A Garota Não

Cátia Mazari de Oliveira, conhecida por A Garota Não, tem como referências Zeca Afonso e Zé Mário Branco | Foto de Nuno Lopes

A Garota Não. “A minha música é mais de inconformismo do que de intervenção”

As letras de Cátia Mazzari de Oliveira espelham o inconformismo com certas realidades que viveu e lhe são próximas. A cantora acredita não ser "precipitado dizer-se que estamos a viver uma outra vaga" de música de intervenção, como explica nesta entrevista ao Setenta e Quatro

Entrevista
29 Julho 2021

Perguntam-lhe se a sua música é de intervenção e tem dificuldade em responder. Sabe, no entanto, que a sua música é de quem não se conforma. Cátia Mazari de Oliveira, mais conhecida pelo seu nome artístico A Garota Não, diz-se inconformista com a desigualdade económica, com a exploração, com o machismo, com a discriminação. Com as mortes de refugiados no Mediterrâneo.

Cresceu num bairro muito pobre ao som das músicas de Zeca Afonso e da voz do pai, que as cantava. De um lado, conta, “via os meninos que tinham a oportunidade de ir à escola de música e, no outro, via aqueles que nem o lanche tinham para levar para a escola”.

Uma realidade que a moldou, e à sua intervenção pública. A música foi para si um escape para suavizar as histórias que viu e viveu. Aprendeu o poder da palavra e da música como força transformadora da realidade que nos rodeia e, em 2019, lançou o seu primeiro disco, Rua das Marimbas n. 7.

Nesta entrevista ao Setenta e Quatro, Cátia Mazari de Oliveira fala sobre a sua juventude, a sua visão da música de intervenção e como a música pode contribuir para chegarmos à “utopia da dignidade humana” pela qual se bate.

Em 2019, o projeto A Garota Não ganhou corpo num álbum. Quais são as referências musicais que têm morada nesta ‘Rua das Marimbas’?

Uma das maiores influências que tenho é o José Afonso. Ouvimos música muito no seguimento do que os nossos pais ouvem. O meu pai gostava de Zeca Afonso. Adormecia-me muitas vezes a cantar uma ou outra canção dele. Vamos ganhando quase o hábito de apreciar aquele estilo, aquela voz, aquela palavra. Além do meu pai, pela aproximação que, com os meus amigos, fui fazendo ao rap, comecei a valorizar a ideia de ter um texto forte, ganhando noção do poder da palavra.

As referências que tenho são o Zeca Afonso, o Zé Mário Branco (lançámos há pouco tempo uma canção em sua homenagem), e depois na nossa memória coletiva há nomes incontornáveis, como Sérgio Godinho e Fausto, talvez o meu favorito ainda vivo. Além da riqueza semântica, há todo o imaginário muito característico. É uma música de protesto muito poética e diferente. A parte musical dele é muito rica, faz-me sentir que é, de facto, um colosso.

"Enquanto mulher, é impossível não assumir que as desigualdades continuam muito patentes. Celebramos há muitos anos o Dia da Mulher e continuamos a ter desigualdades abismais, de condições salariais, de condições de trabalho, questões de livre-arbítrio"

O Chullage, na cena do rap, é o escritor que mais me inspira. Também gosto muito do Allen Halloween ou do Sam The Kid. Mas, mais do que nomes, prendem-me as canções, as temáticas, a ideia de usar a palavra e a canção para tentar transformar alguma coisa. Mesmo que só consigamos chegar a um pequeno grupo de pessoas, se as conseguirmos levar a pensar sobre alguns assuntos que estamos a viver e que, na verdade, implicam toda a gente.

Gosto de pensar que, se a música puder transformar alguma coisa para o positivo, é isso que conta. Independentemente dos nomes que a trazem à luz. As Señoritas, por exemplo, também têm uma visão muito crítica. O Chullage diz uma coisa curiosa: mesmo quando só fazes música para entreter, ou para estar com os ouvidos distraídos, não deixa de ser uma forma de intervenção. Estás é a intervir a favor de outras coisas: a favor do desligamento do sujeito com causas importantes, a favor do capital, a favor da música comercial com pouco conteúdo. Mas estás a fazer a tua intervenção à mesma.

