Bruno Paes Manso

Bruno Paes Manso é jornalista e investigador do Núcleo de Estudos da Violência de São Paulo, especialista em crime organizado no Brasil. 

Bruno Paes Manso: "A semente das milícias no Rio de Janeiro foi a violência policial. Os policiais vão usar esse poder para se beneficiarem a si próprios"

O jornalista e investigador do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo analisa o processo de "milicianização" das polícias e do Exército no Brasil e seu impacto na política. Partindo de eventos recentes, como os ataques às sedes dos poderes da República do Brasil, ocorridos a 8 de janeiro, o especialista em crime organizado no Brasil fala sobre o que é possível fazer para combater esse poder paralelo.

Entrevista
23 Janeiro 2023

Um trágico “ser ou não ser” divide a existência de milhares de pessoas no Rio de Janeiro: viver sob o tráfico ou a milícia? Eis a questão por anos silenciada e relegada aos estratos mais pobres da Zona Oeste da capital fluminense e municípios pobres do Estado do Rio de Janeiro.

A dúvida começou a ganhar ares nacionais em março de 2018, com a morte da vereadora municipal do Rio, Marielle Franco (PSOL). E, mais ainda, com a eleição de Jair Messias Bolsonaro, então no Partido Social Liberal (PSL), para a presidência do Brasil.

Surgida numa pequena comunidade rural na Zona Oeste do Rio, as milícias foram ganhando poder político e económico a partir dos anos 1990, auge da violência e do poder do tráfico, em conflito com a polícia e entre diferentes fações.

Para uma classe alta apavorada pela paisagem entrecortada pelas trocas de tiros, os arrastões nas praias, os homicídios, sequestros relâmpagos, incêndios em autocarros e assaltos a edifícios, as milícias, formadas por agentes policiais, pareciam a solução ideal.

Se nem mesmo o Cristo Redentor, “Com os braços sempre abertos/ mas sem proteger ninguém”, como disse o compositor Cazuza, deu conta da cidade, só mesmo os grupos paramilitares que iam tomando conta da Zona Oeste e impediam que o tráfico de drogas dominasse a região, se impunham como uma solução à vista. Ao menos era o que alguns setores pensavam.

Afinal, o tráfico, além de tudo, corrompia até seus filhos, que subiam os morros para ir aos bailes funk. Não apenas por esse motivo.

Mas como se deu esse processo? Como essa “solução” encaminhou-se tão rapidamente num desenlace trágico, como o assassinato de Marielle, a eleição de Jair Bolsonaro e a invasão e depredação do Palácio do Planalto, sede do Executivo do Brasil, do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal?

O jornalista e pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (USP) Bruno Paes Manso, autor de República das Milícias - dos Esquadrões da Morte à Era Bolsonaro, editado pela Todavia, analisa o fenómeno à luz da história brasileira e suas implicações futuras no contexto político nacional.

Dependemos de quem nos lê. Contribui aqui.

O que é a milícia e por que ela se instala na região de Rio das Pedras, uma zona rural do Rio de Janeiro, nos anos 1970?

A milícia que começa a surgir no Rio das Pedras é formada por pessoas que vivem naquela região e tentam ganhar uma relevância local e uma legitimidade local se colocando como defensores da ordem naquele bairro.

"O que a gente tem até mais ou menos a década de 90 são grupos de defesa que depois vão se transfigurar nas milícias a partir dos anos 90."

 

Qual a diferença do que existia nos anos 1970 para o que existe nos dias de hoje?

Essa forma violenta de propor uma segurança para o bairro começa a se intensificar nos anos 90, quando o tráfico de drogas já é uma realidade importante no Rio. E eles inclusive fazem esse discurso de que vão defender a comunidade da expansão do tráfico de drogas da Zona Norte, Sul e Centro para a região da Zona Oeste, que ainda não tinha a mesma presença do tráfico. O que a gente tem até mais ou menos a década de 90 são grupos de defesa que depois vão se transfigurar nas milícias a partir dos anos 90.

