Tanque

Daniel Pinéu: "Deixámos literalmente de falar de paz, fomos normalizando que a guerra é normal e desejável”

O investigador de Relações Internacionais mostra-se preocupado com o crescente militarismo na Europa e defende que a guerra não tem uma solução militar à vista. É preciso encontrar uma solução política para o fim do conflito, uma que evite uma escalada constante.

Entrevista
16 Março 2023

Lê-se e ouve-se sobre uma vitória da Ucrânia contra a invasão russa, mas pouco se reflete sobre o que significa, e principalmente como se chega a uma solução política que ponha fim a uma guerra que já causou milhares de mortos e milhões de refugiados. Não há uma estratégia para negociações e uma solução militar parece cada vez mais improvável. Entretanto, os números de civis mortos sobem todos os dias, ao mesmo tempo que se registam crimes de guerra e violações dos direitos humanos.

A cidade de Bakhmut, no Donbass, é o exemplo de uma guerra que combina trincheiras com a mais moderna tecnologia de drones e artilharia: os invasores russos perdem centenas de homens, senão milhares, para conquistarem poucos metros de terreno ucraniano. E o presidente russo, Vladimir Putin, prepara-se para mobilizar mais 400 mil cidadãos russos para a guerra, mais um sinal de como os combates estão a ser catastróficos para as fileiras russas.

Ao mesmo tempo, a Rússia está longe de colapsar. Há mais de um ano que são muitas as notícias, nacionais e internacionais, a garantir que a Rússia iria colapsar em consequência das sanções. De que o exército russo estava a desmoronar e que já não tinha mais mísseis, que Putin estava doente com cancro ou que se estava a preparar um golpe palaciano para o depor. Nada disso aconteceu, e o apoio à resistência ucraniana pode perder fôlego com o constante aumento do custo de vida das famílias trabalhadoras.

Entretanto, a Europa rearma-se, o militarismo político entranha-se socialmente e as retóricas radicalizam-se, transformando o conflito regional num combate entre civilizações e sistemas político-ideológicos: a NATO contra a Rússia. Além de isolar o espaço euro-atlântico do resto do mundo, onde grassa a indiferença sobre o conflito, é um discurso “perigoso a vários níveis: prolonga muito mais o conflito, torna-o mais intratável, torna a solução política menos provável, torna o tipo de concessões a serem feitas mais difíceis”, analisa em entrevista ao Setenta e Quatro Daniel Pinéu, professor de Relações Internacionais no Colégio Universitário de Amsterdão, na Holanda, e comentador na SIC.

Image
Daniel Pinéu
Daniel Pinéu argumenta que nem Ucrânia nem Rússia conseguirão alcançar uma vitória militar no terreno.

“Preocupa-me a crescente militarização do discurso em nome dos valores. Não porque não goste dos valores ou porque ache que não devam ser defendidos, mas porque vai justificando coisas cada vez mais problemáticas, sem termos um método claro de limitar até onde estamos dispostos a ir”, reflete Pinéu. 

Daí que o investigador não estranhe que se tenha deixado de falar de paz, que a guerra se tenha normalizado e até tornado desejável no discurso público. E quem o tenta contestar seja alvo de duras críticas, até de acusações: “A ideia de paz foi até muito associada a uma certa cobardia moral ou, pior do que isso, a uma traição pró-russa, isto do ponto de vista da autocensura e do unanimismo acrítico que isso acarreta”.

Há mais de um ano que se fala de uma vitória ucraniana na guerra, mas nunca sobre como e qual será essa vitória. Ao mesmo tempo, fala-se de se infligir uma "derrota estratégica" à Rússia. Em que ficamos?

Um dos problemas desta guerra é termos passado de uma posição em que a vitória era a Ucrânia não ser engolida pela Rússia, não ter uma mudança de regime, como era o plano inicial russo, para irmos atrás, como aliados, das prioridades estratégicas da Ucrânia. Dizemos que nós, países da NATO, não temos direção estratégica, que estamos meramente a suprimir as faltas da Ucrânia. A Ucrânia mudou de uma posição de "vamos defender-nos e impedir a anexação completa" para um otimismo estratégico que até agora tem encontrado muitos limites. Do ponto de vista militar, a Ucrânia está a fazer um ótimo trabalho, isto se pensarmos num país que tinha uma estrutura militar essencialmente soviética, de equipamento e treino, que não estava na NATO e que não estava a preparar-se para entrar na NATO. 

Mas tinha várias parcerias com a NATO. 

