Bairro de Santa Filomena parcialmente destruído

Moradores do bairro de Santa Filomena afixaram fotografias nas casas do bairro cuja demoção estava prevista para setembro de 2012 | Foto Lusa/Miguel A. Lopes

Ana Rita Alves: "A ideia de os jovens negros serem barulhentos, desordeiros e perigosos foi construída no discurso público e usada pelos poderes autárquicos"

A autora do livro Quando Ninguém Podia Ficar denuncia a violência dos despejos no bairro de Santa Filomena e classifica o Programa Especial de Realojamento (PER) como fracasso arquitetónico, urbanístico e social que reforçou a segregação social, espacial e racial da Área Metropolitana de Lisboa. Ana Rita Alves aponta ainda o dedo aos média por terem "falhado em perceber o que são e foram muitos dos bairros", contribuindo para a "associação entre bairro, crime e raça".

Entrevista
5 Outubro 2021

Quando a antropóloga Ana Rita Alves, em finais de junho de 2012, se deslocou pela primeira vez ao bairro de Santa Filomena, na Amadora, estava longe de imaginar o “cenário dantesco” que iria encontrar. Ainda não eram oito da manhã e já o bairro se encontrava sitiado: “ninguém entra, ninguém sai”. Muitas pessoas barricavam-se nas casas que haviam construído ao longo da vida, mas todas acabaram por ser retiradas, trazendo os poucos objetos pessoais que conseguiram. Perante o silêncio das técnicas municipais e escoltadas pelo aparato policial, as máquinas avançavam sobre as casas. Em pouco tempo, apenas restava a memória do esforço de uma vida transformado em entulho.

O bairro de Santa Filomena foi demolido ao abrigo do Programa Especial de Realojamento (PER), um programa criado em 1993 e que constituiu a mais robusta política de promoção de habitação pública do Portugal democrático. O objetivo do PER consistia, segundo o Decreto-lei 163/93, na “irradicação definitiva das barracas existentes nos municípios das áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto, mediante o realojamento em habitações condignas das famílias que nelas residem”.

Contudo, a realidade que a antropóloga encontrou no terreno estava muito longe do que a lei definia. Primeiro, porque aquelas demolições dariam origem ao desalojamento, sem alternativa, de 285 pessoas, das quais 105 eram crianças. Depois porque o bairro não era composto por barracas, mas na sua maioria por casas de alvenaria, construídas e registadas nas Finanças.

Quando Ninguém Podia Ficar, acabado de ser editado pela Tigre de Papel, é um livro que retrata os últimos dias de Santa Filomena e uma proposta de reflexão sobre o próprio PER e as suas consequências. Um programa que, em muitos casos, se revelou um fracasso arquitetónico, urbanístico e social através do qual as pessoas passaram a residir em bairros de realojamento afastados do centro, reproduzindo a segregação social, espacial e racial da cidade. Para quem não foi incluído, o programa significou o desalojamento sem alternativa, continuando a viver situações de precariedade e insegurança permanente.

Em entrevista ao Setenta e Quatro, no jardim do Museu de Lisboa, Ana Rita Alves reconstitui a investigação em que se implicou e afirma não ter dúvidas que a invisibilidade histórica das pessoas pobres, negras, Roma/ciganas e imigrantes na sociedade portuguesa se reflete na forma diferenciada como se vive o direito à cidade e à habitação. Advoga que é imprescindível que se faça uma reflexão sobre o PER para evitar que os seus erros se repitam, impede à responsabilização da academia e dos média e defende a recolha de dados étnico-raciais como instrumento para o desenvolvimento de políticas públicas afirmativas de urgência para o combate às desigualdades étnico-raciais no país.

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Ana Rita Alves a ser entrevistada por João Mineiro
Ana Rita Alves diz que no início de 2013 foi perceptível que ou havia uma mudança radical ou o percurso da história do Bairro de Santa Filomena estava traçado | Foto de Ricardo Cabral Fernandes

Quando Ninguém Podia Ficar é um livro que resulta de uma investigação sobre a demolição do bairro de Santa Filomena e as questões da habitação e do racismo na Área Metropolitana de Lisboa. Quando é que decidiste começar este trabalho e porquê?

