Pedro Caldeira Rodrigues

Pedro Caldeira Rodrigues: “O controlo mediático é feito de duas formas, uma mais subtil e outra mais bruta”

Nas guerras e situações de conflito, o papel dos meios de comunicação é determinante e muitas vezes muito condicionado. O jornalista da Lusa critica a partidarização dos média e como deixou de ser possível compreender as razões da guerra sem se entrar numa lógica a preto e branco.

Entrevista
2 Junho 2022

As paredes da sala de estar estão forradas com estantes de livros empilhados, a sua mesa de trabalho está cheia de papéis, de artigos impressos. Sentado num cadeirão, o jornalista Pedro Caldeira Rodrigues ajeita folhas com apontamentos, mesmo que não as use uma única vez, ao longo da conversa com o Setenta e Quatro

Começou a sua carreira em 1989 como estagiário fundador do Público e por lá ficou até 2006. Cobriu a guerra nos Balcãs entre 1991 e 2001, acompanhou de perto os primeiros momentos dos tumultos albaneses de 1997 e, mais tarde, a partir de 2011, dedicou-se à cobertura da crise económico-social na Grécia. Sabe como as máquinas de comunicação funcionam em tempos de guerra e convulsão social. 

Há anos que Caldeira Rodrigues se dedica a estudar a política ucraniana e as tensões com a Rússia, até culminarem na invasão russa a 24 de fevereiro. O jornalista esteve na Ucrânia em janeiro e fevereiro e, ao regressar, critica o que diz ser a partidarização do jornalismo a favor de um dos lados, de a contextualização ter deixado praticamente de ser possível. “Uma coisa triste nesta guerra é não teres praticamente nenhuma informação do ‘outro lado’. Nos Balcãs tinhas”, o que dificulta a compreensão da guerra.

"A maior parte da opinião pública considerou que era uma invasão ilegal e a partir daí estabeleceu-se um crivo moral: era necessário apoiar uma das partes."

Existe uma radicalização da linguagem, continua Caldeira Rodrigues, em que as vozes que apelam a negociações, à paz, não são ouvidas. A Ucrânia transformou-se no tabuleiro de um jogo entre grandes potências e instalou-se uma lógica de confronto alimentada sistemática e diariamente pelos Estados Unidos que depressa pode escalar para um nível perigosíssimo, acrescentou. “Os EUA estão na vanguarda de uma lógica que nos próximos tempos pode impedir qualquer solução multilateral com os seus principais rivais geopolíticos, a Rússia e a China”, afirmou o jornalista da Lusa

Mas não deixa de denunciar a destruição de cidades ucranianas, um verdadeiro “urbicídio”, pelos russos. Nem o que o Kremlin está a fazer nos territórios por si ocupados. “Parece-me que a estratégia é afastar a população, controlar militarmente o território e depois as populações russófilas que quiserem regressar, regressam. Também há a vontade de tornar as cidades etnicamente limpas ou puras, totalmente russófilas.”

Esteve na Ucrânia em dois momentos diferentes, em janeiro e em fevereiro. O jornalismo de guerra foi no passado mais independente, mas é-o cada vez menos. Seja do lado russo ou ucraniano, a movimentação, o que se pode fotografar, com quem se pode falar, está muito condicionado. Como vê esta situação? 

Há aquela frase feita que diz que “no jornalismo de guerra a primeira coisa que se perde é a liberdade”, e a verdade, já agora. Sobretudo numa guerra como esta, onde estão em causa questões muito mais sérias do que, por exemplo, na guerra da Jugoslávia, onde também aconteceu uma importante manipulação mediática.

Nesta guerra, o país invasor, além de ser elemento permanente do Conselho de Segurança da ONU, tem armas nucleares. É a principal potência nuclear do mundo. Todas as partes envolvidas têm os seus interesses próprios. A Ucrânia é um país que se está a defender de uma agressão, independentemente da natureza dos regimes. A experiência que tive nessa primeira deslocação à Ucrânia, em janeiro, foi precisamente isso. 

