Zeca Afonso

Hugo Castro. "A música de protesto mais reivindicativa ou crítica está mais dispersa"

É possível comparar a música de intervenção dos anos pós ditadura em Portugal com a que se produz hoje em dia? É possível traçar paralelismos? Qual é a mensagem dos cantores atualmente? E quem são eles? Estas e outras questões são objeto de estudo do Observatório da Canção de Protesto, e foi sobre estes assuntos que o Setenta e Quatro falou com o investigador Hugo Castro. 

Entrevista
29 Julho 2021

A música de intervenção teve momentos-chave na história das lutas antifascista, anticoloniasta e anti-imperialista em Portugal. Desempenhou um papel fundamental no despertar de consciências que culminou no período revolucionário de 1974/75, com o explodir de acontecimentos que envolviam música e criatividade, celebração e mensagem de liberdade. Hoje, a música de intervenção encontra-se mais concentrada em nichos e temas específicos. No entanto, continua a "ter um impacto no rumo das coisas e no simbolismo que elas podem adquirir".

Quem o diz é Hugo Castro, investigador do Instituto de Etnomusicologia (INET-md) e do Observatório da Canção de Protesto, um organismo criado em 2014 que junta várias instituções e estabelece um papel de arquivo histórico. Tem sido também um veículo de encontros com o objectivo de aproximar gerações. Ainda este ano irá realizar-se um novo Encontro da Canção de Protesto, organizado pelo Observatório.

Fernando Lopes-Graça, ainda em 1946, definiu a canção de intervenção como aquela que pode “agir a fundo sobre a sensibilidade, estimulando à ação”. É também assim que a vê?

O Lopes-Graça, nessa frase que é publicada no preâmbulo do livro Marchas, Danças e Canções, que é uma referência, resume muito bem aquilo que vem a ser o entendimento que muitos dos músicos lhe dão. A música como forma de ação, em diversos momentos e contextos. Não necessariamente ligada apenas à ditadura, mas também para outros processos sociais e políticos. A Revolução é um deles. Muito recentemente, tivemos outro movimento que fez ressurgir a ideia de música enquanto forma de ação: o movimento "Que se lixe a Troika". Foi aí recuperada uma série de canções que tiveram um papel muito significante nas décadas de 60 e 70, como a Grândola. A música de intervenção ou de protesto, articulada com a política, pode continuar a ser vista dessa forma.

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Hugo Castro
Para Hugo Castro, a música de intervenção esteve até ao 25 de Abril ligada a um ideário de esquerda, antifascista, anticolonialista e anti-imperialista.

A canção de intervenção foi também designada de ‘canção de protesto’, ‘canção de resistência’ ou até ‘canção de esquerda’. Afinal, o que define e delimita este tipo de expressão musical?

Todas essas expressões nos levam a pensar em determinado tipo de reportório e de músicos. Todas são acertadas, portanto. Mas a sua génese e a forma como foram utilizadas pelos músicos, pela imprensa, pela rádio, pela indústria fonográfica, é que tem variações. Uma das primeiras referências à canção de protesto é mencionada no livro que citaste do Lopes-Graça. Já era usada em alguns países europeus, conotada com a resistência ao nazi-fascismo, por exemplo. 'Protest song' é uma expressão usada nos EUA praticamente desde o início do século XX. É uma expressão que acaba por ser mais transversal a vários períodos históricos e contextos geográficos. A canção de intervenção é outro termo que, em Portugal, surge no início da década de 70, na sequência da publicação de discos como Cantigas de Maio, de José Afonso, Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, de José Mário Branco, Os Sobreviventes, de Sérgio Godinho, e outros. É utilizado pela primeira vez numa entrevista do José Mário Branco à revista Flama, em janeiro de 1972. Mas institucionaliza-se como forma genérica de designação deste movimento de músicos da canção de protesto em Portugal e que se generaliza sobretudo durante o período revolucionário.

A canção de intervenção está sempre associada a movimentos políticos de esquerda? Existe uma esquerda e uma direita na música?