Em 2012 estava a haver demolições no Bairro de Santa Filomena. Como consequência, havia um conjunto de famílias que estavam a ser despejadas pela Câmara Municipal da Amadora sem qualquer solução habitacional. Aquando das primeiras chamadas de solidariedade, combinei com um amigo e apanhei o comboio cedíssimo para me juntar aos piquetes. Nunca tinha ido a Santa Filomena e quando chegámos o que  vi foi um cenário absolutamente dantesco. Havia um cordão policial gigante a cercar o bairro, onde começavam as demolições. Cheguei por volta das oito da manhã e deixei a Amadora pelas dez da noite porque um dos habitantes foi identificado pela polícia e não tinha a documentação portuguesa regularizada. Foi levado para a esquadra, depois para o tribunal e acabámos por terminar o nosso dia quando ele saiu.

Mas nessa altura a tua pesquisa de mestrado já era sobre este tema?

Não. O meu projeto inicial era refletir sobre a Estratégia Nacional para a Integração das Comunidades Ciganas. Mas confesso que, para além de veres alguém a ser agredido fisicamente, não me lembro de na minha vida ter sentido alguma coisa tão violenta como ver todas aquelas famílias a acordar de madrugada e a ficarem sem casa e sem saberem para onde ir. Quando comecei a ver que havia pouco debate público e também uma ausência grande na literatura académica sobre a questão racial, achei que me impelia alguma responsabilidade de pensar sobre aquele processo. Ainda que fosse uma contribuição tímida, era uma forma de garantir que se entendesse como era possível aquilo estar a acontecer e também para deixar esta história escrita.

Quando começaste a investigação tinhas consciência que estavas a fazer uma etnografia do fim de um bairro ou achavas que a resistência dos moradores podia realmente ganhar?

Embora houvesse resistência, o grau da violência era muito grande. Acho que não tinha a consciência de que estava a fazer a história do princípio do fim de um lugar. Mas havia uma espécie de pronúncio: a escassez da mobilização e da solidariedade política; a impossível resistência dos moradores face a essa violência personificada na Polícia Municipal, no Corpo de Intervenção ou na ausência de diálogo por parte da Câmara Municipal. Não houve nenhuma instituição que desse resposta. Todos os caminhos se foram fechando. No início de 2013, percebeu-se que ou havia alguma coisa que mudasse radicalmente o percurso da história ou este já estava traçado.

A demolição do bairro de Santa Filomena foi feita ao abrigo do Programa Especial de Realojamento (PER). O que foi este programa e qual a sua importância? No livro citas a investigadora Rita Ávila Cachado que afirma que o PER “é um assunto cansado”, embora defendas que a sua materialidade continua presente. Porquê?

O PER é o primeiro programa de investimento robusto do Estado na promoção de habitação pública no pós-25 de Abril. Foi promulgado em 1993 e aplicado às áreas metropolitanas de Lisboa e Porto. Era um programa que tinha como objetivo, e estou a citar, a “erradicação dos bairros de barracas”. Quando a antropóloga Rita Ávila escreveu, em 2012, que o PER era um “assunto cansado” era porque muito já se havia discorrido sobre o programa.

Desde a década de 1990 que um conjunto de pessoas ligadas ao ISCTE-IUL e à sociedade civil vieram avisar que muitas das coisas pensadas no PER significariam uma segregação das populações realojadas e não a plena promoção de habitação digna. Não obstante, apesar da revogação do PER em 2017, parece-me fundamental refletir sobre o que foi o programa para não se repetirem as mesmas fórmulas. Por muito que o PER esteja finalizado, ele continua vivo porque mudou brutalmente o desenho da Área Metropolitana de Lisboa e porque há um conjunto de famílias que foram despejadas já nas décadas de 2000 e 2010 que não viram qualquer tipo de solução implementada pelas autarquias.

"Além de veres alguém a ser agredido fisicamente, não me lembro de na minha vida ter sentido alguma coisa tão violenta como ver todas aquelas famílias a acordar de madrugada e a ficarem sem casa e sem saberem para onde ir."

O balanço que fazes do PER é o de, em muitos casos, ter sido um fracasso como modelo arquitetónico, como solução urbanística e na forma de atribuição dos fogos. Foram fracassos deliberados ou os poderes públicos não tinham consciência de que em nome do combate a um problema estavam a construir outro?

Há um antropólogo haitiano chamado Michel-Rolph Trouillot que afirma que os silenciamentos na história não são produzidos numa sala com cinco conspiradores, que estes são ontológicos e estruturais à maneira como o capitalismo racial e os Estados-Nação se foram implementando, repensando e refazendo. Acho que com o PER é a mesma coisa. Nunca uso a palavra “erro”, porque quando tens um sistema ou um Estado que é estruturalmente racista, a reprodução do racismo simplesmente acontece. Quando tens comunidades que historicamente, em Portugal, foram construídas na zona do não-ser, na linha da desumanização, a maneira como estas vão ser tratadas pelo Estado será automaticamente de forma desumana e não como pessoas, como sujeitos políticos.