Foi um organismo institucional ucraniano, chamado Associação de Imprensa Ucraniana, que convidou uma série de jornalistas estrangeiros, sobretudo europeus do Centro e de Leste. Apresentaram-nos uma agenda, um programa que claramente denunciava a perspetiva da Ucrânia. E a guerra ainda nem tinha começado. Dizia-se então que os EUA insistiam que a Rússia queria invadir a Ucrânia, o Kremlin desmentia e ninguém acreditava que ia haver invasão. Todas as pessoas com quem falei, mesmo já na segunda estadia lá, a partir de 16 de fevereiro, não queriam acreditar: analistas, população, jovens, ninguém acreditava, estava completamente excluído. 

Tendo em conta os avisos norte-americanos, como é que os ucranianos que estavam no terreno acreditavam que não pudesse haver uma invasão? Compreende-se a questão da irmandade entre povos, mas Putin estava num beco sem saída para os seus objetivos. A partir de 2019, os EUA passaram a dar armas ofensivas à Ucrânia, Zelensky começou a concentrar perto de 100 mil homens na fronteira do Donbass. Por sua vez, Putin concentrou quase 200 mil nas fronteiras da Ucrânia, mas não os poderia manter ali indefinidamente: ou invadia e “desmilitarizava” a Ucrânia ou daí a um, dois anos, teria uma dificuldade ainda maior para o fazer.

Um dos argumentos de Putin foi que, efetivamente, os ucranianos estavam a preparar uma ofensiva militar para meados de março. Eu estava lá na altura e havia informações que diziam que o exército ucraniano tinha começado bombardeamentos sistemáticos às posições dos separatistas russófilos no Donbass. De facto, a elite do exército ucraniano estava concentrada nessa tal linha de separação que foi aceite pelas duas partes nos Acordos de Minsk.

Outro argumento de Putin é o do perigo de genocídio das populações russófilas que ficaram de fora das fronteiras da Rússia - não nos esqueçamos que a Ucrânia tinha cerca de 11 milhões de russófilos, 25% da população. Não quer dizer que fossem todos pró-russos ou pró-Kremlin, pois muitos deles entraram nas fileiras do exército ucraniano. 

A língua russa, que era equiparada à ucraniana, perdeu estatuto, passou a ser de segunda categoria, proibida nas instituições oficiais, nos departamentos governamentais. Isso foi considerado um vexame. Além disso, [os ucranianos] incluíram na Constituição a entrada na NATO. Isso foi entendido pelo Kremlin como sinal de irredentismo e radicalização. 

Todas essas decisões terão sido instigadas pelo Ocidente, fundamentalmente pelos EUA. Os EUA tiveram importantíssimos responsáveis políticos em Maidan [em 2013/2014]. Discursaram lá. Havia essa perspetiva de transformar a Ucrânia num tabuleiro de um jogo geopolítico entre duas potências.

"Atravessamos um momento muito complicado no mundo mediático. Esta guerra veio exponenciá-lo de forma preocupante."

Putin e a elite russa consideram a Ucrânia território russo e os ucranianos como russos de segunda [categoria], que é tudo a mesma religião, é tudo o mesmo povo. Isto não é verdade. A partir do início do século XX, houve a emergência do nacionalismo ucraniano. 

Ainda assim, a conceção das elites russas em relação ao cenário geopolítico tinha no discurso o multilateralismo, o respeito pelo Direito Internacional. Era um discurso corrente entre a elite e a diplomacia russas. E porquê? Consideravam que a primeira fação mundial a desrespeitar o Direito Internacional tinham sido os ocidentais e os norte-americanos, sobretudo em duas situações: o Kosovo e a invasão do Iraque. O Afeganistão, apesar de tudo, foi legitimado pelas Nações Unidas, mas o Kosovo não foi, nem a sua autoproclamação da independência nem o ataque à Sérvia.

Este é um dos argumentos que Putin vai depois usar para justificar a questão da Geórgia, da Ossétia do Sul e da Abecásia, e depois a Crimeia, em 2014. Junta-se depois um discurso cada vez mais recorrente sobre o perigo de genocídio e de perseguições às populações russófilas que continuavam a viver fora das fronteiras da Federação Russa, que são cerca de 20 milhões.

Nesta complexidade toda - porque a guerra não começou a 24 de fevereiro - há uma supersimplificação de toda esta questão nos média. Como a vê?

