Odilon Caldeira Neto

Odilon Caldeira Neto: "O bolsonarismo devora os seus próprios filhos"

O historiador brasileiro tomou o pulso à atualidade política do seu país, escassos anos depois de um governo de extrema-direita chegar ao poder no Brasil. Critica a normalização do ódio na imprensa e avisa que o Brasil pode não ter as ferramentas democráticas adequadas para remendar o seu tecido social depois do estrago feito pelo governo de Bolsonaro.

Entrevista
31 Março 2022

Os primeiros contactos de Odilon Caldeira Neto com a extrema-direita violenta aconteceram na cena punk. O historiador, investigador e professor universitário cresceu em São Paulo e formou-se em Londrina, no estado vizinho do Paraná, no auge da “era Lula”. “Pouco se falava da extrema-direita contemporânea”, vista como fenómeno marginal e pouco relevante.

Foi sobretudo nessas cidades que, como punk que era, conviveu pessoalmente com grupos boneheads (skinheads de extrema-direita), nacionalistas e integralistas — como os Carecas do Brasil — fosse na rua ou nos espaços e concertos que frequentava. Convivência que, não poucas vezes, passava pela violência física e perseguições.

O hoje investigador retirou dessas vivências “juvenis e contraculturais” uma visão de mundo antifascista que o levou, mais tarde, a observar uma “lacuna historiográfica” sobre as extremas-direitas brasileiras. A partir daí, pensou numa área de investigações que lhe permitisse estudar o que chama de “neofascismo” — as tendências de direita radical contemporâneas inspiradas no fascismo e integralismo históricos —  e as suas dinâmicas transnacionais.

Preenchida em parte pelos dois livros que já publicou, Sob o Signo do Sigma: integralismo, neointegralismo e o antissemitismo e O fascismo em camisas verdes: do integralismo ao neointegralismo (em co-autoria com Leandro Pereira Gonçalves), essa lacuna na discussão dos radicalismos de direita é também combatida pelo Observatório de Extrema-Direita (OED), do qual faz parte desde 2020.

"Há uma normalização global do discurso da extrema-direita. É dado espaço nos média para que essas pessoas professem as mais absurdas ideias."

Fundado pelos politólogos Guilherme Casarões e David Magalhães, o OED é ainda coordenado pela antropóloga Isabela Kalil e por Odilon Caldeira Neto. Apresenta-se um como grupo multidisciplinar com a preocupação de estudar as extremas-direitas brasileiras a partir de diversos pontos de vista, procurando dialogar com a sociedade civil e com os meios de comunicação social.

Ao Setenta e Quatro, Odilon Caldeira Neto tomou o pulso à atualidade brasileira, escassos anos depois de um governo de extrema-direita chegar ao poder no Brasil. Avisa que o bolsonarismo, enquanto fenómeno com inspirações fascistas em radicalização constante, já ultrapassou o seu próprio líder, e que as consequências para a democracia e vida dos brasileiros, especialmente dos mais frágeis, continuarão a sentir-se por muitos anos. Nisso, é peremptório: “precisaremos de uma desbolsonarização”.

Qual a pertinência neste momento de um projeto como o Observatório de Extrema-Direita no Brasil?

O observatório foi idealizado por dois professores universitários da área da sociologia e das relações internacionais, David Magalhães e Guilherme Casarões. Entre 2019 e 2020, convidaram-me a integrar a coordenação do projeto. Montámos uma equipa maior de investigadores: politólogos, antropólogos, historiadores e estudantes em iniciação científica.

Há núcleos de investigação a observar o fenómeno da extrema-direita brasileira sob uma matriz exclusivamente histórica, mas poucos têm organizado um grupo multidisciplinar. O OED tem essa preocupação, não apenas do ponto de vista da investigação, mas também em interagir e dialogar com a sociedade civil. É claro que existe uma multiplicidade de mundivisões dentro do observatório, mas temos um pacto democrático. 

Além disso, e mais importante, o OED tem conseguido pautar um pouco a forma como a imprensa tem abordado o fenómeno, com uma abordagem menos espalhafatosa, sensacionalista, mais ponderada. Durante muitos anos, eram poucas as pessoas a pensar e a falar com um público mais amplo ou chamadas a falar com a imprensa sobre essas temáticas. O OED conseguiu construir essa alternativa enquanto referência de investigação e diálogo. 