Nem como sujeitos políticos, nem aparentemente como parte do corpo nacional.

Exatamente. Isso tem a ver com a forma como os Estados-nação se constroem e como designam aqueles que ‘fazem’ ou não parte dessa nação. No caso de Portugal, um exemplo paradigmático é a Lei da Nacionalidade de 1981: não basta nascer, viver e contribuir para um país para fazeres parte dele. É mais importante que, metaforicamente, nas tuas veias corra sangue que historicamente é associado a esse país. Neste sentido, e voltando ao PER, não me parece que haja erros.

É verdade que muitos departamentos de habitação não tinham capacidade material nem recursos humanos e que há uma data de questões relacionadas com os recursos das autarquias. No entanto, parece-me que o mais importante é que, de certa maneira, a reprodução do racismo é ontológica à forma como o Estado português olha para aqueles que não considera serem parte do corpo nacional e que, perante esta escassez, era por vezes mais importante garantir a implementação do programa do que dignificar a vida das pessoas.

Na construção dos novos bairros de realojamento recorreu-se a um modelo de construção que funciona como uma forma de demarcação no espaço urbano, seja pela arquitetura, pelas cores, materiais ou pela localização. Foram soluções tomadas por meros constrangimentos financeiros ou temporais ou há outras razões que explicam estas soluções urbanísticas?  

São vários fatores. Tens todos os constrangimentos económicos em torno disso, mas não o problema do tempo. O PER na Amadora demorou mais de 20 anos a ser implementado. Por muito que pudesse haver um interesse genuíno de promover melhores condições habitacionais, é um facto que havia um interesse muito grande em ‘libertar’ terrenos. Mas tudo isto acontece também porque esses espaços são habitados por pessoas não-brancas. É obvio que o poder público, nomeadamente na Amadora, não tem interesse em que essas pessoas participem na vida política e pública desses espaços.

Mas achas que essa exclusão é pensada racionalmente pelo poder autárquico?

Sim. Por exemplo, a ideia construída nos anos 1990 de que jovens negros são barulhentos, desordeiros e, no limite, perigosos para os centros da cidade foi construída no discurso público e mediático, mas também foi construída e utilizada pelos poderes autárquicos para venderem determinado tipo de cidade que excluiu sistematicamente essas pessoas. Quando tens a construção de um discurso sobre “o bairro” e as pessoas que vivem “no bairro” como um problema, que lhes imputa criminalidade, como se a criminalidade fosse imanente ao próprio espaço, claro que há uma intenção de afastar as pessoas da participação. Vão para o Casal da Mira, onde estão completamente segregadas, onde não há transportes.

O PER começa a ser implementado poucos anos depois da entrada na CEE, em 1986, e poucos anos antes da inauguração da Expo'98, num momento de uma certa reimaginação de uma ideia de país virado para a Europa. No caso de Lisboa, essa projeção era incompatível com a imagens dos bairros autoconstruídos e com as condições em que as pessoas viviam. Isso pesou no desenho feito do programa?

Acredito que sim. O PER acontece não só antes da Expo'98, mas antes da Lisboa Capital Europeia da Cultura, em 1994. Em 1993, quando aterravas na Portela, tinhas o Bairro da Quinta da Vitória e tinhas o Bairro da Torre, em Camarate. A primeira imagem era um conjunto de bairros autoproduzidos que existiam à volta do aeroporto.

Nesse sentido, quando o país se começa a reimaginar como parte da Comunidade Europeia, uma parte dessa modernização é feita com esta perspetiva urbana em que se mostram as potencialidades do país a partir da sua capital. E, portanto, embelezá-la, torná-la mais agradável a partir de um olhar da branquitude também impelia a acabar com determinado tipo de espaços que lhe davam uma imagem muito colada à pobreza do Estado Novo. Isso era fundamental para fazer essa fronteira entre o passado e a contemporaneidade.

"No caso do 6 de Maio, muitas mulheres sozinhas, com idades acima dos 50 anos, ficaram na rua. Hoje vivem em quartos alugados noutros bairros, mas quando esses bairros forem demolidos, para onde é que elas vão?"

O que caracteriza, então, estes bairros para onde parte das pessoas dos bairros autoconstruídos foram realojadas?