Vai tendo uma evolução porque é um discurso de autodefesa para se legitimar entre a população, entre os políticos. E vai funcionando a ponto de eles conseguirem trabalhos na administração pública e conseguirem benefícios dos governantes em troca de votos. Eles conseguiram asfalto, iluminação e tudo mais. E depois, a partir dos anos 2000, eles passam a se eleger para o parlamento e ter representantes no parlamento estadual e municipal do Rio de Janeiro. Então, eles passam a se fortalecer politicamente e a fazer parte do Estado e a espalhar essa ideia. Essa ideia passa a ser replicada nos outros territórios da Zona Oeste [da cidade do Rio de Janeiro], com suas próprias lideranças policiais locais fazendo a mesma coisa, porque é uma coisa que acaba dando certo e dá dinheiro para quem faz. É uma falsa sensação de segurança que, com o tempo, vai descambar para violência, mas que, no começo, passa essa ideia de que eles vão defender a comunidade da expansão do tráfico de drogas, que por ela dar certo, se expande e se espalha para outros lugares.

 

No Rio de Janeiro, nos anos 2000, eu lembro que havia uma ideia muito forte aqui na Zona Sul da cidade, a área mais rica, nos setores da classe média e da classe alta, de que a milícia era melhor do que o tráfico, porque a milícia era composta por agentes da polícia, logo, eram agentes do Estado, não eram grupos criminosos. Você acha que isso ajudou a milícia a se espalhar e a se fortalecer?

Sem dúvida. E houve essa postura ambígua das autoridades. Os governos de Sérgio Cabral [governador do estado do Rio de Janeiro, 2007-2015], Eduardo Paes [2009-2017] e César Maia [1999-2007] tiveram esse momento de dúvida pelo facto de serem agentes do Estado e alguns deles, inclusive, contratados pelas administrações públicas. O próprio César Maia defendia no começo das milícias a legitimidade desses grupos, por se tratarem de grupos de autodefesa. Depois vai ser [candidato a] vice-governador do Marcelo Freixo [nas eleições de 2022], que é o principal opositor desses grupos, e fala que ele respeita muito Freixo porque ele estava errado naquela época e o Freixo mostrou que ele estava errado e por isso ele o apoiava em outras eleições. Essa perceção de que eles [os milicianos] eram uma fação vai acontecer, pela grande quantidade de assassinatos que eles faziam e pela grande tirania que eles exerciam no território, pela influência que eles já tinham no Estado. Tudo isso vai ficar evidente depois da CPI de 2008. Então aí o discurso vai se transformar.

 

Houve também aquele caso do jornalista e do fotógrafo do Jornal O Dia, que foram pegos e torturados em 2008 pela milícia da Favela do Batan, em Realengo, bairro do subúrbio da Zona Oeste do Rio. Acho que isso também foi um ponto de virada.

Foi o ponto de virada que deu o espaço e a oportunidade política para [a CPI] ser aprovada na Assembleia Legislativa [o Parlamento Estadual] do Rio. O Marcelo Freixo [então deputado estadual] já tinha entrado com o pedido [de abertura]. Foi um deputado estadual relativamente pouco votado. Ele foi o último a entrar na vaga do partido. Teve pouco voto, pouco mais de 15.000 votos. Mas logo que ele entra, ele já apresenta esse pedido de CPI das Milícias, porque o irmão dele tinha sido assassinado por uma milícia seis meses antes, durante a campanha eleitoral. Ele já entra com esse pedido de CPI na Assembleia. Dão risada da ingenuidade dele por ter apresentado esse pedido. Demora um ano e meio para que ela ganhe legitimidade política por causa da repercussão ou das torturas feitas com o fotógrafo, motorista e a repórter d’O Dia.

 

A vereadora Marielle Franco (PSOL), morta em 2018, foi assessora do Freixo nessa época da CPI das Milícias. Qual foi o papel dela nessa CPI?

Não foi um papel tão ativo. Ela estava atuando em muitas outras causas. Ela não teve um papel a ponto de ser vista como uma das bases das acusações que vinham sendo feitas. Ela tinha um trabalho mais transversal no gabinete.

 

Nessa época da CPI das Milícias, começa a ser implantado aqui no Rio as UPP, que são as Unidades de Polícia Pacificadoras. Começa no Morro Dona Marta, em Botafogo, na Zona Sul. E aí vão se espalhando em várias favelas. Começou com aquela história de ‘Vamos tirar o tráfico das favelas, a polícia vai resolver’. Com o tempo, porém, o que a gente vai vendo, é que a polícia também vai matando, vai oprimindo. E até que desemboca naquele caso na Rocinha, em 14 de julho de 2013, do pedreiro Amarildo, que é um caso muito semelhante ao da ditadura. É até irónico, porque estava acontecendo a Comissão da Verdade na época em que ele é sequestrado, torturado, morto e desaparecido pelos policiais. Qual é a diferença de uma UPP para uma milícia?