Atravessamos um momento muito complicado no mundo mediático. Esta guerra veio exponenciá-lo de forma preocupante. A Rússia desrespeitou o direito internacional, e não foi a primeira vez, mas teve um empolamento muito maior que em situações anteriores. Houve uma tentativa de ocultar aquilo que se passava no outro lado. O "mas" ou o "porque" desapareceram, a contextualização deixou praticamente de ser possível. 

Entrámos num período de radicalização da linguagem. Até em termos de ofensas pessoais e perseguições. Aliás, o último comunicado do Conselho Deontológico do Sindicato [de Jornalistas] é muito curioso a esse nível. Expressa de alguma forma exatamente isso, apesar de poder ser utilizado por várias correntes. Chegou-se à radicalização e até a alguma devassidão na forma como alguns jornalistas e comentadores, nomeadamente os militares, foram tratados.

E depois a questão das redes sociais, que estão a desempenhar um papel fundamental e com muito menos controlo. Vimos o que aconteceu nos EUA com a concentração das redes sociais, com a Google e a Meta [antigo Facebook] nas mãos de duas pessoas. Além disso, o controlo da informação é um fenómeno que vem de há largos anos, a concentração dos média em grandes conglomerados. Em França, por exemplo, nove multimilionários controlam 90% dos média. 

Isto deixa muito pouca margem de manobra. Os jornais e os restantes meios partidarizaram-se, sobretudo nesta guerra. Claro que há uma questão moral. Quando vês um país a ser invadido, as cidades a serem destruídas, aquilo a que um arquiteto eslavo chamou "urbicídio"... Quando se destrói uma cidade também se quer tentar destruir a alma de um país. 

Isso também está a tentar ser feito pelos russos, que desde a II Guerra Mundial têm esta lógica de devastarem as cidades, apesar de referirem que não atacam a população civil. Já agora este parênteses, além das forças armadas ucranianas e da Guarda Nacional Ucraniana, onde estava integrado o famoso [batalhão] Azov, havia também uma terceira estrutura de Defesa Territorial [composta por civis recentemente incorporados]. Foram distribuídas centenas de milhares de armas a esses civis antes da invasão. A partir daí, infelizmente, essas pessoas passaram a ser consideradas alvos militares.

"Quando se destrói uma cidade também se quer tentar destruir a alma de um país." 

Temos que ter muito cuidado com aquilo que está a acontecer, por exemplo, em relação aos crimes de guerra. Aquilo que me recordo dos Balcãs foi muito significativo a esse nível, porque só mais tarde é que soube que algumas coisas tinham acontecido e que outras que achava terem acontecido afinal não. 

A manipulação dos mortos e da morte para atingir objetivos políticos ou estratégicos é uma coisa muito comum nestas guerras. De alguma forma, poderá estar a acontecer aqui, independentemente de existirem já algumas provas de crimes de guerra cometidos pelas tropas russas. Não sabemos se houve crimes de guerra cometidos entretanto também pelas forças ucranianas contra as populações russófilas. São necessárias investigações independentes, distanciadas e com conclusões sérias.

É uma infeliz manobra de propaganda estarem já a começar a julgar soldados russos, como o rapaz que foi condenado a prisão perpétua. Foi julgado no decurso do conflito sem possibilidade de defesa. Na prática, foi uma encenação. E agora os russos arriscam-se a fazer o mesmo: um enorme espetáculo mediático com os julgamentos do batalhão Azov. Não é bom para a chamada justiça internacional e para a própria busca da verdade.

Essa procura da verdade, e toda a comoção, não foi assim tanta, por exemplo, quando o Iraque foi invadido. Neste momento, e pela primeira vez em muitos anos, o Ocidente está do lado dos invadidos. Em 2003, havia jornalistas do lado iraquiano e outros embedded [integram e acompanham unidades militares] com os norte-americanos, e isso foi considerado aceitável. 

Como há, provavelmente, jornalistas embedded do lado russo, só que a maior parte deles não são ocidentais. Há o caso daquele jornalista, o Bruno Amaral Carvalho, que até foi bastante insultado nas redes sociais. Foi um caso raríssimo. Uma coisa triste nesta guerra é não teres praticamente nenhuma informação do "outro lado". Nos Balcãs tinhas. 

