Mestranda em Cultura Pós-colonial e Política Global na Goldsmiths, Universidade de Londres. Estuda o capitalismo racial (pós-)colonial, com um pé na academia e outro na cultura.

Perceber a globalização através do Parque das Nações

Após a entrada na CEE, urgia tornar Lisboa numa cidade moderna, capaz de captar investimento estrangeiro que acelerasse o desenvolvimento económico do país. Com a Expo'98 nascerá o Parque das Nações, onde a memória do colonialismo é sanitizada e despolitizada, legitimando o projeto neoliberal para a cidade.

Ensaio
12 Maio 2022

Lembro-me bem das aulas de Português e de História do ensino obrigatório. Eram repetitivas ao ponto de roçar o bizarro. Ano após ano, os autores (raramente autoras) eram os mesmos, e Luís Vaz de Camões era a estrela da companhia. Camões e a mitologia que a sua obra celebra figuram proeminentemente não só nos manuais escolares, mas na própria cidade de Lisboa em si.

Camões dá nome a um largo, a um teatro, quem sabe a quantas ruas, e até as suas rixas de bar são motivo de celebração no Pátio do Tronco, onde dois mosaicos em sua honra gritam “SEMPRE PORTUGAL”. Por sua parte, Vasco da Gama inspira pontes, torres, centros comerciais e avenidas. 

Curiosamente, grande parte desta toponímia encontra-se num dos bairros mais recentes de Lisboa: o Parque das Nações, freguesia que foi completamente reedificada aquando da Expo’98. Esta observação levou-me a embarcar numa investigação sobre o processo de renovação desta zona oriental de Lisboa, e o que esta nos pode ensinar sobre essa grande coisa que é a Globalização.

Dependemos de quem nos lê. Contribui aqui. 

Fazendo a cidade global

Em 1992, o governo de Aníbal Cavaco Silva venceu o concurso para receber a Expo’98 com um projeto intitulado “Oceanos: A Herança do Futuro”. No entanto, desde o início que o objetivo foi usar a Expo para transformar Lisboa numa “cidade global”. Este foi o projeto urbanístico mais ambicioso do Portugal contemporâneo: custou 400 milhões de escudos (à data de hoje, 80 milhões de euros sem considerar a inflação) para criar a “cidade imaginada”. Uma capaz de transcender “os limites do possível” e, segundo o próprio primeiro-ministro na altura, “ser o símbolo de um novo ciclo da vida do nosso país”. 

Porque foi dada tamanha importância à renovação dessa zona da cidade? Para perceber isto, devemos recordar onde estava Portugal no início dos anos 1990. Finda a ditadura em 1974, e após um ano de tentativas revolucionárias, o país começou a caminhada rumo a uma democracia liberal ocidental. 

Saltando de ajuste estrutural em ajuste estrutural, o país procurava desesperadamente “convergir” com o resto da Comunidade Económica Europeia (CEE, que posteriormente veio a evoluir para a atual União Europeia) de modo a resolver um enorme problema: após séculos de império colonial, e largas décadas de política externa isolacionista, a descolonização que sucedeu ao 25 de Abril tornou a balança comercial  incomportável para os cofres do Estado. 

Enquanto país semiperiférico (ver, por exemplo, Boaventura de Sousa Santos), a adesão ao mercado único europeu apresentava-se como a única forma de assegurar o lugar de Portugal no sistema capitalista moderno. Uma vez aceite na CEE, era hora de transformar Lisboa numa cidade moderna, capaz de competir com as outras metrópoles na captação de investimento estrangeiro. Uma que fosse catalisador do desenvolvimento económico do país. 

É neste contexto que surge o projeto para a Expo’98, como o próprio Plano de Urbanização da Zona Industrial da Expo’98 (PUZI) deixava claro. "Na década de oitenta, Lisboa era uma cidade degradada com uma rede de infraestruturas e comunicação inoperante, em processo de desindustrialização", lê-se no plano. "A necessidade de modernização correspondeu ao fim da guerra colonial, à estabilização pós-revolução de 25 de Abril de 1974 e à adesão à Comunidade Europeia. [Urgia] delinear uma estratégica de desenvolvimento que partisse das especificidades próprias de uma antiga cidade colonial virada ao Atlântico para encontrar um lugar no contexto das cidades europeias."

