Manuel Loff

Manuel Loff: "A esquerda está hoje incapaz contra a ultradireita e o liberalismo autoritário"

O historiador alerta para a necessidade de "decretar uma emergência antifascista" face ao "assalto ao poder da extrema-direita". A sociedade deve estar atenta a qualquer projeto de natureza securitária que, por causa de uma pandemia ou das alterações climáticas, a queira colocar em estado de "insegurança permanente".

Entrevista
24 Novembro 2022

A Assembleia da República prepara-se para discutir aquela que será a oitava revisão da Constituição da República Portuguesa em pouco menos de 50 anos. O processo, espoletado pelo Chega, deverá levar à legalização da utilização dos metadados - dados  sobre tráfego online e comunicações móveis - como prova em investigações criminais. PS e PSD também convergem na agilização do confinamento de pessoas portadoras de doença contagiosa grave, privando-as da sua liberdade, consagrada na lei, em nome da saúde pública.

Para Manuel Loff, historiador dedicado ao estudo dos autoritarismos contemporâneos, estas propostas não são surpreendentes. Em conversa com o Setenta e Quatro, afirma que Portugal entrou nesta “experiência autoritária de normalização da exceção através dos estados de emergência” decretados desde março de 2020 por causa da pandemia. As revisões apresentadas mostram vontade de “aproveitar as lições” daí tiradas, afirma.

A governação pela emergência, acrescenta o coautor do livro O ‘Novo Normal’, tornou-se uma “tendência constante do liberalismo autoritário”, numa altura em que as ultradireitas ensaiam vários “assaltos ao poder”. Um perigo duplo para a democracia, enfraquecida pela abstenção eleitoral, pelo refluxo da esquerda representativa e dos movimentos sindicais e pela despolitização das novas gerações, atiradas à precariedade, e dos trabalhadores mais pobres.

Lamentando que até à esquerda seja visto como um “relativo exagero” dizer que as novas extremas-direitas ameaçam os fundamentos das nossas democracias, Loff acredita na necessidade de declarar uma emergência antifascista. A esquerda que ainda se revê “numa leitura marxista da realidade” e se “concentra na defesa dos direitos dos trabalhadores, das mulheres, dos migrantes e das minorias étnicas deve assumi-la“, argumenta o historiador.

Dependemos de quem nos lê. Contribui aqui.

Falemos sobre a revisão constitucional. PS e PSD concordam com a mudança que permitirá acesso aos metadados [dados de tráfego e utilização de dispositivos móveis] e uma maior facilidade em declarar confinamentos por razões de saúde pública. Há uma inclinação potencialmente autoritária?

Não tenho dúvidas. Nos últimos 20 anos, a agenda neoliberal tem sustentado a ideia de um Estado ligeiro, pequeno. Seria um Estado com cada vez menos competências e capacidade para implementar políticas sociais e interferir nas políticas económicas, ainda que se mantendo representativo da classe dominante. Ao mesmo tempo, seria particularmente punitivo. E temos visto, efetivamente, o reforço da capacidade punitiva dos estados.

Nos estudos feitos sobre isso, desde os anos 1990, tem-se falado de dois grandes conceitos: capitalismo carcerário e capitalismo de vigilância, tratados especialmente por Louïc Wacquant e Shoshanna Zuboff, respetivamente. Esta tendência acompanha a mudança de ciclo do capitalismo — e do imperialismo, à escala internacional — desde o fim da União Soviética. O programa neoliberal para ampliar a abrangência planetária do capitalismo incorpora esses "ingredientes".

"Não há uma transferência de votos, na classe trabalhadora, da esquerda para a extrema-direita, mas da esquerda para a abstenção."

No período da pandemia, Portugal entrou nesta grande experiência autoritária de normalização da exceção através dos estados de emergência. Em todo o mundo, mais de metade dos Estados declarou, em algum momento, um estado de emergência à escala nacional. Portugal foi um dos países que o fez mais vezes, 15, com a particularidade de se ter aplicado a suspensão do direito de greve, o que em nenhum outro país aconteceu. Os três primeiros decretos presidenciais de estado de emergência já incluíam essa suspensão e foram aprovados, inclusive, por partidos à esquerda.