Sentiram alguma pressão de movimentos ultraliberais da direita ultraconservadora, como o “Escola Sem Partido”, caracterizados pelo seu discurso anti-intelectual? 

O observatório não carrega uma bandeira política, mas acaba por ser um grupo perseguido e atacado por bolsonaristas, por grupos intelectualmente ligados a Olavo de Carvalho [que morreu em janeiro de 2022] ou a outros grupos de extrema-direita. Eu, pessoalmente, não tenho porque esconder que a minha motivação para os estudos de extrema-direita vem de uma visão de mundo e de uma vivência antifascista. O meu trabalho serve para esmiuçar esses agrupamentos, até para que estudantes consigam entender essa questão.

Não sou panfletário. As minhas investigações são académicas, mas tenho a plena noção e convicção que existe uma preocupação política que faz com que grupos ou movimentos fascistas não gostem da minha abordagem e da sua profundidade, porque ela é preocupada com a condição democrática.

Não vos é requerido um certo apolitismo?

É necessário um certo cuidado para que os estudos não sejam panfletários. Até porque uma dimensão mais panfletária de um estudo académico sobre a extrema-direita brasileira mais recente pode ser tanto eivada das paixões de quem escreve, como pode ficar muito datada. Pelas nossas paixões políticas tendemos a tomar o fenómeno como muito mais forte do que ele é. Não estou dizendo que a extrema-direita brasileira não é forte, longe disso, mas que a paixão política nos faz enxergar com uma verve particular um objeto que tem de ser visto dentro de uma matriz analítica. É necessária a ponderação. 

"Há um aparato mediático de extrema-direita altamente rentável e de grande expansão. A informação produzida acaba por pautar a imprensa; não a de extrema-direita, mas a liberal."

De todo o modo, é necessário também incluir essas paixões políticas nas razões que levam as pessoas a querer estudar esse fenómeno. Não é apenas uma preocupação historiográfica, é também uma preocupação quotidiana. Sabemos quais são os reflexos de um governo como o de Jair Bolsonaro na vida das pessoas — e quais os perigos à nossa existência. Mas também prezo muito nas minhas pesquisas, e nas dos alunos que oriento, que se pense dentro duma matriz analítica rigorosa, justamente para nos preparar para as acusações de "doutrinadores" ou "panfletários", que muitos grupos tentam imprimir em nós. Trata-se de contrabalancear as paixões e o rigor.

É um trabalho inglório quando há, ou havia, do outro lado pessoas, como Olavo de Carvalho, que fazem trabalho intelectual com pouco rigor, mas acabam por ter mais alcance mediático? 

Sem dúvida. Primeiro, o cenário da direita radical brasileira tornou-se uma mina de ouro nos últimos dez anos. Existe um mercado editorial e uma dimensão política muito rentável e, além do mais, há um frenesim desmedido de alguns meios de comunicação que amplificam de uma maneira muito problemática esses discursos. Tenho absoluta certeza que isso não é uma caraterística meramente brasileira: é uma normalização global do discurso da extrema-direita. São dados espaços para que essas pessoas professem as mais absurdas ideias. E são essas ideias que conseguem chamadas de capa em grandes órgãos de comunicação.

Daí, os média ensaiam um sentimento de caça de cliques, inclusive da parte de pessoas progressistas que querem antagonizar, ridicularizar essas ideias e esses conteúdos. São ridicularizáveis, mas isso entra na lógica de "algoritmização" da política e dos meios de comunicação. 

Em certo sentido, é uma batalha que acaba por ser muito inglória. O absurdo do discurso de ódio da extrema-direita, além de estar no poder e naturalizado no quotidiano político, é também passar a ser altamente rentável, inclusive para órgãos de comunicação que não são, necessariamente, afeiçoados à direita. 

E que antagonizam sistematicamente a direita para ganhar o clique, mas esta situação não se fica apenas pela comunicação social, não é? Nas redes sociais há quem faça disso ativismo. 