Sim, tinha parcerias com a NATO de treino e equipamento, mas só num espaço de três a seis meses é que a mudança de equipamento e táticas na linha da frente, de pequenas unidades, de armas combinadas, é realmente extraordinária É difícil, hoje, pensarmos num exército com mais experiência de combate em armas combinadas do que a Ucrânia, tem mais que o exército francês ou alemão. É impressionante. Nesse ponto de vista, passamos de uma posição defensiva para "se calhar temos a capacidade para mais", sem nunca o definir bem até ao dito plano de paz ucraniano, que aconteceu muito recentemente. Este plano é, na verdade, uma tentativa de definir estrategicamente o que é uma vitória. 

Mas antes desse plano ucraniano houve um plano de paz italiano. 

Que foi rejeitado precisamente por isto. 

Continuamos sempre a dizer que precisamos de dar mais armas à Ucrânia, de evitar que seja derrotada e o discurso é agora de vitória. Mas que vitória? Reconquista da Crimeia?

Esse é o problema. A partir do momento em que o objetivo estratégico definido não é apenas a defesa, não é evitar a queda do governo, não é retomar uma ou outra cidade, mas sim a retirada das tropas russas de todo o território ucraniano conforme definido internacionalmente, significa reverter não apenas o Donbass, que é complicado independentemente da posição da Rússia, mas também a Crimeia. A Rússia anexou formalmente, legalmente do ponto de vista russo, a Crimeia. E isto introduz algo que não é displicente do ponto de vista russo: será agora ilegal para o Kremlin ceder esse território. 

O plano italiano tinha a virtude de atirar para as calendas gregas a questão da Crimeia, porque dava razão aos dois lados: a Crimeia é objetivamente, legalmente e sem sombra de dúvida território soberano da Ucrânia que está sob jurisdição temporária russa. Esta solução reconhecia ambos os países. Retirava a ideia da NATO poder ter uma base na Crimeia, mantinha a ideia de Sebastopol como aluguer de longo termo para a frota russa do Mar Negro e atirava a questão para um futuro referendo ou negociações, e isso era uma boa forma de desligar a questão da Crimeia. 

"A Ucrânia não teve uma política própria, porque durante muito tempo oscilou entre ser inteiramente pró-russa ou inteiramente pró-europeia, escapando ao campo russo mas sem uma identidade nacional."

E avançava com a federalização do Donbass. 

Exatamente. Essa federalização é para a Ucrânia muito complicada, porque vai para lá dos Acordos de Minsk. Falharam por variadas razões, algumas por desinteresse do Ocidente, outras por a Rússia ter uma posição muito agressiva em relação aos direitos das minorias falantes de russo. Mas também por causa da direita ultranacionalista ucraniana, que, mesmo não conseguindo formar governo, tinha poder para fazer cair o governo e sobretudo para ter protestos bastante contundentes, às vezes violentos, com tentativa de ameaça do parlamento e assassinato de pessoas. Evitou que Zelensky, que tinha maioria, não conseguisse implementar os Acordos de Minsk.

A Rússia não queria os Acordos de Minsk e não os implementou, porque não aceitava nenhuma exceção ou limite. Havia uma pequena cláusula, importantíssima, que era uma zona com estatuto especial em que a fronteira deixava essencialmente de existir do ponto de vista económico. Isso deixava a fronteira aberta e, tendo em conta a política russa de passaportes a falantes de russo, colocava problemas graves. 

Ao mesmo tempo, a Europa, em particular França e Alemanha, mantiveram boas relações com a Rússia esperando que apenas pelas boas relações pudessem ter efeito, mas na verdade não fizeram nenhum tipo de acordo de implementação ou de verificação. 

Angela Merkel disse recentemente que os Acordos de Minsk foram para ganhar tempo para a Ucrânia se conseguir reorganizar depois de 2014. 

Entendo como isso tem sido visto. Essa declaração é verdadeira, mas às vezes há declarações na história que não são exatamente assim, como a declaração do governo iraniano de dizer que Israel devia ser apagado do mapa. Na verdade, o que dizia é que a entidade sionismo, ou o sionismo, devia ser apagado das páginas da história, o que, sendo agressivo, é bastante diferente do ponto de vista da política externa.