Não me admira, portanto, que neste processo de revisão constitucional se queiram tirar lições do que foi esta experiência da normalização da exceção. A parafernália legal dos estados de emergência veio acompanhada do reforço de aspetos redundantes, como o crime de desobediência à autoridade — que já está na lei comum, mas foi reiterado — e o dever de recolher obrigatório, a mais dura das medidas decretadas, acompanhada por um reforço do policiamento.

Também houve pouca resistência a isso.

A nossa sociedade foi das que menos resistência ofereceu a estas medidas. Não ponho em causa a gravidade da situação sanitária que se vivia. Apenas afirmo que se criou um modelo de governança dita democrática que entendeu que o combate a uma crise de saúde pública requer a suspensão da democracia. Não nos esqueçamos da campanha que se fez contra a CGTP-IN quando, em 2020, se quis comemorar o 1.º de Maio na rua. O Governo teve de relembrar que o direito à manifestação não estava suspenso.

A linguagem de intimidação a que os cidadãos e os movimentos sociais portugueses foram sujeitos durante estes anos foi a mesma usada durante os dois anos consecutivos de estado de emergência em França, instaurado a pretexto dos ataques terroristas de 13 de novembro de 2015 e que durou até 2017. Nos primeiros seis meses, a Amnistia Internacional contou centenas de casos de manifestações proibidas à luz do perigo que significariam, na opinião das autoridades policiais e não de um juiz. Cerca de 600 franceses foram individualmente interditados de participar em manifestações no espaço público.

O assalto ao poder da ultradireita neofascista, dentro das nossas democracias, é feito num contexto generalizado de legitimação da governação pela emergência. Legitimação essa feita pelas forças políticas que gerem os países do Ocidente. Podem tanto ser os sociais-democratas, no caso português, como frentes amplas de direita ou  liberais clássicos, como Emmanuel Macron. A democracia portuguesa não hesitou em validar a tese que diz haver uma série de problemas nas sociedades contemporâneas que não podem ser resolvidos sem quebrar a norma constitucional.

Isso mostra uma abordagem de antecipação por parte dessas democracias liberais em relação ao tal assalto neofascista ao poder?

É uma tendência constante do liberalismo autoritário, nos últimos 30 anos, e que ajuda a fomentar a cristalização, na ultradireita, de propostas que radicalizam o processo de securitização. A teoria da securitização da Escola de Copenhaga diz que o discurso sobre a segurança — e sobretudo sobre a insegurança — é performativo. Normalmente, são as autoridades políticas que enunciam os perigos para a segurança e os estados de insegurança, e que então requerem um tratamento fora do âmbito político, cívico, da normalidade constitucional.

A securitização presume sempre que não há qualquer liberdade ou direito que possa ser exercido sem que se assegure antes a segurança — dos cidadãos, do Estado, das empresas, da propriedade, do espaço público. E esse é o discurso de todos os Estados autoritários, sem exceção. Desde 1945 que nenhum regime autoritário se descreve a si próprio como autoritário. Descrevem-se como garantes da normalidade quotidiana que,para ser assegurada, necessita da suspensão de direitos constitucionais e liberdades cívicas.

A partir do final dos anos 1970, o novo ciclo em que o capitalismo entrou veio acentuar a desigualdade de rendimentos em todo o mundo, não só entre o Norte e o Sul globais mas também  entre os seus respetivos centros e periferias. Ao mesmo tempo, ampliou todos os esquemas de exploração dos recursos e das populações, o que reforçou a acumulação de capital no Norte. Este processo está a motivar uma tensão interna nas sociedades que requer, nem que seja de forma preventiva,  uma legitimação dos esquemas de controlo social.

É por isso que a lógica autoritária de governo nestas sociedades, por mais que elas se digam democráticas, se tornou intrínseca ao liberalismo. A aliança intensa dos últimos 30 anos entre os aparelhos estatais e os mega-grupos económicos internacionais tem reforçado a capacidade de controlo sobre as sociedades. As formas de controle que o nazismo exerceu sobre os alemães figuram-se como uma brincadeira ao lado dos recursos que hoje se reuniram neste domínio.

"Quando a precariedade é reiterada e repetida durante 20 ou 30 anos, cada geração aprende com a anterior que ser jovem é ser-se precário e que nada mudará com o voto."

