Sérgio Tréfaut

Sérgio Tréfaut diz que Jair Bolsonaro só se mantém no poder por contar com o apoio de interesses económicos e financeiros | Foto Lusa/Mário Cruz

Sérgio Tréfaut: "O Brasil vive um regime que pratica crimes de Estado"

O realizador do recém-estreado Paraíso fala do seu novo filme, dos interesses que mantêm Jair Bolsonaro no cargo e dos seus instrumentos de perpetuação no poder. Não tem dúvidas que há uma degradação da democracia no Brasil e que as milícias que apoiam Bolsonaro "são perfeitamente capazes de prepararem uma insurreição ou uma guerra civil”.

Entrevista
23 Setembro 2021

Todos os dias, ao cair da tarde, um conjunto de mulheres e homens quase centenários reúnem-se nos jardins do Palácio do Catete, no Rio de Janeiro, para cantar canções de amor, alegria, ciúme, desejo e sofrimento. Nestas serestas encontra-se gente para quem a vida não terá sido fácil, mas que descobriu naquele ritual um impulso por uma felicidade possível, fazendo do jardim o seu paraíso e da música uma forma de encontro, partilha e alegria. Quem os filmou foi Sérgio Tréfaut, que conhecemos de Outro País (1999), Lisboetas (2004), Cidade dos Mortos (2009), Viagem a Portugal (2011), Alentejo, Alentejo (2014), ou Raiva (2017).

Com a chegada da pandemia, os jardins foram encerrados, os cantos interrompidos, os corpos separados e as filmagens suspensas. Muitas daquelas pessoas acabaram por morrer à porta dos hospitais. Fazem parte das quase 600 mil pessoas que morreram de um vírus que o presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, tratou como uma “gripezinha”. Paraíso tornou-se, então, um filme que homenageia a grandeza dessa geração que partiu prematuramente, e que o realizador considera terem sido vítimas de um governo que deliberadamente as deixou morrer.

Sentado na esplanada de um café na Praça das Flores, em Lisboa, dias antes do seu regresso ao Rio de Janeiro, onde reside, Sérgio Tréfaut falou da relação ambivalente com o Brasil, de onde teve de exiliar aos dez anos de idade e ao qual decidiu regressar. Revelou o tortuoso processo de pesquisa para o filme e como a pandemia lhe mudou os planos e partilhou o que pensa da situação política brasileira, do governo de Bolsonaro, dos seus instrumentos de manipulação e dos interesses que o mantêm no poder.  

Paraíso, que agora pode ser visto nas salas de cinema, foi o ponto de partida de uma conversa sobre com um realizador que, apesar de não gostar de cinema demonstrativo e programático, vive apaixonado pelas pessoas que filma, pelas realidades que essas pessoas lhe revelam e pelo gosto incessante pela pesquisa e pela interrogação.

Nasceste no Brasil, és filho de pai português e mãe francesa, mas exilaste-te na década de 1970, depois da prisão e da tortura do teu irmão. No entanto, apesar dessa memória, dizes também que no Brasil tiveste uma educação afetiva que te marcou para sempre. Porque é que decidiste voltar agora ao Brasil?

A minha relação com o Brasil é ambivalente. Nasci no Brasil, filho de pais estrangeiros, e criei com o país uma relação afetiva e identitária. Eu era feliz e tinha um enorme amor à minha infância brasileira. Depois teve um período de um ano de terror. O meu pai voltou para Portugal com o 25 de Abril, nós ficámos no Brasil, mas o meu irmão de 21 anos foi preso, perseguido e torturado. Durante um período importante a minha mãe não sabia se ele estava vivo ou morto. Vivia num pesadelo com carros de polícia a nos seguirem permanentemente.

A minha partida do Brasil foi num período de terror. Foi o cônsul de França que conseguiu localizar o meu irmão nas prisões políticas e foi o cônsul de Portugal que o escondeu num carro para que ele pudesse sair. Fomos para Paris, depois vim morar para Portugal, mas fiquei com o desejo de reencontrar o país. Só que a minha vida foi-se encadeando em vários compromissos que me mantinham longe do país. Uma pessoa começa a fazer um filme, um filme chama outro, e a minha vida laboral era em Portugal.