A UPP é uma política pública interessante, porque ela surge em um momento em que as políticas públicas de segurança do Rio de Janeiro se resumiam às operações de guerra em favelas. Um grande aparato policial entrava nos morros e nas comunidades e acabava produzindo muitas mortes. Antes das UPP começarem houve um caso muito escandaloso no Complexo do Alemão [complexo de favelas na Zona Norte do Rio], em 2007, onde 19 pessoas morreram. Isso acabou levando a uma discussão acerca de uma outra abordagem para se fazer nos morros e nas comunidades. Então, a ideia era criar polícias de proximidade, que estivessem presentes nessas comunidades e ganhassem a confiança da população e que garantisse o Estado de Direito na medida do possível. E a partir daí viriam políticas públicas sociais. Você tinha essa ideia, essa tese importante de se ter a presença do Estado não só pela polícia, mas também de outra maneira, com escolas, postos de saúde, cultura, arte. Com o tempo, a coisa foi desvirtuando.

Primeiro, porque as UPP acabaram sendo focadas principalmente na região da Zona Sul, Centro e Zona Norte. No caminho que [na ocasião] perpassava os Jogos Olímpicos [realizados em 2016]. Então, era uma medida muito estratégica e voltada para essa geografia da Copa do Mundo [2014] e das Olimpíadas. Ao mesmo tempo, era muito cara, era muito caro você ocupar o morro, ocupar uma comunidade. Acabava destinando muito do orçamento da segurança pública para esses locais e o resto do Estado do Rio de Janeiro acabava ficando desprotegido. Você não tinha uma um olhar estratégico da segurança pública para o todo. O que começou a acontecer é que muitos desses grupos que ganhavam dinheiro a partir da venda retalhista de drogas foram se expandindo para outras regiões e foi, de alguma forma, transformando um pouco essa geografia também em controle territorial. O caso do Amarildo é justamente esse momento mais emblemático que acaba derrubando um castelo de cartas de uma política pública que não foi pensada a partir da realidade do Estado do Rio de Janeiro, mas um pouco de acordo com um momento político importante, voltada para a situação da Copa do Mundo e das Olimpíadas. E aí, quando surge o Amarildo, vem [as manifestações de] 2013 e as denúncias de corrupção contra o Sérgio Cabral. Esse castelo de cartas cai no Rio e as instituições do Rio derretem.

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A República das Milícias
A República das Milícias foi publicado pela editora Todavia, em 2020.

Em 16 anos, as milícias cresceram 387% e, em 2022, metade das áreas do Estado do Rio comandadas por grupos armados estava nas mãos das milícias, o que equivale a 10% do território do estado. Na capital, a área sob comando da milícia já é maior que sob domínio do tráfico. Nos últimos anos, como você falou, a institucionalidade do Estado ruiu e quem acaba emergindo é o bolsonarismo. De que maneira o fracasso da política de segurança e a ruína da institucionalidade se conecta com a emergência do bolsonarismo?

Tem um momento político nacional que acaba coincidindo com uma realidade política que está conectada com a fragilização da Nova República. Ela foi fundada em 1985, durante o processo de redemocratização brasileiro. Passa por um começo conturbado. Primeiro o impeachment [em 1992] do Fernando Collor [primeiro presidente eleito, de direita], mas depois ela se estabiliza e vai em velocidade de cruzeiro. Mas a partir de 2014 você começa a jogar foco sobre um sério problema da Nova República. As eleições eram muito caras e acaba se naturalizando os acordos dos políticos com empresários, empreiteiros e com a elite económica de uma forma geral. Para financiar a campanha, para você ser um candidato viável no Brasil, você tinha que ter esse esquema de financiamento paralelo. E isto começa a vir à tona com a [Operação] Lava Jato. A partir de 2014, essas denúncias sobre essas relações com os empresários começam a vir à tona.

 

Isso cria um sentimento de pessimismo e de descrença na política e em relação aos políticos, que vem se reforçar com a crise econômica de 2015 e 2016, que é profunda. Uma crise económica profunda, que faz a gente chegar em 2018 com parte da população desacreditando da democracia, desacreditando do legado da Nova República. E se você não acredita na política, se você não acredita na democracia para mediar seus problemas e seus conflitos e ajudar na resolução dos problemas e dos desafios sociais que existem, qual é a solução?