Nota que essa securitização autoritária acontece tanto com sociais-democratas como com frentes de direita.  Escreveu uma vez que a extrema-direita só chega ao poder pela mão das outras direitas. Como é que estás ideias se ligam?

Na era do fascismo clássico (entre a ascenção de Benito Mussolini ao poder em 1922 e a derrota de Adolf Hitler em 1945), a grande maioria dos partidos fascistas, em especial o Partido Nacional Fascista italiano e o Partido Nacional-Socialista alemão, chegou ao poder dentro de frentes de direita e em momentos onde a deriva autoritária do liberalismo era absolutamente evidente. 

A partir de 1930, na Alemanha, não há maioria parlamentar possível que sustente um governo economicamente austeritário e autoritário na repressão dos movimentos sociais e laborais. É ativada uma norma de emergência e o governo perde o seu caráter representativo. Isto, sabemos, dá lugar à entrada de nazis no governo, em coligação com muitos daqueles que, entre 1930 e 1933, haviam estado no poder e que acabam por se nazificar.

No caso italiano, os fascistas beneficiaram da derrota do movimento operário em 1920 e 1921, em cujos momentos de repressão formaram uma pequena milícia, armada pelos grandes proprietários de terras e os magnatas da burguesia industrial. Destruíram sedes do Partido Comunista Italiano, atacaram manifestações de grevistas. Isso vem acompanhado do reforço de medidas repressivas contra o movimento operário para evitar o seu retorno insurrecional.

A burguesia do período, que até aí aceitou a solução liberal para gerir os conflitos sociais intrínsecos ao capitalismo, percebeu que teria de tomar medidas para impedir qualquer alteração da ordem social que se aproximasse daquela que se assumira na Rússia em 1918. Em ambos os casos, temos um período inicial de degradação acentuada do sistema liberal, tornando-se o seu autoritarismo mais explícito, o que abre caminho à ascensão da extrema-direita. A solução autoritária já estava legitimada antes de se ter cessado formalmente a existência do regime liberal.

Vemos, hoje, situações semelhantes?

Vejamos a França. Durante o estado de emergência decretado em 2015, e renovado em 2017, pelo ultraliberal Macron, os suspeitos de terrorismo ou de criminalidade organizada podiam estar 72 horas sem acesso a qualquer representante legal. Na sequente transposição dessa lei excecional para o direito comum francês, esse prazo passou a ser de seis dias consecutivos. Legalizou-se a ação policial, sem autorização judicial, sobre todos os suspeitos enquadrados naquilo que se designa como os "ficheiros S" [base de dados de indivíduos considerados potencialmente perigosos para a segurança nacional].

Em 2017, nas eleições disputadas entre Emmanuel Macron e Marine Le Pen, a candidata da ultradireita não tinha qualquer objeção às medidas de estado de emergência, antes pelo contrário.

Se não há um inimigo comum e revolucionário a derrotar, o que alimenta estes movimentos neofascistas? É a globalização e a islamofobia, ou simplesmente a vontade de poder?

É uma mistura disso tudo. Os dirigentes neofascistas do século XXI não são Mussolini, nem Hitler, nem precisam de o ser. Se o fossem, estariam inadequados no nosso século. Mas este assalto neofascista ao poder faz-se numa fase semelhante à que se verificou nos anos de 1920. É um momento de refluxo das esquerdas organizadas e, sobretudo, do movimento operário.

Este contexto global, que já leva 40 anos, é um dos pré-requisitos para o avanço do neofascismo. Quanto menos oposição houver, mais ele avança. E não é a oposição da democracia formal, dos textos constitucionais ou do vigor, como dizem os liberais, dos checks and balances.

Os fascismos tiveram sempre o cuidado — como hoje a ultradireita neofascista tem — de criar ficções jurídicas e políticas dentro das quais é central a aparência da legalidade. Para a classe dominante é muito importante fingir que as instituições continuam lá.

O historiador argentino Federico Finchelstein diz que “o populismo tem um compromisso com a democracia". Esse compromisso não será apenas inicial e demagógico?