É importante a ressalva de que houve tantos PER’s quanto o número de municípios, de bairros ou de famílias. Não obstante, naquilo que é a minha experiência, do que observei na Área Metropolitana de Lisboa, o PER resultou essencialmente na construção de bairros monótonos, em forma e em estética, e todos eles em enclaves. Mesmo bairros como o Casal do Silva, que está mais ou menos no centro da Amadora, não deixa de estar num enclave. É um bairro que tem uma saída e uma entrada, e todos os prédios à volta viram para si as suas costas. Está no centro, mas não é visto e não vê. O Casal da Mira tem 760 fogos, tem quatro ruas que o atravessam, é inóspito do ponto de vista de espaço público e há muito poucos transportes públicos. Só passa um autocarro no centro do bairro, que demora 40 a 50 minutos a chegar à estação do comboio da Amadora.

Nestas autárquicas discutiu-se muito um projeto para que a Amadora deixasse de ser uma cidade-dormitório, e passasse a ser uma cidade com todo o tipo de fruições. É interessante notar que os moradores do Casal da Mira, nem que seja pela mobilidade, são automaticamente excluídos dessa fruição. Depois há também a questão da sobrelotação dos fogos. Se não constróis uma sociedade em que os filhos têm oportunidades diferentes dos pais, tu não podes esperar que os filhos conseguiam comprar e arrendar casa no mercado privado. É natural que os filhos continuem a viver em casa dos pais.

Há moradores que relatam que no processo de realojamento foram pressionados para aceitar a primeira solução que lhes era proposta sob pena de poderem ficar sem alternativa. Foi uma forma de pressão da Câmara Municipal?

Era dito às pessoas recenseadas que tinham direito a recusar três vezes. Há pessoas que te vão dizer que isso nunca aconteceu, que nunca sequer viram a habitação antes de irem para lá viver. E ainda houve famílias mesmo recenseadas, quando reivindicaram o desdobramento, porque já viviam em casas separadas dos pais, que foram excluídas dos PER. Evitando qualquer tipo de exotização sobre aquilo que eram as condições precárias em que muitas famílias viviam em bairros autoconstruídos, hoje em dia, quando tu olhas para o que podiam ter sido os ganhos do realojamento, vais perceber que à medida que o tempo foi passando o sentimento de perda se adensou.

Nestes casos de realojamento, estamos a falar apenas de pessoas que em 1993 foram recenseadas pelo PER. Mas depois temos todas as outras que chegaram depois de 1993 e que foram excluídas. Quando as casas dessas pessoas foram demolidas, foi oferecida alguma alternativa?

O discurso era que há pessoas com direito ao PER porque foram recenseadas em 1993 e outras que não têm direito ao PER porque chegaram depois dessa data. Isso até fazia com que houvesse essa própria expressão dentro do bairro: os “com” e os “sem” direito, como se houvesse alguém que não tivesse direito à habitação. Isso dividiu a resistência e a própria luta.

No caso de Santa Filomena, a Habita! afirma que havia 285 pessoas não abrangidas pelo programa. Para onde foram essas pessoas desalojadas depois das suas casas serem demolidas?

Aquando da demolição do bairro 6 de Maio houve pessoas que dormiram na rua, em garagens. Em Santa Filomena dormiram em cabeleireiros, em casa de algum familiar ou de amigos. Algumas conseguiram alugar casas para a família toda, ou alugaram quartos em bairros de autoconstrução. No caso do 6 de Maio, muitas mulheres sozinhas, com idades acima dos 50 anos, ficaram na rua. Hoje vivem em quartos alugados noutros bairros, mas quando esses bairros forem demolidos, para onde é que elas vão? Face às reformas muito baixas que muitas destas senhoras têm e às suas condições de saúde, o que acontece é que as pessoas podem muito brevemente não ter para onde ir. Outra vez. E o PER também vive aí, nessa insegurança.

A Câmara Municipal da Amadora tinha consciência de que, no caso de Santa Filomena, estas quase 300 pessoas não tinham solução?

Claro. A Câmara promoveu um despejo sem alternativa. O argumento era que não havia dinheiro ou possibilidade de realojar e que era urgente fazer cumprir o PER. Há um dos moradores que conta que, numa das reuniões com a Câmara, disse: “Mas se neste momento não há dinheiro, pelo menos deixem-nos ficar até que se reúnam as condições para que possamos sair com dignidade”. Essa hipótese foi completamente negada por Carla Tavares, então vereadora da Habitação e hoje presidente de Câmara da Amadora.