As portas abertas por autores como José Afonso, Fausto ou Sérgio Godinho ainda são importantes para quem continua a perspetivar a música como um instrumento de atuação política?

Serão sempre importantes. Enquanto forem lembrados, sê-lo-ão sempre. Por isso é importante que, de geração em geração, não os deixemos esquecer. No fundo, o objetivo era o mesmo – transformar alguma coisa para melhor. Mas as lutas que travaram eram um pouco diferentes. O Zeca Afonso, por exemplo, falava muito da questão do colonialismo ou da reforma agrária. No entanto, ainda que os temas sejam diferentes, a linha ideológica passa pelo mesmo.

Tenho dificuldade em categorizar estilos musicais. Têm-me perguntado se o que faço é música de intervenção. Não sei se é música de intervenção, se é música de quem não se conforma. Se calhar é mais música de inconformismo do que de intervenção. E não me conformo, na medida em que me magoam certas realidades.

Uma música que vou lançar em breve fala das mortes das pessoas que tentavam atravessar o Mediterrâneo. Não é um assunto que se tenha esgotado, continua a acontecer. Mas hoje não falamos disso. Sabermos que há centenas ou milhares de pessoas a morrer dessa forma, que estão apenas à procura de ter alguma dignidade na sua vida, de oportunidade de trabalhar, de dar comida aos seus filhos, de liberdade. Escrever música é quase uma forma de sossegar o coração, de não ser passiva relativamente a tudo o que está a acontecer. Passei tanto tempo a pensar nisso durante uma noite que, quando acordei, a primeira coisa que fiz foi escrever essa canção. Foi uma quase libertação de uma dor e de uma mágoa, enquanto membro de uma coisa chamada Humanidade.

Também há temas comuns com os autores dessa época?

Sim. Falo de questões relacionadas com a mulher, e com o espaço que a mulher tem e não tem na esfera pública e familiar, e o Sérgio Godinho também o fazia. Ter o direito de escolher ter, ou não, esferas múltiplas na vida, além da familiar. O Sérgio Godinho já falava dessa questão do patriarcado.

Enquanto mulher, é impossível não assumir que as desigualdades continuam muito patentes. Celebramos há muitos anos o Dia da Mulher e continuamos a ter desigualdades abismais, de condições salariais, de condições de trabalho, questões de livre-arbítrio. Há assuntos que continuam a ser os mesmos, como as desigualdades sociais. Não se fala muito da exploração nos latifúndios do Alentejo ou da reforma agrária, mas continuamos a ter outros tipos de patrões, escravos modernos com muitas horas de trabalho e uma compensação financeira paupérrima. Mulheres que continuam a ser assediadas pelos patrões e pelos próprios colegas de trabalho.

Na canção 80.nada falo muito da questão da desigualdade entre o trabalhador contratado e o que é só recibo verde, que é como um corpo solto numa instituição, com as mesmas ou mais responsabilidades que um empregado que esteja no quadro, mas com direitos muito precários. Muitas vezes nem direitos são. A questão laboral, ainda que com outros contornos, continua a ser muito importante. Falo disto porque sei, trabalhei em escolas públicas e nós, recibos verdes, éramos o filho pobre nas relações laborais.

Na sua Canção a Zé Mário Branco, fala daqueles que são “resistência à corrente” e têm a força de “derramar na canção/ o que dói no país”. A música cura? Ou aponta apenas para as feridas que trazemos?

Se calhar serve para os dois. O facto de escrever sobre o que acontece no Mediterrâneo não me cura, mas pelo menos aquieta-me o coração sentir que estou a fazer alguma coisa para que aquilo deixe de ser assim. Mas também serve para espicaçar a dor, para que ela seja tratada convenientemente.