Estamos perante algo muito semelhante: Merkel entende perfeitamente que há uma situação política muito ténue, do ponto de vista de uma jovem democracia ucraniana, o processo democrático é extraordinariamente frágil, as maiorias parlamentares são elas próprias muito frágeis. A Ucrânia não teve uma política própria, porque durante muito tempo oscilou entre ser inteiramente pró-russa ou inteiramente pró-europeia, escapando ao campo russo mas sem uma identidade nacional. Quando Merkel disse ganhar tempo, não creio que seja uma ideia para armar a Ucrânia e, conhecendo a política externa de Merkel, também não creio que a ideia fosse para a entrada na NATO, coisa que todos os países da NATO não queriam que acontecesse. Do meu ponto de vista, a ideia era: precisamos de ganhar tempo para o processo constitucional desta jovem democracia ter alguma estabilidade, do ponto de vista da política externa, e orientação real.

As tropas russas continuam a ganhar terreno e perdem imensos homens por cada metro conquistado. Bakhmut é o melhor exemplo. O armamento mais recente, como os tanques Leopard 1 e 2, ainda não chegou. A Ucrânia precisa de uma ofensiva na primavera ou no verão se quiser forçar a Rússia para a mesa das negociações. Parece plausível? 

Não me parece que a Ucrânia o queira fazer por uma razão simples: independentemente do Donbass e da Crimeia, há ainda muito território historicamente ucraniano e não disputado inicialmente nesta operação militar que continua sob ocupação. 

Por outro lado, a Ucrânia não pode confiar em nada que a Rússia disser e a Rússia não pode confiar em nada que a Ucrânia diga. Portanto, grande parte do bloqueio das negociações não se deve apenas à procura de uma solução militar por ambos os lados, porque continuam, estupidamente. É mais importante que isso: as posições são de soma zero e, sobretudo, não há confiança para isso. A única coisa que mudaria isso era haver um mediador neutro em relação aos dois, que conseguisse constranger os dois.

O Brasil podia ser uma alternativa?

O Brasil consegue ser uma alternativa na negociação, como aliás a Turquia tentou ser, sendo que agora se realinhou muito mais em relação à Rússia. Para que aconteça essa mediação é necessário ser-se neutro e dizer "vou mediar o suficiente para pelo menos sentarmo-nos e tentarmos que haja garantias, para constranger ambos os países”. No caso dessas garantias serem quebradas, o Brasil não tem esse poder. Portanto, ou o Brasil consegue, através da relação com os BRICS [Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul], uma interseção ou o único país que neste momento tem esse poder é a China. Deu um passo na direção certa…

É um roteiro...

Os chineses disseram: independentemente de tudo o que aconteça, a nossa amizade e a nossa relação com a Rússia não é beliscável, é para sempre e do mais alto nível. E depois apresentaram um documento em que disseram: "Rússia vais ter de devolver território". É uma impossibilidade para Putin, literalmente. Vimos a China ser demasiado amiga e próxima da Rússia, mas a China faz isso para poder falar com e impor certos constrangimentos à Rússia.

Por exemplo, a China já disse várias vezes que a solução nuclear é pura e simplesmente inaceitável. Vimos que o nível retórico russo baixou. A sinalização foi clara. A China tem essa influência, mas, para a exercer, tem de aparecer como aliado indispensável de um amigo que está a dizer a coisa certa mais do que alguém que está a fazer um bullying como o Ocidente. Isso põe-na numa posição complicada, porque é de neutralidade pró-russa. Mas o facto de ter conseguido alguma negociação com a Ucrânia e de ter incluído a autodeterminação territorial ou o respeito pela integridade territorial, como pré-condição do plano ucraniano, é de relevo.

"Grande parte do bloqueio das negociações não se deve apenas à procura de uma solução militar por ambos os lados, porque continuam, estupidamente. É mais importante que isso: as posições são de soma zero e, sobretudo, não há confiança para isso. A única coisa que mudaria isso era haver um mediador neutro em relação aos dois."

Há análises que dizem que o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, quer acelerar o desfecho da guerra por causa das eleições presidenciais norte-americanas, para poder apresentar uma vitória. 

Vamos ter três eleições fundamentais que podem mudar o curso desta guerra. Em primeiro lugar, eleições nos EUA, e não sabemos se Biden ganha ou se poderemos ter um Donald Trump ou um outro candidato bastante pró-russo ou bastante anti-guerra, muito mais isolacionista. Isso poria em causa constrangimentos extraordinários. Neste momento, a Ucrânia está a fazer um trabalho muito bom com munições dos outros, porque a sua base industrial militar é das partes mais fustigadas da sua infraestrutura crítica. Não tem quase produção própria, à exceção de alguma pesquisa e desenvolvimento de drones. Está inteiramente dependente e os EUA são, de longe, o maior fornecedor. Se isso mudar, altera fundamentalmente a capacidade da Ucrânia em resistir, não apenas de montar uma ofensiva, mas de resistir mesmo. 