Exatamente. Recentemente, uma figura de destaque da extrema-direita brasileira, o pastor Marcos Feliciano, deputado federal, escreveu uns absurdos sobre uma suposta genialidade geopolítica de Bolsonaro. Conseguiu um espaço de destaque no maior jornal brasileiro. Porquê? Ao irem atrás de uma pretensa pluralidade trazem debates estéreis que não precisam de estar no centro de debate da opinião pública brasileira. Isso é trabalhoso para quem busca comunicar com um público amplo, porque parece sempre que estamos segurando um punhado de areia da praia com as mãos. É um trabalho um pouco sisífico. 

A extrema-direita brasileira está profissionalizada ao ponto de isso ser metódico?

Sem dúvida. Ela é profissional no sentido da produção dos próprios média. Até parece algo que a própria direita rouba das cenas underground: "se você odeia os média, seja os seus próprios média". Criou-se um aparato mediático de extrema-direita altamente rentável — o ponto central — e com capacidade de expansão muito grande. A informação é produzida por diversos sites, diversos portais, difundida pelo Telegram e outras redes sociais, e acaba por pautar a imprensa, não a de extrema-direita, mas a liberal.

"Os setores liberais foram coniventes com Bolsonaro. Queriam retirar a esquerda do poder e acreditaram que conseguiriam neutralizá-lo. O tiro saiu pela culatra."

Muitas vezes até a própria imprensa à esquerda tende a dar-lhe espaço desmedido, numa lógica de ridicularização do absurdo desses discursos. É um debate que não diria acusatório mas sim muito sinalizador dos absurdos do discurso da extrema-direita, em vez de ser analítico sobre a natureza política desse fenómeno. 

E não se fala de mais nada.

Exato. Por exemplo, o apoio de Bolsonaro a Putin ou o aumento tremendo do preço da gasolina são debates urgentes que tocam toda a sociedade brasileira e foram obliterados, colocados fora das pautas porque, de repente, os setores bolsonaristas quiseram "cancelar" um filme que foi produzido por um antigo bolsonarista, Danilo Gentili. O filme foi lançado em 2017 e, agora, de uma maneira muito estratégica, essa matéria é colocada em algumas redes sociais, meios de comunicação. 

Porque o filme, uma comédia, faz  alegadamente "apologia à pedofilia".

O curioso é que em 2017 esse argumento surgiu dos setores progressistas, que notaram que havia algo problemático no filme. Mas como, à época, Danilo Gentili era próximo do bolsonarismo isso não foi levado adiante e o jornalista que notou isso foi perseguido e demitido da Folha de São Paulo. Agora, de uma maneira instrumental, existe esse processo de expiação de um antigo bolsonarista que vai pautar o debate. É absurda essa forma como eles fazem política. Depois de três anos de governo, mais não sei quantos anos de fenómeno político, como é que ainda conseguem ditar o debate público brasileiro com uma imensa facilidade? 

Com a conivência, mesmo que ignorante, de parte da comunicação social?

Sem dúvida alguma. Por mais que, eventualmente, essa comunicação social assuma uma posição crítica a Bolsonaro, não lida com o fenómeno de uma maneira crítica. Os absurdos que ele fala são normalmente meras estratégias. Isso tem que ser ponderado: o tamanho da publicidade que lhe é feita.

Aconteceu algo nessa linha aqui em Portugal nas últimas eleições legislativas. O candidato do partido de extrema-direita falou em reinstituir-se a pena de morte e, subitamente, num país que aboliu a pena de morte há 150 anos, essa questão foi levantada até em debates com outros partidos.

Há um exemplo também da campanha presidencial de Bolsonaro, o chamado "kit gay" e as fake news sobre uma "mamadeira de piroca", termos usados por ele e pelos seus militantes [para desacreditar e difamar a iniciativa Escola sem Homofobia e a campanha presidencial de Fernando Haddad]. Bolsonaro trouxe isso de uma forma muito hábil para o debate. Apresentou esse argumento, de que queriam doutrinar as crianças com um “kit gay”, no principal telejornal, na Rede Globo, e os entrevistadores não disseram nada sobre isso. Não disseram que ele mentia, que aquilo não existia. Também houve um processo de conivência e conveniência de setores liberais, hegemónicos na imprensa brasileira, com Bolsonaro. 