Para já, era um contexto diferente. Era um território mais pequeno, portanto, havia mais possibilidade de, muito facilmente, contactar com todas as partes em conflito. Tinhas uma visão mais equilibrada e mais geral do que se passava. Na Bósnia podias falar com um muçulmano, com um sérvio, com um croata. Numa semana podias cobrir todas as sensibilidades das partes em conflito. Aqui não, e há outra coisa: tudo aquilo que é dito oficialmente, mesmo que não seja confirmado, é assumido como verdade. 

No [passado] fim-de-semana, o presidente Zelensky disse ter conhecimento do bombardeamento de um edifício que fez 60 mortos. Isso foi imediatamente transmitido por todos os média sem qualquer tipo de confirmação. É um pouco revelador da forma como esta guerra está a ser assumida.

Porque está a acontecer?

A maior parte dos jornalistas, da opinão pública e sobretudo dos dirigentes políticos considerou que era uma invasão ilegal e a partir daí estabeleceu-se um crivo moral, que seria necessário apoiar uma das partes. Assumiram que tinham que se partidarizar, de dar militantemente os argumentos de uma parte e tentar denunciar permanentemente o que a outra está a fazer. Eleva-se depois isto a outro patamar: a batalha entre a democracia e a liberdade contra a autocracia e a ditadura.
 

"A manipulação dos mortos e da morte para atingir objetivos políticos ou estratégicos é uma coisa muito comum nestas guerras."

É um falso combate? 

É simplificar a questão à lógica do bom contra o mau. Não há espaços cinzentos para contextualizar, para pegar na História e perceber o que está a acontecer. Não há espaço para deixar a memória ajudar-nos a perceber o que está a acontecer. Esta radicalização reflete-se em tudo o que se vê, sobretudo nas televisões. 

Quando militares do Azov se renderam, a rendição foi apresentada como "retirada".

Sim, claro. A informação que está a ser divulgada é uma informação de factos consumados, sem praticamente qualquer investigação. Evidentemente que um jornalista que vai a Bucha e vê aqueles corpos no chão, com as mãos atadas e os olhos vendados, supostamente sumariamente executados, evidentemente que isso provoca um impacto emocional enorme, como acontecia na Bósnia-Herzegovina. 

E, em segundo lugar, é um factor que está a ser sistematicamente recordado. Todas as imagens que vemos na televisão têm que ver com o tal "urbicídio", com a destruição das cidades e da alma de um país, com os refugiados e com as vítimas da guerra. 

Há aqui um certo fetichismo? Podemos referir a "sociedade do espetáculo" para interpretarmos este fenómeno?

Sim, creio que até podemos falar do [Guy] Debord como visionário. Há outro teórico francês que também foi muito importante na análise do fenómeno mediático, o Pierre Bourdieu. Até o próprio [Noam] Chomsky. O problema é que essas vozes estão, hoje em dia, um pouco silenciadas. O controlo mediático, cada vez mais evidente, é feito de duas formas, uma mais subtil e outra mais bruta, como acontece na Rússia.

Na Rússia, [as autoridades] proíbem, prendem e podem até assassinar, apesar de ainda haver vozes dissidentes. Não está tudo fechado. É provável que as imagens que nos passam da Rússia estejam um pouco deformadas a esse nível. Não está tudo controlado, ainda.

"É uma infeliz manobra de propaganda estarem já a começar a julgar soldados russos, como o rapaz que foi condenado a prisão perpétua."

Quando estive na Ucrânia em janeiro, houve um encontro com o presidente do sindicato de jornalistas ucraniano. Ele reconheceu que havia gravíssimos problemas de liberdade de informação na Ucrânia. A Ucrânia era considerada uma democracia parlamentar formal, mas extremamente imperfeita. Zelensky, quando é eleito em 2019, é-o com uma enorme margem em relação a Poroshenko [73% contra 24% dos votos], o representante da oligarquia conservadora ucraniana.

Zelensky foi uma espécie de lufada de ar fresco. As suas duas principais prioridades eram o combate à corrupção e a paz. Isso não aconteceu, antes pelo contrário. A corrupção manteve-se, até aumentou. Em 2021, Zelensky chega a ser referenciado nos Pandora Papers. E depois a lógica das negociações foi completamente ultrapassada pela lógica belicista, que hoje em dia assume contornos muito mais complicados.