Depois temos eleições presidenciais na Ucrânia. Podemos não gostar de Zelensky ou das suas políticas, mas houve eleições livres e justas com observadores internacionais em que ele ganhou com uma maioria clara [em 2019]. Portanto, tem legitimidade  para fazer o que está a fazer. Se houver eleições num contexto de guerra em que, imagine-se, 17 milhões de ucranianos vão estar em más condições para votar, por serem refugiados internos, terem fugido do país ou não terem documentos, vamos ter um problema real: a legitimidade do próximo governo pode ser posta em causa. E a Rússia vai obviamente aproveitar-se disso. 

Depois temos a eleição presidencial russa, que será complicada. Putin claramente vai ter de ser reconduzido no poder, mas se chegar a uma eleição sem qualquer tipo de vitória, ou cedendo até territorialmente, forçado ou não, vai ser ultrapassado pela direita. Grande parte dos seus críticos mais fortes não são vozes progressistas da oposição, são vozes do sistema: de nacionalistas e ainda mais militaristas que ele.

Mas vê que a autoridade de Putin esteja a ser contestada na Rússia ao ponto de ficar em risco?

Não ao ponto de ficar em risco, não vejo uma forte possibilidade de um golpe palaciano. Ele está muito dependente de um grupo muito pequeno, só se começarmos a ter brechas dentro dele. Além disso, começamos a ter algumas pessoas próximas do Kremlin e do FSB [secreta russa] a criticarem-no, como foi o caso do seu círculo mais próximo, alguns oligarcas, alguns políticos de "oposição". 

Os oligarcas que teceram críticas discretas acabaram a "cair" de penhascos. 

Isso é importante para mostrar o seu controlo, mas também mostra a sua fragilidade. Ao contrário de uma forte legitimação, quando se tem de usar a força é o grau zero de poder. O grau real de poder é não ter de usar a força, nem sequer pedir nada e ser feito como se fosse ideia da outra pessoa. O facto de ter de fazer cair uma pessoa de uma janela, de um helicóptero ou de um penhasco e depois ter algum pushback de algumas elites, ainda que de forma não muito contundente, é significativo. Num cenário mediático extremamente controlado, há algumas vozes em programas putinistas a dizerem que têm de admitir que [a guerra] não está a correr bem. 

"A Rússia não está prestes a perder a guerra a curto prazo por falta de homens ou de munições. Mas está a ter cada vez menos eficácia imediata nas suas operações."

Um ano depois da guerra ter começado, torna-se um pouco difícil acreditar nas análises de fragilidade de Putin. Já se disse muita coisa: a economia russa vai colapsar com as sanções, o exército russo vai desmoronar e já não tem mais mísseis, Putin está doente com cancro, há um golpe palaciano a ser preparado.

Há operações de desinformação. Não creio que a Rússia esteja prestes a colapsar, ponto. Aliás, acho que é uma das ilusões que não devemos ter: ou acontece e é terrível ou não acontece e acreditar nela é terrível. Para nós, crer nisso é sempre mau, porque se houver um colapso institucional do governo da Rússia...

Onde vão parar as seis mil ogivas nucleares…

O que nós vimos na Europa com o colapso da Jugoslávia foi dramático a todos os níveis. A Jugoslávia não era um poder nuclear, não tinha o sétimo ou oitavo maior exército do mundo, não era o maior país em território do mundo, nem tinha a economia que a Rússia tem. Desse ponto de vista, preocupa-me quase tanto - ou até mais - um colapso do governo russo que uma vitória russa na Ucrânia, que seria por si só trágica. 

Porque continuamos a falar disto? Porque efetivamente há uma fragilidade muito grande da Rússia, mas não é imediata. Sobre as munições, a Rússia neste momento está a usar tantas ou mais munições que no início da guerra e está neste momento a retirá-las de armazéns dos anos 1960 e 1970. Elas funcionam, sim, aliás, funcionam bem demais: são muito menos precisas e matam mais civis. Mas são muito menos eficazes do ponto de vista estratégico. A Rússia tem muitos mais homens? Tem, e conseguirá - coisa que devemos levar em conta nos nossos cálculos - mobilizar muitos mais. Mobilizou 300 mil, mas poderia, sem grandes problemas, mais meio milhão acima disso. O que é que isso vai causar aos jovens, à economia, ao estatuto das suas minorias, ao apoio a Putin? Isso são problemas a longo prazo, mas a curto prazo a Rússia não está prestes a perder a guerra por falta de homens ou de munições. Mas está a ter cada vez menos eficácia imediata nas suas operações. E as sanções não estão a conseguir, objetivamente, forçar a Rússia a retirar ou a sentar-se à mesa das negociações. 