Acreditaram irrealisticamente que conseguiriam contorná-lo, neutralizar as suas intenções mais antidemocráticas, até contra a liberdade de imprensa, e viram nele uma grande oportunidade para estabelecer a retirada efetiva, ou mesmo momentânea, do Partido dos Trabalhadores e das esquerdas da centralidade da política brasileira. O tiro saiu pela culatra.

Alimentaram um monstro enquanto lhes deu jeito, mas subestimaram o fenómeno.

Exatamente. Quando você abre as portas do inferno, não pode esperar que saia outra coisa que não bestas. Bestas que vão querer devorar você e os seus filhos. 

Um monstro que instigou o ódio das classes médias contra os pobres. 

Existe a questão do acesso à cidadania por meio do consumo. Não estou querendo dizer que o consumo não é uma questão para as classes menos favorecidas, há uma dimensão da própria cidadania atrelada à questão da subsistência e da sobrevivência. Mas foi um processo muito deficitário e que colocou na classe média emergente, que se imaginava uma elite, um ressentimento muito forte em relação ao pobre e às políticas de democratização. 

Mas estas novas tendências à direita, como o neointegralismo, não olham para as periferias e para as favelas de maneira assistencialista. A posição perante a pobreza e a marginalidade não é a mesma. 

Não é, por alguns fatores. Alguns desses projetos neointegralistas têm alguns projetos de tónica assistencialista. A distribuição de cabazes e cestas básicas, por exemplo. Mas além de tudo isso, e antes de qualquer coisa, o neointegralismo brasileiro é composto por organizações crepusculares. São grupelhos de poucas dezenas de indivíduos. Não têm uma capacidade política de pensar políticas assistencialistas, de distribuição de comida ou produtos de higiene.

"Se há algo que é objeto de adoração por Bolsonaro, é a morte, é a anti-democracia."

A capacidade política do neointegralismo no Brasil não é ditada necessariamente pelas capacidades reais das suas organizações, mas sim pela sua capacidade de penetração por meio das ideias políticas. Quando o imaginário anticomunista latente é reativado no Brasil por meio do antipetismo, a articulação com grupos integralistas ou de outras tendências de extrema-direita é imediata. Torna possível a articulação política desses grupelhos integralistas, que tanto atacam produtoras de conteúdos de humor como conseguem representatividade em escalões governamentais.  

Essa interlocução não acontece por meio da atividade e da capacidade políticas desses grupelhos? 

Penso que não. É por meio da similaridade ideológica desses fenómenos. O bolsonarismo não é um fenómeno neointegralista, mas traz muitas credenciais do pensamento integralista. O fato de Bolsonaro, bolsonaristas, e pessoas que depois se tornaram bolsonaristas utilizarem o lema "Deus, Pátria e Família" não quer dizer que eles saibam o que significa a origem desse termo. 

Mas, no meu entendimento, isso leva a crer que partem de uma condição implícita de associação aos valores fundamentais desse enunciado. Ou seja, "Deus, Pátria e Família" é um lema de organização, reorganização e regeneração da sociedade brasileira, não é mais exclusivamente uma ideia integralista, mas da fascistização. Leva a que os ideais integralistas estejam presentes além da capacidade dos grupos integralistas, que são minoritários. Bolsonaro, por meio da apropriação desse lema, faz um trânsito histórico. Remete a valores do pensamento de extrema-direita no Brasil e faz essa retomada. 

Bolsonaro é um aglutinador de tendências.

Sim. De tendências que estavam dormentes, de grupelhos que são ainda pouco importantes. Mas a ideia dessa nova nacionalidade a ser erigida pelo bolsonarismo é uma ideia que traz muitas tentações fascistizantes. 

O bolsonarismo já ultrapassou o próprio Bolsonaro?

Exatamente. O bolsonarismo mais radical consegue ser crítico do próprio Bolsonaro, porque não quer apenas o poder governamental. Não quer fazer ligações ao chamado "centrão", a uma direita mais liberal. Quer pensar um processo revolucionário dentro de uma ótica daquilo que os fascistas imaginavam enquanto revolução à direita. Querem ir além das instituições, querem pensar a nacionalidade, a expiação dos problemas, a extinção dos inimigos, a neutralização dos seus adversários.