Mas Zelensky não tomaria este rumo - ou as pessoas à volta dele - se não tivesse o incentivo norte-americano.

Claro, há quem diga que os EUA estão a manobrar o poder ucraniano de forma algo perversa. Nós vemos agora que a lógica é exatamente essa. As declarações do secretário da Defesa norte-americano em Kiev vão nesse sentido: disse que esta "guerra é para ganhar, é para derrotar a Rússia, é para ir até ao fim".

Esta lógica é muito perigosa. Para já, não sabemos se os ucranianos vão conseguir ganhar a guerra. É algo duvidoso, independentemente do material de guerra de última geração que estão a receber. A Rússia tem um poder militar brutal e nem mobilizou tudo ainda. Independentemente disso, a lógica deixou de ser a de tentar uma aproximação para um acordo de paz e eventuais cedências. Terá que haver cedências. Quando Zelensky diz que, quando acabar a guerra, é para voltar à Crimeia e ao Donbass, isso torna absolutamente impossível qualquer negociação.

Mas isso mudou. Na primeira fase da guerra chegou mesmo a dizer publicamente "nós aceitamos o status quo de 23 de fevereiro". Quando começou a receber armas, mudou de posição. 

Zelensky está claramente a ser fomentado. Acho que é uma lógica com que alguns europeus também concordam: a de enfraquecer a Rússia, de lhe aplicar uma derrota, ou, como se diz, de impedir que se envolva em novas aventuras deste género. Até o próprio ministro da Defesa, Gomes Cravinho, teve uma declaração nesse sentido; há depois países mais cuidadosos, estados mais autoritários, como a Hungria; e países onde a população está muito dividida, como a Moldávia, a Bulgária, a Sérvia, a Macedónia ou até a Eslováquia e a Grécia. 

Com o arrastar da guerra, estes discursos também se vão desgastando. Começa a haver um cansaço na opinião pública. Começa-se a revelar coisas que se pensava não existirem e que afinal existem.

Como o que aconteceu na Ilha das Serpentes...

O Fantasma de Kiev, as repressões às minorias na Ucrânia. Isso depois pode criar uma nova perceção em termos de opinião pública, como aconteceu nos Balcãs. Há quem tenha comparado Mariupol a Sarajevo ou a Vukovar, cidades destruídas parcial ou completamente.

Nos Balcãs, as cidades eram muito destruídas, mas havia partes delas que ficavam funcionais. Tenho a impressão que neste caso [da Ucrânia] não, estão a ser completamente destruídas. Parece-me que a estratégia é afastar a população, controlar militarmente o território e depois as populações russófilas que quiserem regressar, regressam. Também há a vontade de tornar as cidades etnicamente limpas ou puras, totalmente russófilas. A ideia pode ser essa.

Temos ouvido muito sobre as derrotas da Rússia enquanto as derrotas ucranianas são suavizadas, como a rendição dos militares do Azov em Mariupol. Antes da invasão, Putin assinou um decreto a 18 de fevereiro em que chamou dois milhões de reservistas aos quartéis para receberem treino. Foi um dos sinais da invasão. Com o termo "operação militar especial", sem declaração de guerra formal, Putin apenas pode usar os militares profissionais e não conscritos e reservistas. Putin pode vir a usar estes dois milhões de soldados na Ucrânia?

Não sei se consigo responder a isso, não sou especialista militar. Se isso aconteceu, é possível. Depende da evolução da guerra, apesar de parecer que ela está num impasse. Os russos parecem estar a progredir um pouco no Donbass, sobretudo em Lugansk, que já está praticamente controlada.

Parece que o grande objetivo agora é Severodonetsk, uma cidade com um eixo ferroviário muito importante. E depois será eventualmente Kramatorsk, onde está o Estado-Maior ucraniano. Depende também da capacidade dos ucranianos. Será que vão conseguir começar a usar o armamento altamente sofisticado que o Ocidente lhes enviou? Porque isso vai significar uma escalada da guerra. Os russos já tiveram baixas militares importantes. Quanto aos ucranianos não sabemos muito bem, mas são certamente bastante elevadas.

"Todos os dias tens que ter um acontecimento novo para justificar o prosseguimento da concentração mediática e das pessoas em torno desta guerra."