Por outro lado, a Ucrânia não pode confiar em nada que a Rússia diga e a Rússia não pode confiar em nada que a Ucrânia diga. Portanto, grande parte do bloqueio das negociações não é apenas que ambos os lados continuam a achar haver solução militar, porque continuam, estupidamente. É mais importante que isso: as posições são de soma zero e, sobretudo, não há confiança para isso. A única coisa que mudaria isso era haver um mediador neutro.

As sanções resultam? É que nenhum regime que tenha sido alvo de sanções contra toda a sua população geral cedeu. Cuba, Iraque, Líbia, Irão, Venezuela. Ou seja, bem pelo contrário, os regimes tornam-se mais repressivos contra a dissensão interna e criam uma propaganda de inimigo externo, criando uma certa unidade interna com nacionalismo. 

Isso aconteceu em particular com as sanções impostas à Rússia a partir de 2014, com a anexação da Crimeia. Aliás, nós vimos isso em relação ao aumento de apoio a Putin, o que lhe permitiu ser depois bastante intervencionista na Síria. As sanções não resultam, há é sanções que enquanto instrumento resultam. É como dizer que a guerra resulta ou não. Temos de ser cuidadosos com o que queremos dizer com sanções. Que tipo de sanções? Dirigidas a quem? Que resultados queremos? Colapsar a capacidade russa de produzir armamento eficaz e a avançado de forma sustentada durante anos para deixar de ser uma real ameaça à Ucrânia e à NATO? Claro que sim. Essas sanções vão funcionar. 

Mas é a longo prazo. 

Exatamente, e isso é um dos problemas: acharmos que iam ter efeitos imediatos. As sanções à energia não são sobre o colapso da Rússia. Ninguém iria pensar que, se deixássemos de comprar gás à Rússia, ela ia deixar de vender ou produzir. A questão não é essa, mas outra: forçar a transição energética europeia e retirar a Rússia como grande fornecedor, quebrar uma relação política através da reorientação energética. 

Falou-se da independência energética europeia, mas substituímos uma dependência por outra: da Rússia para os Estados Unidos. 

Estados Unidos, Qatar, Arábia Saudita, Venezuela.

A Venezuela já não é comunista e ditatorial, a Arábia Saudita deixou de ser sanguinária e a cometer crimes contra os direitos humanos no Iémen. É interessante quando Biden vai à Polónia e diz que este é um combate em prol da democracia e dos direitos humanos, elevando o conflito com a Rússia a um patamar existencial, entre civilizações e sistemas político-ideológicos. 

Preocupam-me duas coisas. A primeira é termos começado com um conflito doméstico sobre políticas de minorias numa jovem democracia, depois evoluiu para um conflito regional a partir do momento em que a Rússia tomou a Crimeia e agora temos uma guerra regional altamente internacionalizada. Há um perigo, que não é menor, de uma continuada escalada desta guerra para um nível internacional ainda maior - não me refiro a uma guerra nuclear, ainda que isso seja um risco cada vez maior. Passou a ser uma guerra da Rússia contra o Ocidente. Grande parte do mundo não quer saber do enfrentamento do Ocidente com a Rússia. E, portanto, isso isola o que seria uma coisa de mais fácil construção de coligação. Isola o espaço euro-atlântico, as atitudes da maioria da população mundial para com este conflito são de indiferença sem querer arcar com os seus efeitos económicos. 

Houve uma esmagadora maioria na Assembleia Geral das Nações Unidas a condenar a invasão da Rússia, mas depois, quando é para aplicar sanções, não há seguimento.

Precisamente. Grande parte do mundo condena a opção da Rússia, mas não acha que isso se traduza necessariamente no apoio à política ocidental. Se fosse com base no apoio à autodeterminação dos povos ou à integridade territorial da Ucrânia, seria muito mais fácil construir uma coligação que não fosse de mera condenação retórica, uma que pusesse muito mais pressão na Rússia do que aquilo que se tem conseguido.  Vários desses países têm problemas semelhantes.

Nós não temos capacidade para isolar a Rússia e a retórica cada vez mais existencial do Ocidente contra o resto, sistemas liberais contra sistemas iliberais, sobre a existência da Ucrânia e da Rússia, tudo isso apenas permite uma coisa: que Putin tenha o discurso existencial. E ele é perigoso a vários níveis: prolonga muito mais o conflito, torna-o mais intratável, torna a solução política menos provável, torna o tipo de concessões a serem feitas mais difíceis. 