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Sérgio Tréfaut
O realizador Sérgio Tréfaut diz que os grandes interesses internacionais não querem tirar Bolsonaro do poder | Foto de Genison Oliveira

Quando deixei o Doclisboa, em 2010, já era muito claro que tinha que tentar ir para o Brasil. Entretanto, em 2012, escrevi um projeto de filme. No início passava pelos ensaios sobre a identidade brasileira. O primeiro que li foi o Stefan Zweig, depois estudei os autores brasileiros, o Paulo Prado, o Sérgio Buarque de Holanda, mas não queria fazer um ensaio sobre pensadores, queria fazer algo mais pulsional que tivesse a ver com o que une todos os brasileiros. A minha praia não é o futebol, é mais a música. E a música é também o que une todos os brasileiros.

A questão da identidade do Brasil permaneceu, mas decidiste partir da música e não dos ensaístas.

Existe um filme muito importante do Eduardo Coutinho que se chama As canções [de 2011] e que é sobre a relação dos brasileiros com a música popular. Só que esse filme não esgotava o que eu esperava desse universo e achei que havia espaço para fazer um filme que abordava a relação dos brasileiros com a música popular.

Há músicas populares brasileiras que são verdadeiros hinos não oficiais. Carinhoso ou Não deixe o samba morrer, por exemplo...

Há muitas assim. Eu faço filmes meio tortuosos na minha pesquisa. Depois de ler Stefan Zweig, fiz um projeto de filme sobre os sonhos musicais das empregadas domésticas, mas na pesquisa percebi que a minha visão correspondia aos anos 1960 e 1970. O esqueleto de filme não era possível e tinha de o reorientar.

"O meu irmão de 21 anos foi preso, perseguido e torturado. Durante um período importante a minha mãe não sabia se ele estava vivo ou morto."

Primeiro pensei fazer um filme sobre a nova imigração brasileira em Portugal, mas as personagens que fui encontrando, por mais que fossem objeto para um estudo interessante, não me apaixonavam. Então fui para o Rio de Janeiro, rescrevi um filme inteiro sobre o que se passa no Rio de Janeiro à noite e comecei a filmar. Havia de tudo: música bailes, lixeiros, namoros de rua, ambulâncias, animais, religião, futebol às três da manhã no Aterro do Flamengo e havia o Jardim do Catete e aquele grupo. Eu percebi que ia reunir um conjunto de material enorme, teria um período de filmagens gigante, uma seleção muito difícil. Quando encontrei as serestas no jardim pensei: tenho aqui uma coisa dentro disto tudo, que é um pequeno microcosmo, como uma aldeia do Asterix, onde a partir daqui pode sair tudo. Como em antropologia...

Um microcosmo que é explorado com intensidade e detalhe, mas com uma vocação de sentido universal.

Quando começo uma pesquisa, não tenho intenções demonstrativas. Fiquei apaixonado pelas personagens. Eram pessoas de uma idade muito avançada, entre 80 e 100 anos, que eram uma espécie de náufragos, de ilha, dentro de um outro universo. É uma ilha dentro do Brasil de hoje, da construção selvagem, dos valores que não são os meus, das telenovelas, da Globo, da publicidade. Eles são bastiões do que sobrevive. No dia em que filmei gostei tanto que acreditei que haveria possibilidade de chegar perto das pessoas, delas se interessarem pelo filme e darem autorização para fazer um retrato daquela comunidade. Fui filmando as pessoas e depois a pandemia apareceu.

O Augusto Boal tem uma frase a propósito do teatro do oprimido, em que dizia que “toda a gente pode fazer teatro, até aos atores”. Neste Paraíso também podemos ver que toda a gente pode cantar, até os cantores. Há no filme uma ideia da música enquanto identidade, mas também sobre o facto de qualquer pessoa ali poder fazer música, independentemente de ser ou não músico.

O filme acaba por filmar pessoas que encontram naquele lugar e naquele momento a sua razão de ser. O Andy Warhol fala da televisão como instrumento que dá um momento de fama. As personagens deste filme não precisam de uma televisão, elas precisam de ter meia dúvida de pessoas à volta para poder cantar. Cantar é algo de terapêutico, em que a pessoas, quer nas letras quer na melodia, dizem mais profundamente o que têm a dizer do mundo do que através de um discurso. Há algo na virtude poética das canções que vai mais fundo do que o lado narrativo das explicações.