Cresci num bairro muito pobre, cheio de falências. Cresci a ler aquela realidade como não sendo a realidade válida, porque me sentia quase uma privilegiada. A minha vida tinha outra versão, a da miúda que andava na natação e tinha aulas de piano. Era quase uma afortunada naquele sistema tão pobre do bairro. De um lado via os meninos que tinham a oportunidade de ir à escola de música e depois via aqueles que nem o lanche tinham para levar para a escola.

Acabei por estar no meio dessas realidades, questionando sempre porque é que não estão todos desse lado da realidade mais fácil. Isso ainda bole muito com o meu íntimo, a minha identidade.

"Interessava-me que os media fossem mais comprometidos com a investigação, com a verdade efetiva das coisas, doa a quem doer"

A vivência que teve no Bairro 2 de Abril influenciou o seu posicionamento político?

É inevitável. Tudo isso foi contribuindo para que fosse pensando no mundo. Via coisas erradas, que me faziam mal, e fui precisando de criar outras realidades para suavizar essas coisas que a história do bairro me dava. A música serviu muito esse propósito. Os bairros sociais eram minados de seringas. Era dramático. Se uma criança cresce nesse ambiente é impossível não ser influenciada por ele.

Além das seringas que via na rua, também via nas gavetas da minha irmã, que era toxicodependente. Essa história mais conturbada, essa vivência, dá-me um determinado estado de consciência. A música do Justin Timberlake anima-me em jantares de amigos, mas não é ela que me faz sentido quando penso em coisas que me fazem sentir enraizada, sólida. Que me ajudem a olhar para o mundo e tentar torná-lo numa coisa melhor, em que as pessoas tenham o direito a ser o que quiserem. Quem quiser usar as unhas pintadas, usa. Ou rímel, ou um casaco cor de rosa, como o Sambado levou ao Festival da Canção. Ninguém tem de comentar.

Na canção ‘Mundo do avesso’, dirige-nos um apelo: “tu e eu temos de ser mais/ que peixe preso numa rede”. Que redes são essas que ainda nos retêm e asfixiam?

Uma das redes maiores que temos são os nossos meios de comunicação social, onde se devia expor a verdade, denunciar. A mim, interessava-me que os media fossem mais comprometidos com a investigação, com a verdade efetiva das coisas, doa a quem doer. O problema é que são os grandes grupos económicos que detêm os jornais, as revistas, os canais de televisão. A maior rede acaba por ser essa.

Depois temos toda a lógica social em que estamos envolvidos. O sistema educativo, no geral, está estéril e cria miúdos com muito pouca capacidade de ir além do seu raio de visão. Porque é que se vota cada vez menos? Porque é que a camada jovem da população continua a ignorar o facto de a democracia precisar da sua participação? Não me lembro de algum professor, mesmo os muito bons, me terem espicaçado para o voto, para perceber os partidos políticos. O nosso sistema educativo devia ter um papel mais ativo, interventivo, construtivo em toda esta lógica da participação democrática.

Para as mulheres que continuam a ser sistematicamente injustiçadas, assediadas, objetificadas e violentadas, é importante ver a sua condição representada na arte? Isso faz diferença?

Faz toda. São sobretudo as mulheres que trazem estes assuntos a lume. Temos uma necessidade maior de o fazer. Os partidos são máquinas com uma memória e uma linhagem e é mais difícil romper aí para as mulheres. Entrar nesses sítios que, por tradição, são do homem. A arte é, por si, mais subversiva. Há muitos caminhos a fazer nesse campo. A mulher tem sabido criar o seu espaço, ainda bem.

Mas o acesso ao palco da contestação política na arte continua também a ser mais dificultado para as mulheres?

Não estamos em pé de igualdade. Mas já temos mais acesso. Como na arte há muitos mais caminhos possíveis, as mulheres têm conseguido furar. Em termos artísticos, já há uma abertura maior para perceber o que é que a mulher tem a entregar de si. Quando era adolescente, não ouvia falar de uma única rapper feminina em Portugal. Agora vemos artistas femininas brilhantes dentro da cena do rap, como a Capicua. Tem havido uma abertura, pelo menos na música.