Completamente. Há um erro na tese de Finchelstein: julgar estes atores políticos contemporâneos através do seu discurso explícito, pura e simplesmente, mesmo que  seja um instrumento intenso de propaganda.Desde a derrota de Bolsonaro que a retórica bolsonarista, no meio dos bloqueios de estradas, se arroga da liberdade contra a censura. Para eles, o totalitarismo viria da censura do "politicamente correto".Os fascismos dos anos 1920 e 1930 reivindicavam-se como resistentes contra a "ditadura plutocrática", dos ricos que usavam os comunistas, os judeus e as minorias étnicas como instrumentos de sabotagem interna para desfazer e controlar as sociedades.

"O assalto neofascista ao poder faz-se num contexto de regressão dos direitos sociais e das liberdades públicas num contexto de liberalismo autoritário."

Hoje, isso não acontece porque há, sobretudo, a memória de Auschwitz. As novas ultradireitas são racistas, mas não se dizem antissemitas. Essa preocupação decorre de uma consciência evidente que o argumento mais consensual contra o fascismo é a memória do Holocausto. Há, também, a importância geopolítica do Estado de Israel contra o "pior inimigo do Ocidente", que seria o Islão. Isto reverbera nos ultrarreligiosos dos Estados Unidos da América ou do Brasil, por exemplo.

É ingénuo julgar, como Finchelstein faz, que a ultradireita dos nossos dias, ao não pôr em causa a natureza liberal-democrática dos Estados mas aproveitando o pluralismo e a competição eleitoral para promover a sua agenda e forçar o resto das direitas a colaborar, não avançará para soluções autoritárias.

Essa tese não só é anterior ao assalto ao Capitólio norte-americano e ao processo de desrespeito eleitoral que se desenrola no Brasil, como já desvalorizava a natureza intrinsecamente autoritária dessa fase do liberalismo que hoje vivemos. A securitização e a normalização da exceção, sobretudo desde o 11 de Setembro, é uma manifestação evidente disso. E abrem as portas a formas mais genuínas de autoritarismo.

Andamos a desvalorizar o perigo da remontada da ultradireita?

Até à esquerda continua a ser visto como um relativo exagero dizer que as democracias estão em perigo. E depois diz-se que é uma tristeza que as pessoas não votem, como se não se percebesse porque é que acontece. Ou melhor: como se não se percebesse quem não vota. Se há manifestação evidente da desdemocratização das democracias liberais nos últimos 40 anos, é a redução da participação eleitoral dos mais pobres e das classes trabalhadoras.

Ao contrário do que dizem muitos investigadores do campo mais conservador e liberal das ciências sociais, não há uma transferência de votos, na classe trabalhadora, da esquerda para a direita ou para a extrema-direita. Há uma transferência do voto na esquerda para a abstenção. A burguesia sabe bem que o instrumento eleitoral, ainda que não seja essencial para a sua dominação de classe, é tão útil como qualquer outro para legitimar essa dominação.

Também podemos questionar porque é que os mais jovens votam menos que os mais velhos. Os motivos são os mesmos. Quando a precariedade é reiterada e repetida durante 20 ou 30 anos, cada geração aprende com a anterior que ser jovem é ser-se precário e que nada mudará com o voto. A mobilização da ultradireita em fase de desmobilização política daqueles que lhe poderiam ser alternativa é central para explicar o seu êxito.

Com efeito, tem sido costume colocar às costas dos trabalhadores e dos mais pobres a culpa do crescimento eleitoral das extremas-direitas, como nos Estados Unidos, apelidando-os de "deserdados da globalização".

É um discurso paternalista, tipicamente liberal e pseudo-meritocrático: é potencialmente desempregado ou está a caminho da desclassificação social todo aquele que não soube, por sua própria responsabilidade, acompanhar a mudança. Por cima disso, todo o discurso sobre a má participação política da classe trabalhadora — que presume que antes esta votaria na esquerda radical e hoje vota na ultradireita — mostra um profundo desprezo de classe: "além de estúpidos e inqualificados, votam sempre mal".

Essa discussão implanta-se com o Brexit, quando o voto a favor foi maioritário em regiões operárias. E percebe-se porquê. Não é como se todo o voto a favor do Brexit tenha sido um voto racista, de ultradireita. A partir da vitória de Donald Trump, reforçada pelos votos das regiões pós-industriais, locais de profunda degradação social e onde viveriam ainda os velhos operários e os seus filhos e netos, essa discussão chega a Portugal. E tem sucesso porque parte do mesmo preconceito.