Acho problemático todas as vozes que continuam a apelar a uma solução negociada, à necessidade de se sentar à mesa das negociações, como este recente plano italiano, não serem ouvidas. Porque a lógica do confronto é a da tentativa de conquista territorial. Isso continua a ser alimentado, sistemática e diariamente, sobretudo pelos EUA. 

Este último pacote [de auxílio militar e humanitário] aprovado de 40 mil milhões de dólares para a Ucrânia, um pacote absolutamente brutal que teve quase a unanimidade do Congresso [norte-americano], é exatamente isso. No fundo, é como dizem alguns analistas militares e especialistas geopolíticos: é um conflito entre a Rússia e os Estados Unidos, entre a Rússia e a NATO. É uma tentativa de reformulação de uma nova ordem internacional. É banal dizer-se, mas não sabemos como vai ser concluída.

Pode ser o grito de uma potência em declínio?

Dos EUA ou da Rússia?

Dos Estados Unidos.

Pode ser [um indício d]o declínio dos EUA, até da própria Rússia, apesar de não estar propriamente isolada. A Índia tem uma posição muito reservada [em relação ao conflito]. Continuamos a ter uma perspetiva muito eurocêntrica e ocidentalizada das questões. Somos 13% da população mundial.

Houve 193 Estados que condenaram a invasão na Assembleia-Geral Extraordinária das Nações Unidas, mas só 42 é que alinham nas sanções à Rússia.

Agora é a questão da chantagem pela fome, da Rússia para o mundo. Não sei até que ponto não é uma questão que mereça mais aprofundamento. 

Países como Reino Unido e Lituânia já se mostraram disponíveis para criar um corredor no Mar Negro para os cargueiros ucranianos passarem.

Sim, e isso seria muito importante.

A Rússia já disse estar disponível. 

Todos os dias tens que ter um acontecimento na guerra da Ucrânia. Um prédio que foi bombardeado, Azovstal, crimes de guerra, novas imagens. Todos os dias tem que haver um novo fator, um novo argumento, para justificar o prosseguimento da concentração mediática e das pessoas em torno desta guerra.

"Uma coisa triste nesta guerra é não teres praticamente nenhuma informação do 'outro lado'. Nos Balcãs tinhas." 

As sanções generalizadas à Rússia estão a resultar?

Acho que a Rússia estava bastante preparada para este tipo de sanções. Não a podemos negligenciar, preparou-se para isto. Tem alternativas, mas a médio prazo pode ser extremamente doloroso. Putin está a fazer algo importante como manter o apoio - pelo menos segundo as sondagens, que devem ser encaradas com reserva - da população russa em relação a esta guerra. O que poderá dizer que a população pode estar disposta a sofrer sacrifícios em nome desta guerra.

A Rússia está a atravessar uma fase muito complexa. Para já, a decadência demográfica óbvia. Um dos grandes problemas de Putin sempre foi a demografia. Por outro lado, a sensação de cerco, o facto de nos quererem destruir. Eles até têm uma expressão muito própria para isto, pois para eles é o próprio país que está em causa, poderá ser destruído, dividido. Há quem ache que não se justifica ter aquela dimensão, e que a Rússia deve ser dividida.

Desde a II Guerra Mundial que os EUA têm uma política de defesa em que devem ter capacidade para responder a dois conflitos ao mesmo tempo, na Europa e na Ásia-Pacífico. Na década de 1990, Washington considerou o Médio Oriente área de influência privilegiada. Mas, em 2010, Hillary Clinton publicou um artigo no qual anunciou a viragem dos EUA para a Ásia-Pacífico. Os EUA saem quanto baste do Médio Oriente enquanto pressionam a Europa a investir 2% do PIB na defesa. Esta guerra prende os norte-americanos à UE e à NATO, obrigando-os a esticar a sua capacidade militar quando estavam a fazer a viragem para a Ásia-Pacífico. Ao mesmo tempo, a guerra fragiliza a Rússia.