No filme há pouco espaço de entrevista, porque o que elas têm a dizer está no canto. A poesia é o que as faz viver, a música é o que as faz viver. São pessoas que desde a hora em que se levantam que estão a pensar no que vão cantar. Naquele momento elas são a Maria Callas, são o Pavarotti, são a Maria Betânia, são a Dalva de Oliveira. Elas são o sonho que sempre tiveram.

Essa relação com a música dialoga também contigo. Creio que em criança a primeira coisa que disse foi “A banda”...

[risos] A primeira coisa que disse na vida foi “A banda”, quando passava a banda, que estava tocando A Banda, do Chico Buarque. Aquelas pessoas têm uma força que não se imagina. É preciso muita coragem para dizer para os instrumentistas: “Eu vou cantar isto, o tom é este...” A personagem que canta mais no filme, a dona [Gercina] Neném, que tem a voz operática, é particularmente curiosa porque nunca tinha cantado praticamente até aos 70 anos. Foi por perder a voz, depois ter ficado com um osso encravado na garganta, que na terapia vocal lhe disseram: “Olhe, para exercitar, cante!” E saiu aquilo.

Outra dimensão importante no filme é a questão geracional. São pessoas entre os 80 e os 100 anos. Pessoas que as nossas sociedades, depois da fase produtiva da vida, são muitas vezes tratadas como descartáveis. O filme também conta uma história sobre o que as pessoas podem ser depois de uma vida de trabalho, do cuidado da casa, do cuidado dos filhos.

Para aquelas pessoas há uma felicidade possível que aparece. Personagens que dizem que nunca foram tão felizes como agora. Obviamente não será só isso. Também vivem nas suas solidões. A estrutura do filme sempre foi concebida num vai-e-vem entre a solidão das pessoas e a festa naquele lugar. Mas sim, fazem ali a comemoração de aniversários, é um lugar de confraternização e felicidade.

Tiveste de interromper as filmagens. Quando é que tomaste essa decisão?

Não tomei decisão nenhuma, não tinha como tomar a decisão. Tinha filmado, em fevereiro de 2020, o Rubinho a tocar com a dona Neném e cantando A Flor e o Espinho com a Fátima. Mas contava fazer mais filmagens. Entretanto tive de sair do Brasil para trabalhos e quando voltei, em meados de março, já não era possível. O jardim estava fechado e estar próximo das pessoas era absolutamente impossível.

Sentes que nesse momento o filme mudou?

Nesse momento a possibilidade de filmar no Brasil congelou e fui sabendo das mortes de pessoas que tinha filmado. Tinham ficado doentes, tinham ido para o hospital, não tinham tido possibilidade de entrar e morreram. Em maio, eu próprio considerei que não haveria condições para estar no Brasil.

Perguntava se o filme mudou porque é um filme sobre música, identidade, a história daquela gente, mas de repente torna-se também um filme sobre a pandemia.

Não é sobre a pandemia. As filmagens foram terminadas e a realidade me obrigou a montar com o material que tinha. Eu anuncio no fim do filme que termina ali porque as pessoas que filmei começaram a morrer. E o que aconteceu àquelas pessoas foi o mesmo que aconteceu a uma geração inteira. Fiz um filme que considero uma espécie de homenagem a essa geração que morreu prematuramente. Uma das poucas coisas que fazia questão era o de mostrar o filme lá para os personagens sobreviventes. Foi muito bonito, a dona Ilka veio, foi filmada com 100 anos e apareceu com 102 anos.  

 "Fui sabendo das mortes de pessoas que tinha filmado. Tinham ficado doentes, tinham ido para o hospital, não tinham tido possibilidade de entrar e morreram."

Foi quase um momento de justiça poética. O facto daquela pessoa com 102 anos ter sobrevivido e estar ali a ver o filme ao teu lado tem também um lado esperançoso...

Sim. Essa projeção foi muito comovente porque eles interrompiam cada música com palmas. Cada vez que alguém cantava eles aplaudiam efusivamente. O filme era como se fosse um espetáculo ao vivo.

Quando percebeste que as pessoas estavam a começar a morrer o que é que sentiste?

Você está numa catástrofe enorme, não sabia para onde ia. Há um momento que se reza todos os dias para ver se eles resistem, mas você não pode fazer nada. Há uma barbaridade de Estado. O que é que você sente quando o Bolsonaro faz os seus pronunciamentos a falar da gripezinha? O que você sente quando ele vem num avião com pessoas testadas positivas para a covid e no dia seguinte vai numa manifestação abraçar e beijar as pessoas? O Brasil vive num regime que pratica crimes de Estado. O que os brasileiros sentem é impotência.