Não é necessário que saibam quem foi Plínio Salgado, Miguel Reale e Gustavo Barroso [dirigentes da Ação Integralista Brasileira, a primeira organização fascista brasileira]. Não é necessário vestirem camisas verdes. Mas essa tensão e tentação fascizante é incorporada no bolsonarismo. Isso não é uma obra do próprio Bolsonaro. É obra de uma cosmovisão da extrema-direita brasileira que passou por gerações e gerações e que foi revivida por meio dessa experiência mais recente.

Sobre a abordagem de Bolsonaro à pandemia, falou-se muito de "necropolítica" como modo de agir, ou de não agir. Falou-se em "genocídio". Houve na pandemia um momento de certa consagração efetiva na fascização do bolsonarismo? Ele é um glorificador da morte.

O processo de erosão democrática é um facto dado, em termos institucionais e políticos. Ele é um glorificador da morte, da ditadura. Se há algo que é objeto de adoração por Bolsonaro, é a morte, é a antidemocracia.

A inclusão do lema "bandido bom é bandido morto" no discurso de Bolsonaro é quase apologia à purificação da sociedade.

Sim, tanto como "mais um CPF [Cadastro de Pessoa Física, registo de contribuinte fiscal] cancelado". São termos que incorporam algum léxico dos próprios grupos milicianos que controlam setores das comunidades. Assume o exterminismo como uma arma de fazer política. Vejo o bolsonarismo como um fenómeno em formação e transformação. Primeiro, não tem na sua origem uma ideologia ou uma tendência política consolidada, ou sequer um líder político que seja um ideólogo coeso.

"Uma certa esquerda pensa que um eventual governo Lula será de conciliação. Será um dos governos mais difíceis da história da política brasileira. Terá que lidar com uma radicalização profundo da sociedade."

Não é apenas a composição de tendências mais ou menos fascizantes dentro do próprio bolsonarismo, também é a relação com indivíduos do autoproclamado anarcocapitalismo, dos liberais, dos grupos evangélicos, de grupos moralistas e conservadores ou que fazem do securitarismo a sua bandeira. A partir dessa mixórdia constante, o próprio Bolsonaro, e alguns dos seus espécie-de-intelectuais, tentam imprimir um processo de constante e contínua radicalização para purificar e fidelizar as bases de apoio. O bolsonarismo está sempre a devorar os seus próprios filhos.

É possível que daqui a três meses as figuras mais proeminentes sejam denunciadas como comunistas. Não vejo nessa condição um fenómeno de fascização do próprio bolsonarismo. Mas, através dessa radicalização contínua, aqueles bolsonaristas que o continuam a ser acabam por projetar em Bolsonaro um sentido de fascistização que eles próprios lhe tentam imprimir.

Bolsonaro é, então, a figura mítica do poder, é alguém cujo objetivo está delineado: libertar a nação brasileira, exterminar os inimigos, e assim por diante. Todavia, o próprio Bolsonaro pode estar alheio a isso. Isto é um movimento positivo dentro do próprio bolsonarismo, onde a radicalização contínua é muito importante mas não imprime essa condicionante ao governo do presidente. 

Nas bases, o seu governo é uma tentativa de fascização, mas no topo, no governo, é uma tentativa de articulação política, antidemocrática, claro. Isso pode criar um fenómeno de radicalização mais nítido no futuro. Não há como entrar no terreno do hipotético, mas não vejo aqui um processo de fascização. E talvez o governo Bolsonaro esteja mais preocupado em criar essa dimensão híbrida, uma mistura entre uma faceta autoritária e outra pretensamente democrática. Até porque isso estabelece possibilidades de articulações políticas momentâneas e duradouras tão necessárias para a sua continuidade.

Mas como é que o bolsonarismo, como fenómeno político mutante do capitalismo tardio em crise constante, lida com todas as contradições que concentra em si próprio?