E é nesse barco que surge o bolsonarismo. De alguma forma, ele se associa com um discurso miliciano e surge como uma autoridade que se faz a partir da construção de um discurso de guerra, de um discurso de uso da violência contra certos inimigos apontados como responsáveis pelo fracasso do desenvolvimento nacional. Ele constrói sua autoridade a partir de um discurso do conflito e a partir da construção de uma série de bodes expiatórios que de alguma forma dialoga com o que vem acontecendo no mundo de uma forma geral. Uma transformação mundial muito intensa do próprio capitalismo, da pós-industrialização, da crise de empregos. [Ele se opõe a] Várias questões ligadas a género, ligadas ao movimento LGBT, ao feminismo. Ele começa a trabalhar tanto os bodes expiatórios com essa questão ligada à corrupção da política. São os políticos do PT, o globalismo, o comunismo, o fim da família. Ele começa a construir esse discurso fundamentalista de conflito, que passa a produzir um sentido para uma parte da população, passa a dar uma causa para a parte da população, que começa a enxergar a solução dos seus problemas em determinados inimigos que estavam no poder há muito tempo. É uma espécie de autodefesa nacional, também pelo armamento da população, pela disposição ao conflito, pela disposição para morrer em nome desses valores. Tudo isso dá um sentido para uma parte da população. A partir da construção de bodes expiatórios, você constrói uma autoridade, um propósito contra uma parcela da população a partir desse discurso da guerra, do conflito.

Eu escrevi recentemente no Jornal da USP um artigo sobre esses dois projetos que estavam em jogo. Você tem um projeto democrático republicano, representado pelo Lula [o projeto] da Nova República e o governante como representante dos valores coletivos.

 

Quais seriam esses valores?

Você assume o governo como um democrata ou como um representante dessa origem política brasileira de pós-85, como representante dos interesses coletivos, governando para todos, independente se votou nele ou não. Mas você tem que tocar o Brasil a partir de um projeto racional que permita criar uma sociedade mais justa e vai ter alternância do poder de poder, outras pessoas, de outras ideias, e assim a coisa vai.

 

E no caso do bolsonarismo?

Ele não tem uma proposta de defesa da política. Ele tem a proposta da defesa de um grupo aliado aos valores que ele representa e que vai se juntar para o conflito contra os inimigos, contra aqueles que impedem o desenvolvimento. Ele não governa em nome do interesse coletivo. Ele vem com um discurso de conflito, de defesa do grupo, que concorda com os valores que ele representa contra aqueles que não concordam, [que] precisam ser vencidos e precisam ser, de alguma forma, submetidos aos valores que esse grupo representa.

 

A gente viu mais de 1000 denúncias de funcionários coagidos por empresários a votarem no Bolsonaro, a gente viu parte da Polícia Rodoviária Federal atuando a favor do Bolsonaro. A gente viu que a campanha do Bolsonaro tinha no segundo turno uma quantia enorme de dinheiro e a do Lula estava só com o fundo eleitoral. A gente vê logo na sequência o mercado financeiro, já na transição, assim criando um clima de pânico contra o governo do Lula e a gente vê até pela própria votação, que foi uma diferença quase inexpressiva. O que eu queria entender: A gente está num momento aqui no Brasil de um consenso? A gente não está num momento mais propício para uma guerra?

Sim, eu acho que é um momento muito delicado, principalmente porque esse discurso da guerra seduz quem tem armas aqui no Brasil, que são as Forças Armadas, as polícias militares, as polícias de uma forma geral e os grupos de colecionadores, atiradores, colecionadores e caçadores que compraram mais de 1 milhão de armas e se espalharam pelo Brasil inteiro.

"Você tem uma cultura nova na polícia, que é justamente o facto de o policial ser favorável ou simpático a um candidato, o Bolsonaro, e achar que essa simpatia que ele tem ao bolsonarismo ou ao Bolsonaro desobriga a ele a obedecer a Constituição e à lei."