No Brasil houve várias polémicas sobre a liberdade cultural, proliferaram os discursos ultraconservadores sobre a ideologia de género, o marxismo cultural, os cortes nos apoios aos artistas. Como foi fazer um filme destes nesse contexto?

Não sou financiado pelo Brasil. O Brasil neste momento vive uma caça às bruxas de maneira especial. Há um corte de financiamentos, a Associação Brasileira de Cinematografia foi congelada, a Cinemateca foi o que foi, o antigo secretário especial da Cultura [Roberto Alvim] teve de ser demitido por ter feito um discurso que era uma fotocópia do [Joseph] Goebbels. Houve toda essa maneira de descontinuar a educação, a cultura, os financiamentos científicos.

No entanto, o lado proibição foi mais subtil e subliminar. Há liberdade de imprensa do ponto de vista oficial e de sátira. Mas também há uma autocensura. A mim pediram-me uma entrevista escrita para a Globo com quatro perguntas. A quarta era: “Porque é que é importante que este filme seja o filme de encerramento do IndieLisboa?”. Respondi que o mundo inteiro está preocupado com a pandemia no Brasil e pela forma como ela foi tratada pelo Governo. Publicaram três perguntas, a quarta não foi publicada. Outra vez me fizeram uma enorme entrevista ao Estadão e não foi publicada. Não sei como são os critérios, como funciona, mas a censura interna existe.

Como é que reages às análises que afirmam que líderes como Bolsonaro estão enquadrados nos sistemas democráticos, sujeitam-se às regras e não podem ser classificados como extrema-direita? Sentes que o Brasil é hoje uma democracia?

Para mim direita é a Margaret Tatcher ou a Angela Merkel. Bolsonaro é de extrema-direita. Está no poder graças a uma poderosa máquina de desinformação. Graças a um batalhão de fake news bombardeadas ao minuto. No caso do Bolsonaro, o que é preocupante não é o facto de ser uma pessoa desbocada e louca, é o facto de ele ser útil para as pessoas que o mantêm no poder. Se os poderes financeiro e económico não quisessem que ele estivesse no poder, ele não estava no poder. Como Lula esteve no poder porque os poderes económico e financeiro permitiram.

"As milícias são perfeitamente capazes, e é uma ameaça que o Bolsonaro dá, de prepararem uma insurreição ou uma guerra civil."

Dizes que há liberdade de imprensa e de sátira. Há também eleições formais. Mas ao mesmo tempo há desinformação e manipulação. Que tipo de regime se vive no Brasil de hoje?

É difícil de contestar que se um chefe de Estado fizesse e dissesse o que faz e diz o Bolsonaro em países que nós consideramos democracias eles seriam destituídos. A degradação da democracia brasileira é clara. Por outro lado, há um sistema político e partidário muito difícil compreender aqui, na medida em que um terço dos deputados são mercenários, são comprados. Bolsonaro está no poder porque comprou um terço da assembleia.

E o que achas que vai acontecer?

Ninguém sabe. Há seis mil militares no governo, 400 deles em postos muito importantes. Esta semana as conclusões da Comissão Parlamentar de Inquérito ao comportamento do governo perante a pandemia vão ser apresentadas às entidades competentes e ao Tribunal de Haia. Ninguém sabe o que pode acontecer.

Os instrumentos de luta do Bolsonaro são diversos. São as fake news, é a compra de deputados, são as forças mais obscurantistas que estão numa parte dos evangélicos que representavam 15 deputados nos anos 1990 e que hoje representam 100. A bancada evangélica é ultraconservadora e usa a religião com fins armamentistas. Em dois anos duplicaram o número de armas na sociedade que estão na mão da milícia. A polícia é parcialmente controlada pelo Bolsonaro, porque ele infiltrou a Polícia Militar e passou o tempo todo comprando o exército. Essas armas estão nas milícias, que têm capacidade de um dia para o outro, negociando com a polícia, de controlar uma cidade. As milícias são perfeitamente capazes, e é uma ameaça que o Bolsonaro dá, de prepararem uma insurreição ou uma guerra civil.