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Ana Rita Alves tem acompanhado de perto as lutas pelo direito à habitação na Área Metropolitana de Lisboa
Ana Rita Alves tem acompanhado de perto as lutas pelo direito à habitação na Área Metropolitana de Lisboa | Foto de Ricardo Cabral Fernandes

Os moradores foram à Câmara Municipal da Amadora, ao Alto Comissariado para a Imigração e Diálogo Intercultural, à Provedoria de Justiça, ao Instituto para a Habitação e Reabilitação Urbana. Ninguém encontrou solução?

Ninguém deu qualquer tipo de solução. Havia um silêncio gigantesco da parte das instituições. Ou então davam razão às ações em curso da Câmara Municipal da Amadora. É das coisas mais paradoxais: um programa narrado como a grande solução habitacional do Portugal democrático serviu como argumento para despejar pessoas. É surreal.

No livro são relatadas formas de pressão, cargas policiais, ameaças de denúncia ao SEF ou até discursos de apelo ao retorno aos países de origem. Ao mesmo tempo, durante décadas, o Estado reconheceu a formalidade das habitações destas pessoas que inclusivamente pagavam Imposto Municipal sobre Imóveis (IMI). Há aqui um paradoxo na ação do Estado que está a demolir propriedades a moradores que antes reconhecia como proprietários?

Sim. Por isso é que acho a semântica tão importante. Recuso-me a usar a expressão “bairro informal” ou “bairro clandestino” porque a maior parte dos habitantes pagavam Imposto Municipal sobre Imóveis e, nesse sentido, houve um reconhecimento da formalidade do lugar. Além disso, muitas das casas são de alvenaria e continuam a chamar-lhes reiteradamente “barracas”. Há uma certa semântica que vai sendo criada sobre determinado tipo de lugares. A partir de um discurso que parece legitimar a efetividade do Estado-providência, estás na realidade a cometer várias violências e a silenciar a experiência e a vozes dos moradores. O argumento de que se as pessoas construíram as casas e pagaram IMI deviam ter algum reconhecimento, face a um discurso que deslegitima historicamente a presença destas pessoas no país, não vale nada quando vais a jogo com o poder.

"A Câmara da Amadora promoveu um despejo sem alternativa. O argumento era que não havia dinheiro ou possibilidade de realojar e que era urgente fazer cumprir o PER."

Então e como é que todo este processo de demolições e resistência acaba?  

As parcelas de terreno começam a ser agrupadas por uma pequena empresa de imobiliário local. É preciso não esquecer que naquela zona, antes das demolições, é construído um condomínio de classe média e média-alta. E, portanto, o que acontece é que começa a ser pensado para ali um outro projeto de cidade que não inclui o bairro.

Nem o bairro nem aparentemente aquelas pessoas. Ou não seria possível uma outra solução, por exemplo, de reabilitação mantendo os moradores?

Sim, penso que por volta de 2003, o presidente da Câmara Municipal da Amadora, Joaquim Raposo, foi a Santa Filomena e chegou a equacionar a hipótese de o bairro ser reabilitado e de as pessoas poderem ali ficar. Com o negócio com o “Villafundo – Fundo Especial de Investimento Imobiliário Fechado”, em 2007, começaram algum tempo depois os realojamentos e, a partir de 2012, as demolições mais brutais.

Neste momento os terrenos estão à venda e são publicitados pela Cushman & Wakefield como “a mais importante bolsa para a promoção residencial para a classe média da Grande Lisboa”.  

Sim, foi posto à venda este ano. No fundo, foi a confirmação de como este processo de gentrificação na periferia está também relacionado com o que veio a acontecer mais tarde no centro de Lisboa, nomeadamente quando se aprova a Nova Lei das Rendas. Tens outros terrenos e construções preparados nestas zonas limítrofes para receber as pessoas expulsas.

No livro citas os trabalhos de Teresa Barata Salgueiro ou Jorge Malheiros, autores que admitem que há segregação espacial, mas que tu consideras não conferir centralidade aos processos de dominação e discriminação racial. Ao mesmo tempo falas da intervenção de académicos que sempre contestaram os efeitos nefastos do PER. Qual a responsabilidade da academia e do ensino neste debate?