E acicata as populações. 

Sim, como temos visto contra cidadãos russos, aos média russos, à cultura russa. Temos tido exageros, tal como acontece na Rússia há bastante tempo em relação à cultura ocidental. Um desportista ou ONG ocidentais são automaticamente considerados espiões ou atores políticos a serem desmantelados. O problema é continuarmos nesta situação em vez de dizermos: não, isto é um problema gravíssimo, mas circunscrito, regional, sobre questões de direito internacional. É complicado, mas não é insolúvel, não é uma confrontação sistémica, não é uma confrontação com o Ocidente, não é sobre o colapso da Rússia ou mudança de regime. É meramente resolver uma questão territorial em que a Rússia se excedeu e a Ucrânia tem de ter algum tipo de concessão, mas não demasiado alta. 

"Grande parte do mundo condena a opção da Rússia, mas não acha que isso se traduza necessariamente no apoio à política ocidental."

Estamos a entrar num nível retórico bastante perigoso. 

É óbvio para mim que não há solução militar clara para ambos os lados. A Ucrânia, sozinha ou mesmo com apoio corrente, não vai conseguir uma vitória puramente militar. A Rússia claramente não vai conseguir uma vitória militar, como já se vê: uma parte dos territórios que formalmente anexou já não são seus. Tem de haver uma solução política. O apoio do Ocidente não me parece possível a longo prazo - a três, cinco, dez ou 20 anos - a este nível ou superior com eleições a acontecer, com o crescimento da extrema-direita, com o preço da energia e com a inflação. E a Rússia não vai colapsar, vai continuar a existir com ou sem guerra, com ou sem Crimeia e Donbass.

Temos de perceber que as negociações serão com um ator permanente, que tem que fazer parte - e já fez, quase sempre mal - da arquitetura de segurança europeia. Há um ano, a Rússia era parte integrante, porque é europeia, está às portas da Europa, é um poder nuclear e não podemos fechar os olhos e desejar que deixe de existir. Precisamos de algo. Pode ser uma nova política de contenção, à semelhança da Guerra Fria. É algo muito mais agressivo do que gostaria de ver, mas é uma política a longo prazo. Temos de lidar com a Rússia em vez de a querermos eliminar ou esperar que colapse. 

Do ponto de vista mediático e simbólico, o que está a acontecer é Putin estar a aproveitar-se muito bem da hipocrisia ocidental. Estamos a ceder o campo todo a Putin quando diz que o Ocidente os odeia e quer ver a Rússia acabar. Quando dizemos que se trata de um confronto existencial, é fácil para Putin dizer que é o que está a acontecer, mesmo que não seja. Não acredito, efetivamente, que Joe Biden acredite numa confrontação existencial e numa necessidade de a Rússia acabar, seria o pesadelo para os Estados Unidos. 

Essa ideia de facilitar. Uma das primeiras sanções dos EUA à Rússia foi a retenção de 250 mil milhões de dólares russos que estavam na Reserva Federal norte-americana. Tendo em conta que a instituição é a garante do dólar no sistema monetário internacional, isso não é enviar uma mensagem a outros países, como em África, Ásia ou América Latina, aos que não se alinhem com os Estados Unidos? A de poderem ver as suas reservas capturadas abrindo a porta à China e à entrada do yuan. 

A vasta maioria da população mundial que não vive no Ocidente tem com ele uma relação complicada, desde logo pelo seu passado colonial, pela forma como a ordem mundial vigente, que apesar dos seus benefícios absolutos, deu mais ganhos relativos a alguns países em detrimento de outros, institucionalizando-os com o Conselho de Segurança, FMI ou Banco Mundial. O resto do mundo sente que há muita hipocrisia de quem está a perder poder: a Europa e os Estados Unidos. Vejo os EUA fazerem isso como uma posição de fraqueza, não precisavam de o fazer quando grande parte da economia mundial era dolarizada. Não precisavam de o fazer quando, do ponto de vista tecnológico, dominavam todos os mercados, não precisavam de o fazer quando tinham um peso na OPEP que já não têm e os seus aliados nela tinham muito menos autonomia estratégica. 

Regressando à independência estratégica europeia. Os Estados Unidos estão a apostar na chamada “Nova Europa”, na Polónia e nos grupos de países do leste da NATO, excetuando a Hungria, em detrimento da França, da Alemanha e de Itália.

Que eram os países que mais favoreciam a construção do Pilar Europeu de Defesa.