As declarações de Biden sobre Taiwan são extremamente importantes. É a primeira vez que disse: "vamos intervir militarmente se a China invadir Taiwan". Nesse ponto de vista, esta guerra favoreceu e vai favorecer os EUA. Em primeiro lugar, e em relação à Europa, é curioso observar que a Rússia, quando olhava para a Europa, considerava-a um apêndice dos EUA. Nos últimos anos, a diplomacia russa tinha uma atitude displicente em relação à Europa. Achava que quem controlava a Europa eram os EUA através da NATO. 

Com essa presença e reforço da NATO, a influência norte-americana vai reforçar-se. Quer queiramos quer não, a NATO são os EUA. A adesão da Finlândia e da Suécia não parece ser um problema para a Rússia. A Finlândia e a Suécia já tinham uma relação de concubinato com a NATO e agora decidiram "casar-se". Já faziam exercícios militares, têm armamento norte-americano. A Finlândia tem uma série de [caças] F-35, é dos países mais bem-armados da Europa. A adesão é um pro forma.

Toda a propaganda precisa de ter uma réstia de verdade, mas a questão de a Rússia poder atacar a Suécia ou os países bálticos não faz muito sentido. Se a Rússia está a ser derrotada na Ucrânia, porque estenderia a sua ameaça a outros países? 

Está a ser empolado e serve para justificar uma série de medidas tomadas, como o reforço militar. Não me parece que a Rússia se vá meter numa aventura nos bálticos, na Finlândia ou até na Transnístria.

Quando o Medvedev disse "queremos uma Europa de Lisboa a Vladivostok", houve quem tenha interpretado isso como uma invasão da Europa, o que é extraordinário. É uma expressão que ele foi buscar a Charles de Gaulle, ao próprio [Mikhail] Gorbatchev, até a [Emmanuel] Macron. Referia-se a uma Europa multilateral, de respeito pelos interesses de cada país, com convivência, diálogo e prosperidade em oposição ao unilateralismo norte-americano, muito evidente na presidência de Trump. Os EUA estão na vanguarda de uma lógica que nos próximos tempos pode impedir qualquer solução multilateral com os seus principais rivais geopolíticos, a Rússia e a China.

"Continuamos a ter uma perspetiva muito eurocêntrica e ocidentalizada das questões. Somos 13% da população mundial."

Ainda ontem o New York Times, que até é um jornal relativamente equilibrado, tinha posições absolutamente radicais sobre esta guerra: "é preciso armar a Ucrânia", "a Rússia tem de ser derrotada". Toda esta lógica de radicalização. E volto a repetir: não sabemos, mas acho que vai ser muito difícil a Rússia perder esta guerra. Não o vai permitir e os Estados Unidos também não vão deixar que a Ucrânia seja derrotada, não querem uma solução negociada que tenha de passar pela Crimeia, pelo Donbass, pelos direitos das minorias, pela questão da língua, pelas relações económicas com a Rússia. Neste momento estamos numa lógica incontrolável, está fora de controlo, pode escalar para um patamar mais complicado e nós sabemos qual será.

É possível escalar primeiro para um patamar regional? 

A partir do momento em que Zelensky assina um decreto em que diz que a Ucrânia deve reconquistar a Crimeia… A Crimeia já foi anexada pela Rússia, portanto é considerada oficialmente território russo. Se houver ofensiva militar da Ucrânia na Crimeia, a Rússia pode declarar guerra oficialmente e o conflito pode escalar até ao uso das armas nucleares táticas.

Mas isso é uma linha vermelha que ninguém pode ultrapassar, nem mesmo a Rússia. 

Eu sei, mas depende da evolução do conflito. Se tiveres a sensação que estás em perigo de vida, que é um combate existencial, como Putin diz, então tudo é possível. Isso é muito perigoso. E na Europa... Isto está a provocar bastante sobressalto nas opiniões públicas, porque é de facto uma guerra na Europa.

A Europa parece ter perdido a independência estratégica para os EUA. Agora substitui uma independência energética por outra com o gás liquefeito dos EUA. Uma das conquistas dos norte-americanos foi empurrar a Rússia para os braços da China, estando-se a formar uma política de blocos. 

Em março deste ano foi aprovada a chamada bússola estratégica da União Europeia, uma nova espécie de tentativa de reanalisar a Política Externa e de Segurança Comum da UE. Não adianta muito a um outro documento já aprovado em 2016 pelo Conselho Estratégico da UE. [O novo documento] Omite algo defendido por muitos europeus: a necessária construção de um exército europeu que seja autónomo e independente da NATO. 