"Por oposição ao CDS-PP e à Iniciativa Liberal, partidos elitistas, o Chega quer ser um partido popular."

Falando na abstenção, também podemos falar de dessindicalização. Em outubro, o Chega anunciou que queria criar uma alternativa sindical à CGTP-IN e à UGT. Que manobra é esta?

Historicamente, os fascistas sempre perceberam que era forçoso aproximar-se do mundo do trabalho, mesmo que centrando a sua retórica em certos setores da burguesia ou da pequena-burguesia, como as classes médias aterrorizadas pela proletarização. E, normalmente, não entram nos sindicatos, criam novos. Chegando ao poder, eliminam pela repressão os sindicatos livres.

Tenho curiosidade em perceber se o Chega terá capacidade de vampirizar sindicatos já constituídos. Se falarmos da miríade de sindicatos de polícias que existem em Portugal, não é difícil imaginar essa possibilidade. Vários deles têm dirigentes que se candidataram pelo Chega e podemos dizer que uma parte substancial dos elementos das forças de segurança subscreve as teses do Chega e muitos serão eleitores ou simpatizantes deste ou de outros partidos da ultradireita.

Ao aproximar-se dos sindicatos de polícias e professores, o Chega sinaliza querer legitimar-se como um partido de massas?

Creio que sim. Não usará essa terminologia, mas quer ser um partido popular. Já um movimento de massas, capaz de, em momentos de grande mobilização política, trazer milhares de pessoas para a rua, não creio. O neofascismo do século XXI não tem vocação para grandes manifestações de massas. O trumpismo não foi feito disso e nem mesmo o assalto ao Capitólio se pode descrever dessa forma. O bolsonarismo também não, mesmo com o que temos visto depois da vitória de Lula da Silva.

O Chega nunca teve nada que se assemelhasse a isso. O partido resultou, em grande parte, da mobilização da transferência de militantes da ultradireita que estavam dentro dos partidos da direita tradicional portuguesa, o PSD e o CDS-PP, e que decidiram enveredar pela autonomização. André Ventura é o melhor representante disso.

Por oposição ao CDS-PP e à Iniciativa Liberal, partidos elitistas, o Chega quer ser um partido popular. Nisso competirá com o PSD, que mistura as elites mais tradicionais da sociedade portuguesa com o recrutamento das classes médias-baixas e baixas do norte e do centro do país.

Um dos agentes de radicalização de algumas comunidades da classe trabalhadora têm sido as igrejas cristãs neopentecostais, como nos EUA ou no Brasil. Em alguns casos, estudiosos empregam o termo "cristofascismo" por causa da propagação de discurso de ódio e apologia a estados de exceção. Esta aproximação ao fundamentalismo religioso também tem antecedentes históricos?

Aconteceu com o nazismo, mas até o nacionalismo laico francês assumiu a necessidade de ser um movimento que se reconhecesse na cultura tradicional cristã. Os nazis entendiam ser herdeiros de uma cultura medieval europeia e cristã, com raízes no sincretismo entre cristianismo e paganismo. A maioria dos mais altos dirigentes do partido nazi, como Hitler e Himmler, eram católicos e a relação do nazismo com a igreja luterana foi do mais íntimo possível. Hitler é o primeiro chanceler da Alemanha unificada a assinar uma concordata com a Santa Sé.

Todos os regimes europeus e americanos que se aproximam do modelo fascista têm um discurso centrado na civilização "ocidental", que é absolutamente consensual entre as classes dominantes do ocidente. É o discurso do choque de civilizações, do Samuel P. Huntington, um neoconservador norte-americano. Essa teoria serve a fundamentação da ultradireita do século XXI como A decadência do Ocidente, de Oswald Spengler, serviu o nazismo. Já não é um ultranacionalismo, é um ultraocidentalismo. A extrema-direita holandesa, por exemplo, já não fala da defesa da nação, fala da defesa do Ocidente.

"As novas ultradireitas são racistas, mas não se dizem antissemitas. O argumento mais consensual contra o fascismo é a memória do Holocausto."