Ao mesmo tempo que proliferavam os bairros de autoconstrução, o Parque das Nações foi construído na base da especulação imobiliária — e do trabalho de quem nesses bairros morava.

Seguindo o mesmo modelo que Margaret Thatcher usou no Reino Unido, na década de 1980, para construir Canary Wharf (o novo distrito financeiro de Londres), Cavaco Silva assegurou que a cidade que resultaria da construção do Parque das Nações seria “imaginada” conforme os desejos do grande capital financeiro internacional e não das necessidades reais de quem habitava em Lisboa. 

Assim, ao mesmo tempo que proliferavam os bairros de autoconstrução (onde habitavam as pessoas que desproporcionalmente trabalhariam, muitas vezessem documentos, na construção da Expo’98), o Parque das Nações foi construído na base da especulação imobiliária. Esperava-se, inclusive, que 60% do custo original da obra fosse coberto pela venda de imóveis para as classes médias e altas, fossem nacionais ou internacionais. 

A modernização da cidade não foi, portanto, resultado de “fluxos imateriais” que simplesmente aconteceram. Não foi, sequer, um movimento neutral mas sim um esforço político concertado, ancorado na ideologia neoliberal que visa maximizar o potencial especulador e extrativo das cidades. Qualquer outra visão do que uma cidade poderia ser foi secundarizada. 

Assim se explica que o Estado tenha, essencialmente, oferecido à Expo’98 um orçamento a fundo perdido para ser gerido por uma empresa pública de gestão privada (a Parque Expo S.A.), à qual não foi exigido qualquer escrutínio público das suas contas. Mais escandaloso foi o Estado ter entregue autoridade política a esta mesma empresa, inclusive de representação do executivo no estrangeiro, e de gestão municipal.

A máscara de identidade nacional

A urbanista Maria Kaika escreveu sobre como, em tempos de crise, as elites exploram a dimensão simbólica do espaço para instituírem “imaginários radicais”. Isto é, como usam imagens e símbolos de uma ordem que ainda não existe para a tornarem real. 

Assim, a arquitetura icónica serve de “remédio” para uma sociedade à procura de uma ideologia coerente, de uma nova identidade para si mesma. Daí que, segundo a autora, seja no momento em que uma ordem política está mais frágil que constrói as suas edificações mais espetaculares para reificar no espaço a narrativa que quer construir sobre si mesma. 

O Parque das Nações resulta precisamente de um momento de crise profunda: não só económica, mas também identitária. O fim das guerras de libertação levou à descolonização formal das antigas colónias portuguesas. No rescaldo, milhares de cidadãos africanos emigraram para Portugal continental. Se é verdade que no auge do império se estima que 10% da população de Lisboa fosse de origem africana, no século XX já pouco sobrava dessa herança. Foi fácil ler esta vaga de imigração como algo de inédito para o país, como algo desligado da longa história colonial portuguesa.

Importa ressalvar que, antes nos 12 anos antes da descolonização, os habitantes dos territórios colonizados por Portugal eram considerados legalmente cidadãos portugueses. Só quando a lei da nacionalidade foi revista na década de 1980 é que passaram a ser considerados estrangeiros por não terem nascido dentro das fronteiras portuguesas pós-1974. 

Em poucos anos, a sociedade portuguesa, cuja identidade nacional se alicerçava no estatuto de nação imperial, foi confrontada com o ruir desse império e das categorias que usava para organizar o mundo. O Parque das Nações pode ser interpretado como uma tentativa de estabilizar estas mudanças tectónicas no tecido social português. Fê-lo através da edificação monumental de uma ode ao imperialismo dos séculos XV e XVI capaz de apagar a ferida aberta do colonialismo da memória coletiva.