Se formos ver bem, todo este movimento de cantores de protesto, começando desde logo pelo Lopes-Graça, acaba por estar ligado a movimentos políticos. Estes músicos exerciam a sua atividade política através da música. A música enquanto ferramenta de expressão política. Movimentos políticos, não necessariamente partidarizados. José Afonso nunca esteve ligado a nenhum partido político, esteve, sim, muito próximo de organizações políticas que eram diferentes dos partidos, como a LUAR. No 25 de Abril, as coisas tornam-se mais definidas, no que diz respeito às ligações políticas destes músicos. Embora muitos não assumam uma ligação partidária. Há uma ligação direta entre os músicos que fazem parte deste movimento e os movimentos políticos e partidários de esquerda.

Existe uma esquerda e uma direita na música?

"Alguns músicos fazem mesmo canções muito marcadas acerca de determinado grupo grevista ou de determinado acontecimento. Há um papel de crónica aí"

Não faria essa distinção. Não é seguro fazê-la, sendo que há músicos, e por inerência a sua criação, alinhados politicamente. A canção de protesto esteve ligada, em Portugal, a um ideário de esquerda, antifascista, anticolonialista e anti-imperialista, até ao 25 de Abril. Todas essas ligações se situavam no espectro político da esquerda.

José Jorge Letria, no documentário A Cantiga era uma Arma, afirma que as “canções destinavam-se a mobilizar vontades e energias, a mobilizar consciências”. Em 60 e 70, a música teve de facto este poder mobilizador em Portugal?

Teve. Antes do 25 de Abril, a maior parte destes músicos não tinha uma projeção mediática assim tão intensa que os levasse a ser conhecidos por uma grande parte da população. Muita gente conhecia o José Afonso, o Adriano Correia de Oliveira ou até o José Jorge Letria, mas o acesso aos discos ou às canções era muito limitado. Não passavam na rádio. Estes músicos atuavam sobretudo em contextos com um caráter politizado: cantar para estudantes ou para grupos de trabalhadores, por exemplo. A população, de forma geral, não conhecia a obra destes músicos. O disco era um produto caro, para uma franja da população.

Os cantores de intervenção foram protagonistas da Revolução ou assumiram apenas o papel de cronistas do período revolucionário?

Muitos destes músicos, após o 25 de Abril, atualizam o reportório para cantar sobre os problemas quotidianos, com base na vivência desse período revolucionário. Alguns fazem mesmo canções muito marcadas acerca de determinado grupo grevista ou de determinado acontecimento. Há um papel de crónica aí. Mas são igualmente protagonistas, porque a própria música faz parte desse processo revolucionário. Os setores das artes e da cultura estão muito mobilizados ao longo do período revolucionário, assumindo-se como protagonistas.

Com a consagração e estabilização do regime democrático em Portugal, a canção de intervenção continuou a ter relevância na vida política e cultural do país?

Houve um esmorecimento. É notório com o fim do período revolucionário, no 25 de Novembro. Há, contudo, uma reconfiguração daquilo que os músicos vão trazer para o processo criativo e para aquilo que querem que seja a forma de contacto com o povo - o povo como interlocutor primordial deste povo. Em 76/77 ressurge uma série de músicos que passam a fazer canções muito articuladas com o que eram as expressões sonoras tradicionais, das várias regiões do país. A música tradicional passa a ser a base dessa interlocução, dessa comunicação com o povo. Vão às raízes populares buscar essa base sonora, articulando-a com letras politizadas para a devolver ao povo. De alguma forma, o Lopes-Graça já o vinha a fazer desde a década de 50.

Atentando no panorama musical nacional e internacional, facilmente se percebe que, atualmente, os agentes mais interventivos a nível político e social são os rappers. O que justifica este fenómeno?

Concordo em parte com a ideia de que o rap e o hip hop vieram ocupar um pouco esse espaço. Muito do que foi o movimento rap, que surge nos EUA, bebe da inspiração desses movimentos de jovens das décadas de 60. São circunstâncias e contextos diferentes e muitas das referências provavelmente acabam por se perder com os saltos geracionais.