Há um conjunto de académicos que têm vindo a trabalhar sobre o direito à cidade e à habitação, que estão intimamente ligados, e que são bastante interventivos do ponto de vista do que é a consagração do direito à habitação em território português. Não obstante, o grande blind spot, aquilo que fica sempre em omissão, é qual o papel da raça como categoria política, e de como esta vem tendo um papel fundamental nestes processos.

Olha-se muito para a questão da classe, sem se pensar que os processos de racialização também concorrem para o empobrecimento. Há uma dificuldade muito grande em conceber o racial como categoria central para se pensar os processos sociais. Tão central como a classe ou o género.

Em Portugal ainda não tens uma discussão sobre a interseção entre raça e espaço, quando ela é tão evidente quando andas na Área Metropolitana de Lisboa. A academia não reconhece o papel da raça e do racismo. É uma discussão que não faz parte do que foi canonizado como  literatura de referência e se tu não tens esse enquadramento, se ele está ausente, tu não vais olhar para a realidade social por aí. No caso da academia portuguesa, a falta de reconhecimento do papel estrutural do racismo na construção das desigualdades, a sua circunscrição às esferas individual e moral, contribuiu para que este se reproduza impune.  

Citas várias reportagens mediáticas que fazem uma caracterização dos bairros autoconstruídos de forma homóloga à caracterização dos seus habitantes. O bairro é clandestino e as pessoas são clandestinas. O bairro é degradado e as pessoas são desviantes. Houve recentemente uma reportagem do fotógrafo José Ferreira que representa o bairro 6 de Maio exclusivamente a partir de armas e consumo de droga. Quais são as responsabilidades dos média nos processos de reprodução do racismo institucional? Sentes que tem vindo a mudar nos últimos anos?

Muitas vezes, os trabalhos feitos sobre os bairros, sejam académicos ou mediáticos, dizem muito mais sobre quem os faz do que sobre aquilo que é a realidade vivida pelas pessoas. As notícias e reportagens dos média sobre bairros de autoconstrução e mais tarde de realojamento oscilavam entre a criminalização, a exotificação e o fascínio (como é o caso desse trabalho fotográfico). É uma reprodução do repertório colonial, em que as pessoas negras e ciganas são representadas a partir de um imaginário de bestialização do corpo e que explora a pobreza como estética.

Os média falharam em perceber o que são e o que foram muitos destes bairros, contribuindo para que se afirmasse esta associação entre bairro, crime e raça. No entanto, é verdade que ao longo do tempo e, sobretudo a partir de 2015, começaram a surgir trabalhos mediáticos mais interessados em perceber a complexidade dos processos que fazem com que determinado tipo de espaço exista, ou que determinado tipo de coisas estejam a acontecer. Acho que recentemente tem havido trabalhos muito mais esforçados.

"Os média falharam em perceber o que são e o que foram muitos destes bairros, contribuindo para que se afirmasse esta associação entre bairro, crime e raça."

O teu livro trata muito do papel do Estado em todos estes processos. Ao mesmo tempo defendes a recolha de dados étnico-raciais. Não consideras paradoxal fazer o balanço negativo do papel do Estado na reprodução do racismo e ao mesmo tempo considerares que o Estado deve recolher os dados étnico-raciais destas pessoas? 

É uma discussão complexa. É muito paradoxal que quando é o Estado que te está a demolir a casa, tenhas que recorrer ao Estado para ter casa. Para mim, tem a ver com uma dinâmica de urgência. A urgência é que há jovens mortos às mãos do Estado, há pessoas e famílias a ficarem sem casa às mãos do Estado, há pessoas que não têm acesso à educação e à saúde às mãos do Estado. Na verdade, este tipo de dados já estão a ser recolhidos informalmente sem que haja qualquer tipo de participação ou qualquer tipo de autoidentificação daqueles e daquelas que estão a ser catalogados.

Em que sentido?

Recorre-se a indicadores étnico-raciais em estudos seccionais, em recolhas informais, em recolhas formalizadas com formulários em espaços como as maternidades ou na definição de categorias do grau de perigosidade do que o Estado denominou de “zonas urbanas sensíveis”. É mentira que o Estado não recolha dados étnico-raciais. O Estado recolhe das mais diversas formas e a questão é que nunca se pediu que esses dados sejam meramente recolhidos. A recolha de dados é um meio para que se possam criar políticas públicas afirmativas de urgência. Não há números que nos permitam perceber qual a grandeza e a estrutura das desigualdades étnico-raciais num país onde, de acordo com um estudo da Rede Europeia Anti-Pobreza, de 2009, as pessoas ciganas vivem menos 18 anos do que as não-ciganas.