Depois das décadas de 1960/1970, houve um esmorecimento do impacto da música de intervenção em Portugal. No entanto, o rap assumiu-se como herdeiro direto desse legado. Este universo musical foi importante na sua formação enquanto autora?

Foi. Nos anos 1960 e 1970, a música de intervenção serviu para trazer aos ouvidos mais distraídos temas muito importantes, mas também bebia muito do sonho de transformar o país. Eles sentiram que a coisa ia acontecer, que o fascismo ia cair. Porque o resto do mundo caminhava para aí. Os Beatles não exerceram a sua influência só até à fronteira de Espanha. Acreditava-se muito nesse mundo novo. Os nossos cantautores de intervenção acreditaram muito nele. Mas esse sonho não aconteceu, foi-se quebrando.

"Preciso que a minha música respire aquilo que está à minha volta. Sinto que tenho essa responsabilidade, mas não condeno quem não o sinta"

Esse mundo novo, que precisava de uma nova consciência para solucionar e tratar alguns problemas, foi-se esfumando. O B Fachada diz que a grande desilusão do Zeca estava relacionada com o facto de a revolução não ter sido cultural, não se ter mexido com a identidade cultural, com os valores do país. Há aí um esmorecimento. Mas o rap contrariou isso. Grande parte dos rappers não vem de sítios bonitos, e isso desperta consciência. Um grito que precisa de ser solto. Por isso sim, o rap acaba por ocupar um espaço que a música de intervenção tinha. Eles gostam da ideia de serem músicos de protesto, de inconformismo em relação a uma realidade que é impossível de aceitar. Mas felizmente ao rap somaram-se outras correntes.

Podemos falar de um movimento de música de intervenção em Portugal atualmente?

Há gente muito adormecida, mas também há muita gente consciente, com vontade que a música seja muito mais do que a letra que fala de mais um desamor com as mesmas palavras que foram utilizadas em 30 mil outras canções. Há miúdos em Setúbal que estão a fazer coisas maravilhosas, de quem pensa. Não é precipitado dizer que estamos a viver outra vaga. Há pessoas com uma consciência muito latente, com muita vontade de que a música sirva para algo mais do que para passar na esplanada.

Perante o reaparecimento do discurso da extrema-direita, os músicos têm o dever de aguçar a sua combatividade?

Não sei se podemos chamar-lhe dever. Há um perigo nesta questão de tentar fazer música de intervenção, que é o moralismo. É fácil de repente tornarmo-nos no diácono Remédios. Isso também é errado. A Nina Simone dizia: "não sei em relação aos outros mas, quanto a mim, preciso que a música seja o reflexo da minha realidade". Era muito engajada com a questão dos direitos civis nos EUA. É um bocado isso. Não sei o que os outros querem fazer com a música, mas o que eu quero fazer é isto. Preciso que a minha música respire aquilo que está à minha volta. Sinto que tenho essa responsabilidade, mas não condeno quem não o sinta. A área da arte e da criação quer-se livre.

Que utopia é que a sua arte propõe?

Um pouco aquilo em que o Zeca acreditava, o Homem Novo. Que olha nos olhos, seguindo a lei da dignidade. Perceber a dignidade na humanidade, criar uma série de estruturas onde possamos assentar essa ideia. A paz, o pão, a habitação, saúde, educação, como na canção do Sérgio Godinho. São ideias que estão a ser batidas desde a década de 1970 na música de intervenção portuguesa, mas continuamos a ter as mesmas temáticas, com nuances nos problemas. A utopia é a da dignidade humana. Que tenhamos comida, respeito no trabalho, que o trabalho seja pago de forma igual entre homens e mulheres, que a educação sofra uma revolução nos princípios de cidadania que deve imprimir.