Esta nova bússola estratégica continua a considerar a aliança transatlântica com os EUA extremamente fundamental para a segurança da Europa. Não há uma perspetiva mais avançada, a dependência estratégica em relação aos EUA vai continuar. Haverá um reforço da NATO, especialmente nas fronteiras do Leste da Europa, como já está a acontecer: armamento, exercícios militares.

A Rússia também já disse - não sei se é bluff ou não - que vai construir 12 pequenas bases militares junto à fronteira com a Finlândia, em caso de adesão à NATO. Há uma remilitarização da Europa e vamos ver o que significa, especialmente na Alemanha. 

Esta ideia do mundo dividido em blocos concorrentes é muito parecida com a realidade que antecedeu a I Guerra Mundial. Basta Taiwan para…

Basta um foco... A China já disse que Taiwan será chinesa até 2040 e tal, nem que seja pela força. Os chineses levaram muito a mal as declarações de Biden, disseram que só vieram atiçar uma fogueira que já está fora de controlo.

Tanto a China como Taiwan estão a olhar com atenção para a Ucrânia, para verem como é que se reage.

Para a China está a ser muito interessante ver como a Rússia atua no terreno. Os reveses militares que teve, as armas utilizadas. Isto é uma oportunidade para testar novos armamentos, novas táticas militares, os ciberataques. As guerras híbridas, a guerra da comunicação, os drones, que terão importância cada vez maior nas guerras. Está tudo a ser reequacinado. Esta guerra é talvez o prenúncio de uma nova fase dos conflitos militares com a utilização de novas armas e tecnologias. 

Os ucranianos foram muito bons nas redes sociais. Zelensky rodeou-se de jovens peritos e conseguiu vencer essa batalha da comunicação. Não é o Zelensky quem escreve os seus discursos, há uma empresa de comunicação norte-americana a ajudar os ucranianos na guerra da comunicação e do marketing político. Isto apesar de ele ser bastante bom, em virtude também da sua antiga profissão. Além disso, também nos chega muito pouco do outro lado.

"É banal dizer-se, mas este é um conflito entre a Rússia e a NATO pela reformulação da ordem internacional."

Zelensky está a usar esta guerra para acelerar o processo de adesão à UE.

Isso vai durar entre 15 a 20 anos. Os ucranianos devem ter ficado muito desiludidos. O próprio António Costa já disse isso: não criemos falsas expectativas. A Ucrânia não pode ser um caso à parte. Até poderia ser, mas então e os outros que estão à espera? Iria criar anti-corpos nos Balcãs, na Turquia, no Cáucaso. A questão é: o que é a Europa? Até onde vai? Qual é a estratégia de alargamento da União Europeia? A Geórgia é Europa? Turquia e Israel são Europa?

Ao ser expulsa do sistema financeiro SWIFT, a Rússia aliou-se à China para fazer transações com o sistema chinês. A Arábia Saudita ponderou vender petróleo à China em yuans e não em dólares, mas os EUA fizeram voz grossa e Ríade recuou. Há um rearmamento na política internacional, mas também há a criação de um sistema financeiro paralelo, em que o dólar não é a moeda padrão, corroendo o poder norte-americano. Como vê esta mudança de placas tectónicas?

Está tudo a mudar muito depressa. A Rússia é um país europeu, mas é fundamentalmente um país euroasiático. Desde os tempos do czarismo e da expansão czarista, nos séculos XVIII e XIX, que a Ásia é vista como eixo fundamental da sua estratégia política. A abordagem da Rússia à Índia, à China e até ao Japão tem um grande lastro, tem história e raízes. Nós não temos ideia disso na Europa. Os russos têm grandes especialistas na abordagem ao mundo euroasiático e é para aí que estão a dirigir a sua atenção.

A Rússia decidiu prescindir da Europa, de a considerar um espaço geopolítico e económico, por estar dividida e subordinada aos interesses dos EUA. Portanto, vão apostar noutro mundo, um com população mais jovem e em desenvolvimento. Estão a apostar na Ásia, têm uma presença cada vez maior em África, até mesmo na América Latina. Esta é a sua estratégia.