Atualmente, pode considerar-se que existe um movimento de cantores de intervenção em Portugal?

Isso já é mais complicado. Há uma maior dispersão. Em termos de movimento, mesmo que informal, havia um grupo de artistas que coabitavam no mesmo espaço, com vontade de fazer uma coisa diferente, tendo em conta aquilo que existia na altura. A música que faziam era política também no sentido de acharem que era preciso uma renovação naquilo que se ouvia. Era preciso criar uma coisa nova. Há uma transformação no entendimento da capacidade da música, sobretudo a partir da gravação dos discos Cantigas de Maio, Mudam-se os tempos..., Sobreviventes. O ano de 71. Em termos de movimento, é complicado falar disso. Existiram algumas tentativas, mas não ao nível do que aconteceu durante a Primavera Árabe, por exemplo, em que houve um ressurgimento de um grupo de músicos que vieram para a rua cantar, que estavam organizados, por mais informal que fosse. Era um movimento. Não vejo isso a acontecer na música em Portugal.

"A música sempre teve um papel muito importante na forma como as pessoas se ligam aos problemas sociais. Toda a música pode ser politizável, até a música de elevador." 

Em entrevista para a sua dissertação de mestrado, Tino Flores refere que, nas décadas de 60 e 70, o objetivo era que “os discos fossem em aço para matar fascistas”. Continuamos a precisar deste tipo de combatividade na música?

Acho que sim. Esse tipo de combatividade, e a do Tino Flores em particular, cujo percurso demonstra algum distanciamento relativamente a todo este grupo de cantores. Mas os tempos são diferentes. Esta expressão metafórica, que lhe foi dita por um amigo, também tem um caráter interessante pela dimensão física do disco, que já não se verifica. A música sempre teve um papel muito importante na forma como as pessoas se ligam aos problemas sociais, ou não. Toda a música pode ser politizável, até a música de elevador. A música de protesto, com um caráter mais reivindicativo ou crítico, está mais dispersa, fruto também das plataformas que nos dão acesso a ela. Há muitas coisas. A música com um caráter mais interventivo deixou de ter um papel tão preponderante na vida das pessoas, parece-me. Embora me pareça essencial, por ser uma forma de expressão com um impacto no rumo das coisas e no simbolismo que elas podem adquirir. A minha investigação sustenta isso. A Grândola, de 64 a 2014, ganhou múltiplas significações, por exemplo.

Que trabalho tem vindo a desenvolver junto do Observatório da Canção de Protesto?

O Observatório da Canção de Protesto é uma rede de parcerias, criado em 2014. Uma das atividades mais regulares é a organização anual do Encontro da Canção de Protesto. Estes encontros têm a intenção de aproximar gerações. Convidamos, quando possível, os próprios protagonistas, das décadas de 60 e 70, mas também os novos protagonistas. Temos organizado exposições. No ano passado, fizemos uma exposição de discos da década de 60 e 70, assim como outra sobre músicos no exílio. E estamos a preparar a edição de 2021, em setembro.

Que frutos deu a colaboração que mantiveram com José Mário Branco até 2019?

Em termos pessoais, foi uma oportunidade de abertura dos horizontes. Eu e o meu colega Ricardo Andrade, que defendeu a sua tese de doutoramento sobre o boom do rock português no início dos anos 1980, tivemos essa oportunidade. Em finais de 2016, tivemos uma conferência internacional da canção de protesto, realizada no âmbito do Observatório. O José Mário Branco foi o convidado da última sessão. Estabelecemos um contacto ali. O intuito era falarmos com ele sobre os processos de produção fonográfica associados aos discos dele e aos discos em que ele colaborou, enquanto produtor, arranjador, orquestrador, autor de canções, de letras... Todo o espectro no campo da criação. Começámos a marcar encontros regulares com ele na esplanada da FCSH. Íamos muito para o estúdio e tínhamos sessões de escuta de canções que duravam horas. Fazíamos-lhe todo o tipo de questões. Acabámos por colaborar muito com ele no disco de inéditos que ele publicou em 2018. Temos muito material recolhido dessas sessões.