É a capacidade de penetração do bolsonarismo, é um fenómeno muito plural. Como diria Olavo de Carvalho, é uma "ejaculação precoce", um ímpeto transformador e catalisador muito rápido. Bolsonaro é a pessoa errada na hora errada que consegue, a partir dessa pouca rigidez organizativa, capacidade de proliferação. E por meio da dinâmica de algoritmização da política brasileira, por meio da cadeia produtiva da condição de trabalho, da apologia ao self-made man. A “uberização” do trabalho acaba sendo muito vantajosa para Bolsonaro. No contexto da pandemia de covid-19, a crítica a qualquer tentativa de lockdown entra também nessa lógica. 

Quando ele diz "e daí? lamento, quer que eu faça o quê?" perante o número de mortos por covid-19 é como se estivesse a desobrigar o Estado de mexer no que quer que seja.

Sim, como se ele fosse inapto. Ele é, mas também é como se não coubesse a ele qualquer forma de definição de políticas públicas de saúde. 

Mas não existe um método, é isso?

Exatamente. Trabalhando no terreno do hipotético, se houvesse um método efetivo talvez pudesse criar um processo de diminuição da expansão política de Bolsonaro, porque seria equivalente ao bolsonarismo mais radical. Não iria pensar no agronegócio, nos evangélicos. O bolsonarismo é muito difícil de decifrar, e é por isso que nos devora. 

Este ano haverá eleições no Brasil e desde o ano passado que Lula aparece como a única alternativa a Bolsonaro.

Tomara que haja eleições.

O Brasil está destinado a voltar a Lula da Silva? Por que é que parece que os brasileiros não conseguem imaginar uma alternativa a Bolsonaro que não remeta necessariamente ao que veio antes dele?

É preciso encarar o bolsonarismo como um fenómeno de rasgo do tecido social brasileiro. Primeiro, com a naturalização do discurso da morte. Depois, com uma valorização do sentimento anti-democrático que veio para ficar não sei por quantos anos, não sei por quantas gerações. Sei que ultrapassará a experiência bolsonarista. 

Considerando-se que Bolsonaro perde a eleição e sai do poder, o bolsonarismo pode vir a ter uma feição mais radical. Mas as suas franjas serão incorporadas por outras tendências das direitas radicais brasileiras. Por exemplo, os indivíduos que foram formados politicamente por agrupamentos como o Partido Novo ou think-tanks liberais. Não precisarão mais de passar pela tutela de Bolsonaro para pensar formas de articulação política. Veremos a construção de alternativas à direita, inclusive dentro da extrema-direita.

"A faceta bárbara das classes médias brasileiras foi absolutamente escancarada."

Uma certa imaginação política à esquerda pensa que um eventual governo Lula será de conciliação, de resolução dos problemas. Acho que será um dos governos mais difíceis da história da política brasileira. Vai ter de lidar com as fissuras surgidas no tecido social brasileiro, com um fenómeno de radicalização política profundo. A política brasileira é hoje sinónimo de radicalização e polarização, e de uma naturalização do extremismo de direita.

Falar do bolsonarismo é falar da história da extrema-direita brasileira. É entender que o bolsonarismo cria muitas perspectivas para a direita brasileira, mas que ele incorpora uma longa tradição. Além disso, Bolsonaro é um fenómeno inigualável na história do Brasil. A extrema-direita brasileira circundou, cerceou, participou em regimes autoritários, criando alternativas políticas, mas nunca chegou ao poder. Nunca chegou ao poder de uma maneira tão imediata e tão profunda, e trazendo tanta moléstia para a sociedade brasileira. Aquilo que precisaremos no futuro da política brasileira é, no fundo, de uma "desbolsonarização". 

Isso é possível? Não implicaria ter de ir mais fundo para evitar que fenómenos desse tipo voltem a nascer? Desmilitarizar a polícia ou confrontar o racismo sistémico do sistema penal, por exemplo.

Esse é um ponto muito complexo. Bolsonaro trouxe, de maneira geral, as classes médias, os cidadãos brancos, e os seus descontentamentos, para a discussão política. Pessoas que não sabem o que é a vida de um negro, de um morador da periferia, no sentido da violência quotidiana, da presença da militarização, da falta de liberdades democráticas. 