Exatamente. A venda de armamento norte-americano aumentou 39% e, no que diz respeito aos tanques Leopard, a Alemanha disse que não tinha capacidade para vender mais, nem produzir mais peças, tentando recusar o envio de tanques para a Ucrânia. Tendo em conta que os Estados-membros da NATO precisam de capacidade de reação e de prontidão, como ficamos?

Não é à toa que a Alemanha se prontifica astutamente a fazer isso em consórcio, com os Estados Unidos a enviarem os seus tanques Abrams para a Ucrânia. A Alemanha tem a perfeita noção que o Abrams não é um ataque particularmente fácil, neste caso porque leva mais tempo a treinar e, em termos de manobra, é muito mais pesado.

"O apoio do Ocidente não me parece possível a longo prazo - a três, cinco, dez ou 20 anos - a este nível ou superior com eleições a acontecer, com o crescimento da extrema-direita, com o preço da energia e com a inflação."

Estou-me a referir em termos de substituição, de os Estados-membros da NATO enviarem os seus tanques Leopard para depois os substituírem por tanques Abrams.

Eu sei, mas é de propósito. Se a ideia for os Estados Unidos terem de fornecer Abrams à Ucrânia, então isso também significa que a quantidade de Abrams que terão para substituir os Leopards será menor.

O ministro dos Negócios Estrangeiros alemão disse que a decisão de enviar Abrams para a Ucrânia tinha custos e benefícios. Benefícios como a solidariedade europeia com a Ucrânia, mas, por outro lado, o complexo industrial alemão pode perder clientes.

Vai perder clientes. Sou antimilitarista e acho que o militarismo é perigoso. A criação e o interesse permanente no desenvolvimento e proliferação de armas tende a levar a mais conflitos. Concordo com aquela pessoa que não é nem comunista nem um perigoso esquerdalho: o presidente Dwight D. Eisenhower, ex-comandante das forças aliadas na Europa e ex-presidente dos Estados Unidos. Ele disse que a partir do momento em que tenhamos uma espécie de keynesianismo militar, um exército permanente, uma necessidade constante de inovação desse exército, criando, portanto, um mercado de exportação para o que já não é inovador, isso aumenta o nível de armamento, os incentivos para utilizar e desenvolver novos armamentos. Tudo isso aumenta os riscos de segurança em geral.

Parece-me que estamos a tentar fazer uma revitalização da Europa em resposta a um conflito regional. É particularmente perigoso a longo prazo e já conseguimos reverter uma coisa que levámos décadas a fazer: constranger o militarismo alemão. Agora queremos mais militarismo alemão. Passámos muito tempo a tentar fazer com que a NATO fosse uma aliança defensiva e, cada vez mais, de cooperação militar e de desenvolvimento de treino e doutrina, mais do que de intervencionismo. Até porque as poucas vezes que interveio, como vimos, teve falhanços gravíssimos, à margem do direito internacional.

Desse ponto de vista um pilar de segurança europeu parecia-me mais fácil de manter dentro de uma ideia de controlo civil, de menor militarismo, de cooperação mais industrial e de tecnologias de ponta do que propriamente em larga escala. O que nós conseguimos foi reverter tudo isso e é preocupante. Percebo que para os Estados Unidos isto não seja controverso, porque são uma economia que nos últimos 75 anos se têm pautado por um enorme keynesianismo militar, pois têm uma economia profundamente militarizada. É um país que usa da força militar com muito poucos constrangimentos e que vive bem com isso.

Num contexto europeu onde as guerras tendem a levar muito tempo, onde tendem  ser muito complicadas, onde tendem a morrer muitas pessoas e onde passámos décadas a tentar resolver esse problema, aumentar o nível de risco aumentando militarismo, mesmo que o mote seja dado por uma posição militarista russa, é muito controverso.

Os europeus estão preparados para enviar tropas para a Ucrânia? Estamos preparados para fazer os sacrifícios que os líderes apregoam em termos de valores existenciais?

Gostava muito de dizer que sim ou que não, do ponto de vista do princípio. Há duas coisas que entendo bem: a mobilização e a radicalização, e isso, infelizmente, é muito fácil de fazer acontecer. Sou muito pessimista, porque, num ambiente altamente mediatizado, temos muito comentário político, muita gente a discutir política, muita opinião, muito Twitter e baixa literacia. Não é difícil manobrar as paixões públicas.


"No Ocidente produzimos muitas armas e fazemos muito dinheiro, e isso é bom porque gera muito emprego. Para onde é que as armas vão e o que fazem? Noutros sítios morre muita gente, mas nós não. Temos proteção, temos drones."

É fácil?