Então, a gente vai ter esse desafio de fazer esse trabalho político, de convencimento político, vendo o grande risco de ser confrontado por um grupo que de alguma forma aderiu a esse discurso bolsonarista e que tem as armas nas mãos. Por um lado, você tem o discurso da legitimidade, das leis e das instituições democráticas. Eu acho que talvez o grande mérito do Lula e o grande mérito dos políticos é a possibilidade que a gente tem agora é justamente trabalhar com essa frente ampla e com instituições e com políticos que têm interesse na preservação da ordem democrática, que foram eleitos para a própria democracia. Todo mundo, de alguma forma, pode se unir e se juntar na defesa dessa institucionalidade que lhes dá poder, inclusive. O poder institucional ainda está na mão da política.

 

É correto a gente falar numa "milicianização" da polícia e do Exército enquanto instituições?

Eu acho que sim. Desde os anos 50, 60, a gente delegou para as polícias esse poder de decidir quem morre e quem vive, como se isso fosse benéfico para a gente [os setores mais ricos]. Isso acabou produzindo entre os policiais uma perceção e uma sensação de que eles têm um poder distintivo e ele passa a usar esse poder de vida e morte para ganhar dinheiro. A semente das milícias foi a violência policial. Ela é a irmã siamesa da corrupção. [Tudo] Começa com esse discurso da guerra e desse discurso da guerra contra o crime. E você vai perdendo o controle das polícias. Os policiais vão usar esse poder para se beneficiarem a si próprios, em vez de defender a lei.

[Na sequência] você tem uma cultura nova na polícia, que é justamente o facto de o policial ser favorável ou simpático a um candidato, o Bolsonaro, e achar que essa simpatia que ele tem ao bolsonarismo ou ao Bolsonaro desobriga a ele a obedecer a Constituição e à lei. Você tem um processo de desconstrução da legitimidade do Estado de Direito a partir dessa visão.

 

E a gente vê isso no Exército também?

No Exército também. O facto de você ter uma imensa quantidade de oficiais participando de um governo [o de Jair Bolsonaro], inclusive oficiais no ativo, participando do governo nessa imensa quantidade, eles deixam de ser uma força no Estado e passam a atuar como uma força política em defesa de um partido. Então, eles passam a ser representantes de um grupo político específico, fazem parte do governo. Então, você tem um processo que faz com que eles passem a ser uma força em defesa de um grupo.

 

Depois da invasão e da depredação ao Palácio do Planalto, ao Congresso Federal e ao Supremo Tribunal Federal no domingo (8/1), foi decretada intervenção federal na segurança pública do Distrito Federal, que seria o responsável pela segurança de Brasília, a capital federal do Brasil. E aí eu me pergunto o seguinte: numa hipótese disso continuar acontecendo não é complicado você acabar tendo várias intervenções federais no Brasil? Nós não estamos no risco de um cenário de caos, tendo ao mesmo tempo um Exército que traz consigo a experiência de governar um país, o Haiti, por meios coercivos?

Tem. É uma situação delicada, porque a gente está na iminência de uma crise política muito séria. Porque qual é o problema aqui: você teve a necessidade de decretar intervenção no Distrito Federal porque houve uma evidente sabotagem da segurança pública por parte da Polícia Militar. Então, é uma decisão legítima, é uma decisão necessária. Agora, quais os riscos? Você nomeia um interventor. Esse interventor chega para representar o governo [federal] justamente do qual parte da Polícia Militar vem se levantando e dá determinadas ordens e não é obedecido. Qual é o passo seguinte? Você precisa contar de alguma forma com outras forças para enquadrar essa desobediência. Se essas forças não responderem, a partir do momento que a gente passa a depender do uso da força para estabelecer e para retomar o Estado de Direito e a ordem democrática? Você fica dependendo delas. E a partir do momento em que elas foram cortadas, qual é a resposta que você vai ter? É uma dúvida que a gente vai ter que testemunhar agora. Elas estão comprometidas com a institucionalidade do Estado de Direito democrático? Elas estão comprometidas com um discurso populista de extrema direita e na cabeça delas é que o governo quer convencer ou de que, na verdade, esse governo é ilegítimo?

"As milícias passaram a perceber que a droga poderia ser uma fonte de receita adicional e o tráfico de drogas passou a perceber que esses outros mercados também poderiam funcionar como uma fonte de receita. E aí, cada vez mais eles se parecem."

 

O Bolsonaro entra na política como um representante do Exército e a partir de um determinado momento o bolsonarismo, o Bolsonaro e seus filhos, entram passam a ser também um representante das polícias.