Marcelo Rebelo de Sousa bateu palmas ao seu discurso no encerramento do IndieLisboa, onde disse que o Presidente do Brasil deixou deliberadamente morrer centenas de milhares de pessoas. No entanto, no mês anterior, esteve no Brasil e não falou da gestão da pandemia argumentando que não se formulam juízos sobre a postura de “um anfitrião que recebia em sua casa”. Sentes que o espaço de manobra de Bolsonaro também é alimentado pela cumplicidade internacional ou pela ausência de coragem de condenação pelos líderes internacionais?

Acho que é bem mais grave do que isso. Passa tudo pelos interesses. Bolsonaro vende o Brasil e o património brasileiro às postas como outros não venderiam. Marcelo Rebelo de Sousa é um mosquito nesta história, é uma inexistência. Os grandes interesses internacionais não querem tirar o Bolsonaro.

Do ponto de vista económico, Bolsonaro é uma pessoa que defende um discurso nacionalista, mas não defende Brasil nenhum. A Amazónia, a desmatação... A Merkel faz um discurso humanista preocupada com a “nossa Amazónia”, mas as empresas alemãs aproveitam certamente muito o desmatamento da Amazónia. Não é nada verdadeiro que os líderes internacionais não se pronunciem por receio ou que poderiam fazer alguma coisa. É mais complexo e mais doloroso que isso. É em que medida o Bolsonaro é conveniente para todo o mundo.

Quando estrou o filme Raiva disseste que não tinha tido uma intenção pedagógica porque “a realidade fala por si”. No entanto, todos nós, a partir da nossa posição social, vemos determinadas realidades e não vemos outras. Nos teus filmes sempre reconheci uma intenção pela procura desses ângulos mortos da realidade. Não se pensa Lisboa da mesma forma depois de ver Lisboetas. Não se passa da mesma forma num aeroporto depois de ver Viagem a Portugal. Não se pensa da mesma forma a revolução depois de ver Outro País. O que é que sentes que no mundo atual precisa de ser filmado? O que é que precisa de filmar?

Não sei responder ao que precisa de ser filmado. O ponto de partida da tua pergunta tem a ver com a minha reticência, aversão e falta de interesse a filmes demonstrativos e programáticos. O “querer dizer” e a vontade de abordar é algo que está em mim. Mas tenho um pouco horror quando as pessoas começam a falar da “mensagem do filme”. Se o filme tem mensagem é porque falhei completamente. Nunca foi isso. Procuro coisas ricas, que abordem realidades que parecem interessantes de se pensar sobre elas, de chamar a atenção...

Outro País chamava a atenção para o desinteresse dos arquivos e das instituições portuguesas, para com material riquíssimo espalhado no mundo sobre a revolução. Fui falar com essas pessoas que tinham um discurso contrário ao discurso oficial, que reduzia a Revolução a um golpe de Estado e o resto eram umas infantilidades de pessoas que queriam mudar o mundo e que deviam ter ficado em casa. Fiz um filme dando a palavra a essas pessoas. As obras demonstrativas e programáticas morrem rapidamente.

Mas percebes que o teu cinema tem um efeito também na forma como as pessoas pensam o tipo de realidades que escolhe filmar...

Sim. Quando fiz o Lisboetas foi para mostrar uma cidade que surpreendeu as pessoas.  Eu tinha uma intenção. O filme termina com o filho de dois ucranianos a nascer na Alfredo da Costa. O que é que ele é? Esses aqui também são lisboetas. Mas não era um filme militante. Funcionava de forma transversal, em círculos transversais. Tenho problemas com pessoas que têm um discurso que é exclusivamente feito para quem já está de acordo com elas. Se vou falar com as pessoas que já sabem o que tenho a dizer, não tenho nada a dizer. Sou mais a favor da interrogação, deixar as pessoas livres para que elas comecem a pensar.

"Marcelo Rebelo de Sousa é um mosquito nesta história, é uma inexistência. Os grandes interesses internacionais não querem tirar o Bolsonaro."

E quais são os próximos projetos?

Estou a planear um filme sobre o Museu Nacional que parte de uma indignação que tenho sobre a relação do Brasil com o seu património, a sua história e memória. E sobre a maneira como o conceito de definição nacional do “Brasil como país de futuro” foi prejudicial ao país. Mas também tenho um filme em fase de montagem sobre uma questão muito sensível e polémica que são as viúvas da jihad. O filme foi abordado em não sei quantas reportagens televisivas no universo francês com um tom de julgamento antes da observação. Eu tento e tenho de observar antes de criar.