Não, não acho que seja fácil, mas acho que é muito mais fácil do que se pensa. Já fui acusado de ser um avençado da NATO, pró-russo, um analista realista que só quer saber do interesse nacional e que vendeu os valores e a Ucrânia. Portanto, é uma declaração de interesses. Sou uma pessoa que não tem quadrante definido.

Mas repara no que já fizemos. Dissemos: "vamos ajudar a Ucrânia humanitariamente. Armas não". Depois dissemos: "a Ucrânia de facto precisa de armas. Vamos mandar não apenas treino, não apenas engenharia militar, não apenas medicamentos, mas também armas. Armas avançadas não”. Depois: "bem, nós vamos usar armas avançadas, mas sistemas de defesa aérea muito avançados que possam entrar em espaço russo, não”.  Depois sim, e temos continuado. Também não íamos dar tanques. Todas as linhas vermelhas que dissemos serem estrategicamente perigosas são custosas para o erário público e podem não ter o apoio da nossa população.

Depois dizia-se que não havia consenso europeu e passávamos para a próxima. A minha questão é sempre a mesma: não havendo uma definição clara de vitória, qual é a próxima linha? E a outra? Onde é que vai haver a linha vermelha europeia? Quando perguntei num programa de comentário político: "o que vamos dizer quando nos pedirem soldados?". E alguém disse: "mas ninguém nos pediu soldados." Mas há três meses ninguém nos tinha pedido tanques. Resumindo, isto não é um problema até o termos. Mas quando tivermos o problema, a julgar pelo que fizemos até agora, a nossa capacidade de resistir vai-se tornar mais pequena.

Preocupa-me a crescente militarização do discurso em nome dos valores. Não porque não goste dos valores ou porque não ache que não sejam ou não devam ser defendidos, mas vai justificando coisas cada vez mais problemáticas, sem termos um método claro de limitar até onde estamos dispostos a ir.

Ou seja, neste momento temos países que estão a reagir a isto num contexto de pouca familiaridade com a guerra. Mas se tivermos uma maior militarização e normalização do militarismo, como temos nos Estados Unidos, os constrangimentos públicos sobre o uso de força diminuem muito. A ideia, por exemplo, de heroicíssimo, de valor moral, dos valores mais altos, que no papel são bonitos, mas eu, como alguém que almeja ser um pacifista, não posso concordar. Aliás, não é preciso falar comigo, é preciso falar com qualquer soldado que esteja ou esteve na guerra, dirão que a experiência foi tudo menos heróica e que foi essencialmente desumanizante para o indivíduo e para o grupo nacional.

Como isso é experiência de quase todas as guerras, de quase todos os veteranos e das pessoas que estudam a guerra, preocupa-me muito porque nós vamos tornando essa possibilidade cada vez mais possível e cada vez mais normal. Às vezes até quase indesejável. Deixámos literalmente de falar de paz, fomos normalizando que a guerra é normal e desejável. A ideia de paz foi até muito associada a uma certa cobardia moral ou, pior do que isso, a uma traição pró-russa, isto do ponto de vista da autocensura e do unanimismo acrítico que isso acarreta.

Há um pensador importante que escreveu um livro sobre política externa americana e que criou a ideia de pensamento grupo, o unanimismo, onde demonstra quais são os elementos centrais, como funcionam e se reforçam mutuamente. Um deles é que começamos a ter uma espécie de polícia do pensamento, a dizer coisas como "não podes dizer isso, é não patriótico" contra tudo o que choque com a narrativa. Não há dissensão moral possível.

É normal que aconteça na Ucrânia, um país literalmente em guerra, em que os sistemas de informação estão centralizados e a vida das pessoas é essencialmente a guerra. Estar a ter discussões filosóficas sobre o valor da paz enquanto estão literalmente a chover bombas sobre as cabeças dos nossos filhos e não temos eletricidade nem água corrente é ainda mais difícil do que normalmente já é. Mas em países como Portugal, em que fazemos militarismo de transferência de risco, ou seja, somos militaristas, ajudamos o militarismo, vivemos de militarismo, temos investimentos em militarismo, temos uma cultura mediática altamente militarista, cortamos as externalidades todas para outro lado.

No Ocidente produzimos muitas armas e fazemos muito dinheiro, e isso é bom porque gera muito emprego. Para onde é que as armas vão e o que fazem? Noutros sítios morre muita gente, mas nós não. Temos proteção, temos drones. Tentamos ter um nível de baixas a zero. Vamos transferindo cada vez mais o risco e isso permite-nos alimentar o nosso militarismo, porque os custos são essencialmente externalizados. E isso do ponto de vista ético parece-me atroz.