Não me sinto capacitado para adivinhar quais serão as alternativas, mas, pensando nas experiências autoritárias anteriores, é necessário pensar na punição dos construtores do governo Bolsonaro. Não cair novamente no erro de achar que é exclusivamente um produto dos militares, ainda que não esquecendo o seu papel. Não esquecer também o papel dos liberais na construção do bolsonarismo. Ou seja, é necessário construir uma discussão na sociedade brasileira. Em termos legais, inclusive.

As ferramentas democráticas que o Brasil ainda tem são suficientes para fazer esse trabalho? 

Não, acho que não. É um problema estrutural. Até porque a questão da violência policial não é uma criação do Bolsonaro, é um produto da própria nacionalidade brasileira. O bolsonarismo descortinou a falsa faceta civilizada do Brasil, embora saibamos o quão fantasiosa é a divisão entre civilização e barbárie. A faceta bárbara das classes médias, da sociedade branca brasileira, foi absolutamente escancarada.

"É esse o grande perigo: a não aceitação por Bolsonaro de um eventual resultado eleitoral e o papel posterior dos militares."

Enfim, facto é que, além da experiência do integralismo, da ditadura militar e do bolsonarismo, o Brasil tem um imenso passado a ser discutido. Além desses passados mais longínquos, esse passado mais recente — e espero que o bolsonarismo se venha a tornar em passado -  há-de ser discutido.

A preocupação política, a preocupação académica, a agenda de grupos de investigação, é profundamente necessária para se pensar a construção de uma "desbolsonarização". E também é necessário que uma direita democrática se venha a tornar viável, até para que se crie uma certa normalidade democrática. Ou seja, estamos mal.

Quando mencionei que haverá eleições disse "tomara". Acha que poderá haver alguma franja do bolsonarismo que as impeça? O ano passado falou-se num golpe a 7 de setembro, houve barulho em Brasília.

O uso do discurso golpista de Bolsonaro serve mais a desestabilização política e das instituições democráticas, e alimenta a radicalização interna. Os eventos em Brasília foram caravanas dos bolsonaristas mais tresloucados. Alguns choravam, comemoravam que o Bolsonaro havia feito uso de um artigo inexistente da Constituição e decretado estado de sítio. É a faceta do bolsonarismo como culto. 

Agora, me parece que a questão mais importante não é a rutura, mas o descrédito do processo eleitoral e a não aceitação do próprio resultado eleitoral. E aí voltamos a ter a presença, mais uma vez, dos militares como salvaguarda de uma certa instituição democrática brasileira. Os militares se enxergam como isso, como poder moderador. 

É esse o grande perigo: a não aceitação por Bolsonaro de um eventual resultado eleitoral e o papel posterior dos militares. Muito se discute sobre Bolsonaro, mas pouco o papel desses militares numa eventual não aceitação de transição de governo.

E os militares não querem saber se são os dignos representantes do povo ou não.

É isso, é algo que reside na própria imaginação do exército brasileiro. A profissionalização e a politização do exército coloca essas questões numa péssima posição.

Não vai ser somente a figura salvadora do "avô" Lula que tornará o Brasil "2002 outra vez".

De maneira alguma. Até porque, além da condição política, há a condição estrutural do Brasil. É um país destruído, em frangalhos, que é preciso reconstruir. Não espanta que Lula seja encontrado e vislumbrado como a única alternativa viável. Apesar de todos os problemas que existiram — como os casos de corrupção, que não devem ser deixados de lado — o governo Lula foi o único momento em que todas as tensões e conflitos políticos foram, em certa medida, contornados ou maquilhados. 

A gasolina era barata, a botija de gás também, foram pentacampeões mundiais...

E havia picanha na mesa. Mas o passado não volta. É uma melancolia que projeta uma condição que não é mais exequível a curto prazo. A composição política que se delineia a partir da possível chapa eleitoral de Lula é muito diferente daquela que se construiu no passado. Não há mais uma centralidade, ou uma hegemonia, do Partido dos Trabalhadores. Não que vá ser uma "frente ampla" ou "frente popular", mas o facto é que não cabe mais a Lula nem ao PT a capacidade de dirigir as políticas económicas e sociais do Brasil. Não vão conseguir escapar da necessidade de um diálogo mais amplo, inclusive com os setores mais conservadores. É um xadrez muito complexo.