Ele era um deputado basicamente corporativo das polícias e do Exército. Ele fazia leis que de alguma maneira buscavam atender as reivindicações por salário e ganhos, além de fazer sempre um discurso populista de guerra contra o crime, ao mesmo tempo muito chamativo e quase anedótico, e quase, na verdade, muito estereotipado. Era uma pessoa que vivia isolada até 2014, mais ou menos, e era o louco do Congresso, mas que [sempre] conseguiu seus 100.000 votos para se eleger deputado federal. A partir desse discurso populista, a coisa começa a mudar de figura a partir de 2013 e 2014, com a crise que vem se revelar nas ruas com as Jornadas de Junho. E alguma coisa não estava indo bem, como com o surgimento das redes sociais e as próprias manifestações de junho. Ele começa a ganhar força nesse momento, a partir dessa novidade [das redes sociais]. E ele, de alguma forma, [é] esse discurso do conflito. Esse discurso da guerra. Nesse discurso moralista e reacionário, ele casa com muitos sentimentos de insegurança e de responsabilidade que vinham atingindo a sociedade não apenas no Brasil como em outros lugares, nos Estados Unidos [por exemplo].

 

Aqui no Rio, eu entrevistei três anos atrás a Eliana Souza, da Redes da Maré. No Complexo da Maré, onde nasceu e se criou a Marielle, um dos maiores complexos de favelas do Rio, há hoje a figura das narcomilícias. Ela contou que, com a disputa entre o tráfico e a milícia, que é muito forte hoje em dia nas favelas da Zona Norte do Rio, a milícia tem adotado práticas do tráfico, como a venda de entorpecentes. E o tráfico, por sua vez, tem adotado atitudes próximas da milícia. Antigamente, ele não se envolvia na vida privada dos moradores, algo que é muito comum em Rio das Pedras. E hoje o tráfico tem feito na Maré. Como você avalia essa nova figura que está surgindo?

Acho que era meio natural, pelo modelo de negócio que é exercido no Rio de Janeiro, que é um modelo de negócio diferente do de São Paulo, de outros estados. No Rio, o que existe é o controle armado dos territórios, você passa a exercer o controle armado dos territórios. No caso do tráfico, para vender droga no varejo. No caso das milícias, principalmente para extorquir os moradores, os comerciantes, controlar uma série de negócios, vans, venda de internet, construção de prédios, essas coisas todas. Só que o que acontece? Acontece o óbvio: a partir do momento que você controla território, você precisa extrair o máximo de receita possível, porque é o seu reinado. Você exerce o papel de autoridade e a partir daí você pode variar as fontes de receitas. E as milícias passaram a perceber que a droga poderia ser uma fonte de receita adicional e o tráfico de drogas passou a perceber que esses outros mercados também poderiam funcionar como uma fonte de receita. E aí, cada vez mais eles se parecem. Então, é uma evolução natural do modelo de negócio que é a do controle territorial armado dos lugares.

 

Eu fui para Rio das Pedras em 2019, um dia depois da Operação Os Intocáveis, que prendeu parte do Escritório do Crime, a cúpula da milícia local. E aí eu conversei com o sobrinho de um dos membros da cúpula da milícia de lá e questionei como ficariam as coisas. E ele falou: “Bom, é agora. Agora é esperar por quem vai ser o novo imperador. Quando o imperador cai, assume outro.” De facto, foi o que aconteceu. O Rio das Pedras continua na mão da milícia, apesar da operação que envolveu o Ministério Público Estadual e a Polícia Civil. A pergunta é: tem jeito de combater o crime organizado?

É um desafio muito grande mesmo, porque eles continuam ganhando dinheiro, empregam muita gente e geram renda. Tem negócios e isso financia o poder que eles têm. Além de que subornam muita gente. É preciso um Estado forte, comprometido em libertar essas comunidades desses tiranos. Se você não consegue fiscalizar e fazer com que seque a fonte de receita desses grupos, eles vão continuar poderosos. Isso passa pela prisão, mas passa pela identificação de como é que eles ganham dinheiro, onde eles lavam [o dinheiro]. Ao mesmo tempo, tem que ser feito com estratégia, inteligência e paciência. Não é de uma hora para outra que isso vai acabar. Você tem que, ao mesmo tempo, limpar as próprias polícias. Exige um compromisso muito grande dos políticos e das instituições.