A apropriação da religião como componente central da cultura europeia e/ou ocidental é comum a todas as ultradireitas. O bolsonarismo, que não opera num país europeu mas num país do Sul global, está mais presente nos estados do sul do Brasil, onde a identidade europeia e cristã dos antepassados de quem lá vive cria uma oposição ao Nordeste do país, com uma população de maioria afrodescendente e vista como preguiçosa e parasitária.

A componente religiosa, no meio disto tudo, desempenha um papel semelhante àquele que tem na ultradireita teocrática das sociedades maioritariamente muçulmanas. Não é uma novidade. As ultradireitas dos últimos 40 anos aprenderam que há velhas bandeiras do fascismo dos anos 1920 e 1930 que são ferramentas de mobilização. A invasão do estrangeiro, o inimigo interno, o perigo comunista — mesmo que ele se chame Lula da Silva e não seja comunista.

Além disso,  há no Brasil uma mobilização em torno de uma religião, neste caso o evangelismo neopentescostal, que se baseia na chamada teologia da prosperidade, um discurso meritocrático que concebe o indivíduo enquanto acumulador de capital e presume a responsabilidade individual da pobreza, da doença, da tristeza.

À semelhança de  Margaret Thatcher, diz que não há sociedade e que a única responsabilidade social é a culpa. E a culpa supera-se pela entrega a Deus e à igreja. É a visão de sociedade que a ultradireita propõe, mesmo que esta dimensão religiosa não seja, ainda assim, comum a toda ela.

Voltando à Europa, como vê as recentes vitórias eleitorais das extremas-direitas no nosso continente? Estão reunidas as condições para uma fascização da Europa?

Essas vitórias eleitorais confirmam tendências que vêm de longe. A única novidade é, no caso italiano, a ultradireita regressar ao poder — onde já esteve várias vezes, mas acessoriamente, desde 1994 — como força dominante.

Creio que as condições nunca estarão completamente reunidas. Há factores, como o refluxo da esquerda política, a menor capacidade de mobilização e resistência dos trabalhadores e dos seus sindicatos, e o caráter inorgânico e efémero dos novos movimentos sociais. Tudo somado, a esquerda está hoje incapaz contra a ultradireita e o liberalismo autoritário.

Isto não impediu a existência de resistência aos processos avançados de destruição do Estado Social, de ataque aos direitos cívicos e de transferência despudorada de riqueza dos mais pobres para os mais ricos. Os anos intermédios da crise do capitalismo financeiro, de 2010 a 2012, em Portugal, na Grécia, em Espanha ou em França foram uma boa demonstração disso.

"À semelhança de  Margaret Thatcher, o neopentecostalismo diz que não há sociedade e que a única responsabilidade social é a culpa."

Como é que, hoje, os trabalhadores e os antifascistas podem agir em vez de reagir?

É preciso perceber o adversário. Ele tem um nome: neofascismo. É preciso decretar uma emergência antifascista no Norte global. Como aconteceu no passado, o assalto neofascista ao poder faz-se num contexto de regressão dos direitos sociais e das liberdades públicas num contexto de liberalismo autoritário. Abrem-se aqui vários campos de batalha. Quer em defesa dos direitos e das liberdades, quer em defesa do Estado de bem-estar social como um terreno de disputa dos recursos públicos das sociedades democráticas.

Além disso, temos de disputar e discutir toda a legitimação dos projetos autoritários de natureza securitária que descrevem as sociedades em que vivemos como permanentemente sujeitas à insegurança do terrorismo, das alterações climáticas, das pandemias ou da guerra.

Aproximamo-nos de um ciclo semelhante ao dos anos de 1935-37, quando, mesmo sem conseguir prevenir uma guerra mundial, a esquerda soube perceber em que estádio estava e, por isso, assumiu uma emergência antifascista. Não digo, porque não me compete, que deva haver uma unidade antifascista que reúna todas as esquerdas, incluindo a social-democracia, mas digo que o campo da esquerda que ainda se revê numa leitura marxista da realidade e que ainda se concentra na defesa dos direitos dos trabalhadores, das mulheres, dos migrantes, da luta antirracista, deve assumi-la. Esse é só o primeiro passo.