diálogo de uma mulher que contacta a polícia a pedir ajuda e diz: ‘Sr. Polícia, o meu parceiro está a bater-me. Ajude-me por favor.’ A resposta que se segue é “Quando ele te matar, liga’. Reforço: são “piadas” com base no real. Portanto, sim, há realmente muitas coisas a dizer sobre o feminismo. Além disso, o Estado ainda vê este termo como tendo uma génese muito ocidental, associada ao mal. 

Há dirigentes russos acusados de violação. 

A partir do momento que o líder das negociações com a Ucrânia [Leonid Slutski] é um violador.... Há cerca de dez casos de jornalistas e diferentes mulheres que dizem abertamente que ele estava a tentar violá-las. Existem vídeos, áudios, etc. Ele até se tornou mais popular e foi nomeado líder de um partido depois disso. 

Há muita coisa na lei, na sociedade que é produto de um sistema contaminado em todos os aspetos. E há mais. Sofremos bullying constantemente por nos assumirmos como feministas. Isto acontece nas ações de rua. Envolve violência física, exposição das moradas com apelo à nossa morte. Para eles, nós somos o Inferno, mas que seja então: o nosso Inferno, as nossas regras. 

"Os europeus têm de compreender que todos nós precisamos de abdicar um pouco do nosso conforto para podermos derrotar Putin”. Disse-o na conferência de imprensa antes do concerto. Como o podemos fazer sem sermos hipócritas? 

Com a ação feita no festival de Cannes, por exemplo: a rapariga que se fez ouvir na passerele contra a violência sexual na guerra. É um exemplo brilhante. Penso que é, de longe, uma das formas que terminará com o conflito. Só que a partir daqui, como vê, não é visível. A guerra não é visível. 

"No dia em que Putin fez anos seria bom relembrá-lo como é violar as nossas vidas." 

Se fores aos países europeus, que estão mais próximos da Rússia, é muito mais visível, nomeadamente na Lituânia, que será a próxima. É por isso que está também cheia de bandeiras ucranianas, centros para os refugiados... é muito mais visível e, por isso, torna-se real. Estas pessoas não podem, ou melhor, não terão a opção de evitar isto.

Estas ações são também motivações da sociedade russa no geral? Isto é, a guerra pôs a descoberto a opressão que os russos sofreram nos últimos dez anos? 

Na Rússia, temos uma propaganda muito semelhante à do III Reich. Percebi isso depois de comparar diferentes livros de história. É inacreditável como em pleno século XXI, com Internet e grande fluxo de informação e evolução, há uma semelhança tão grande com uma propaganda com dezenas de anos. Mas a Rússia também está a protestar. Viste no espetáculo dez caras e dez nomes, mas são milhares de presos políticos que continuam a lutar contra esta realidade. 

A guerra despertou os europeus do esquecimento e da indiferença? 

Dizer que estas pessoas vão para a prisão todos os dias, em silêncio, pode ser uma ótima resposta a esta questão. A Rússia não é só isto, como é óbvio. 

Eu sei que muita gente é contra esta guerra, mas é demasiado perigoso dizê-lo abertamente. As leis mudaram desde que a guerra começou e o controlo é extremamente elevado. O parlamento russo aprovou uma lei que se tornou uma ferramenta útil para a opressão: quaisquer fotos, relatórios internacionais ou notícias que denunciem o que aconteceu em Bucha ou Crimeia são considerados falsos. Fazê-lo implica o quê? Uma pena de prisão entre cinco e 15 anos. O que chega a partir dos órgãos de comunicação ocidentais são consideradas fake news

É ilegal pedir sanções. Aí já tens uma pena menor, até três anos. Sem esquecer que é ilegal escrever sobre o exército russo. Portanto, tudo o que estamos a fazer é criminoso. O Instagram e o Facebook são considerados organizações terroristas. Por exemplo, se comprarmos publicidade nestas redes podemos levar com uma pena até cinco anos. 

Image
concerto_4

Desde o início da guerra que quase quatro milhões de pessoas deixaram a Rússia. Os meios de comunicação independentes foram arruinados e todos os jornalistas que se consideram independentes trabalham no estrangeiro, porque querem cobrir o que está a acontecer na Ucrânia. Para isso acontecer, têm que estar num local onde não serão imediatamente presos. 

Assim, muitos ativistas, políticos, diferentes pessoas que eram ativas e que trabalhavam com o público deixaram a Rússia para continuar o que estão a fazer. Isto é a necessidade de fazer algo por um país que é nosso e não de Putin. Estas pessoas estão também a ajudar os refugiados, a fazer investigações, a procurar bens dos oligarcas russos, contas bancárias, comerciantes, artistas. Estão a fazer um trabalho espantoso. É importante que a Europa veja tudo isto, que o permita também. Se querem efetivamente fazer alguma coisa, podem fazer tudo isto com eles. 

No seu caso, por exemplo, esta última pena deu-se por uma manifestação contra a detenção do opositor de Vladimir Putin, Alexei Navalny... 

Estou bem com isso, continuarei a fazer isto até que Putin deixe o poder e saia da Rússia. Diria melhor: que fuja. 

Vê Putin como apenas o rosto de uma enorme máquina. O que pode vir depois desta ser destruída?

Destruir a máquina é uma coisa muito importante e complexa. Falamos de um século a reprimir as pessoas e a enviá-las para os campos coloniais. Disparar a torto e a direito. É tudo um espelho do que aconteceu na Alemanha. No entanto, a Alemanha teve uma experiência de unificação e a Rússia deveria passar pelo mesmo. Mas isto é algo que passa pela velha instituição, educação, cultura, sociedade, voluntários. É um trabalho de várias gerações, mas, para começar, todos deveriam compreender que Vladimir Putin é um terrorista e deveria ser julgado nos tribunais internacionais. Será um começo espantoso.  

Quando a tour acabar, vai regressar à Rússia? 

Não estou a planear emigrar, mas quero ajudar a Ucrânia. Se tiver esta opção para angariar dinheiro, fá-lo-ei. Tenho também algumas ideias para trabalhar no campo de refugiados. Quero dizer, como russa, quero fazer algo de bom, e não é um problema ir para a prisão. Eu sei como é viver lá. Só quero realmente ajudar. Há coisas aterradoras que foram feitas pelos russos. Não só pelo exército russo de Putin. Por isso, quero fazer algo de bom.