O Parque das Nações é um portal onde a memória do colonialismo é sanitizada e despolitizada, permitindo o seu uso como ferramenta de legitimação do projeto neoliberal para a cidade de Lisboa.

Se antes de 1974 o império foi associado a noções de “missão civilizadora”, no Parque das Nações (e na própria Expo’98) este adquiriu as conotações de “aventura” e “encontro cultural” que ainda hoje estruturam os discursos oficiais sobre o colonialismo. Assim, o império torna-se um referente para o futuro: da mesma forma que os portugueses de ontem foram “aventureiros” e “exploradores”, pioneiros da globalização, os portugueses de hoje serão "empreendedores" para continuar a dar “novos mundos ao mundo”. Esta sanitização e despolitização do império colonial é o que permite ao Parque das Nações ser, em simultâneo, referente da egrégia identidade nacional, e símbolo da globalização pós-nacional.

Assim, a maior (e mais inútil) ponte da Europa (na altura) recebeu o nome de Vasco da Gama, assim como a mais alta torre da cidade e o maior centro comercial (à época). A avenida estrutural do Parque das Nações honra D. João II, enquanto o passeio ribeirinho refere os oceanos. As próprias formas dos edifícios aludem a estas metáforas: condomínios de luxo na forma de naus; o Pavilhão Atlântico (agora, Altice Arena) cujos arquitetos afirmam ter desenhado para “evocar os magníficos navios que zarparam de Portugal na Era Dourada dos Descobrimentos”; o Oceanário que visa “celebrar a unidade do mundo através dos oceanos” nas palavras do arquiteto. Assim, o império foi deliberadamente associado à promessa da modernidade. 

O Parque das Nações é, desta forma, um portal onde a memória do colonialismo é sanitizada e despolitizada, permitindo o seu uso como ferramenta de legitimação do projeto neoliberal para a cidade de Lisboa. Mais ainda, é um grandioso projeto de reificação da branquitude da identidade nacional portuguesa, num momento em que a imigração pós-colonial ameaçava esse pressuposto.

Um conto de duas cidades

The colonist's sector is a sector built to last, all stone and steel. It's a sector of lights and paved roads, where the trash cans constantly overflow with strange and wonderful garbage, undreamed-of leftovers (…) The colonized’s sector (…) is a disreputable place inhabited by disreputable people. It's a world with no space, people are piled one on top of the other, the shacks squeezed tightly together.

Frantz Fanon, The Wretched of the Earth

 

A narrativa espacial construída em torno do Parque das Nações é, contudo, apenas uma parte do seu triunfo como projeto legitimizador de uma certa identidade nacional. Para lá daquilo que foi construído, o que foi obliterado, apagado e invisibilizado é também fundamental para compreender como a modernização de Lisboa se alicerça na divisão racial da sociedade portuguesa. 

Em primeiro lugar, e antes de 1998, o discurso oficial sobre a zona oriental de Lisboa era que fora abandonada por causa da rápida desindustrialização da cidade. Assim, a zona industrial foi construída discursivamente como “terra de ninguém” (tal como os territórios colonizados o haviam sido séculos antes), embora mais de mil pessoas morassem na zona que viria a ser o Parque das Nações. 

Ana Pereira, socióloga e investigadora do CISC.Nova, demonstra que a zona era desproporcionalmente habitada por famílias afrodescendentes, ciganas ou oriundas de zonas rurais em Portugal. A zona não estava, portanto, "desocupada", mas antes era casa para pessoas que pouco importavam para os planos megalómanos da “cidade global”. 

Quiçá mais chocante foi a forma como a empresa público-privada Parque Expo S.A. conduziu o realojamento das famílias que lá moravam. Não há qualquer rasto daquilo que os documentos oficiais classificaram como “bairro africano da zona industrial”, pelo que é impossível de averiguar o que aconteceu a essas famílias, presumivelmente afrodescendentes. As famílias (presumivelmente) brancas foram realojadas através de diferentes esquemas nas periferias de Lisboa. 

Por contraste, as 124 famílias de etnia cigana, que resistiram à tentativa da Câmara Municipal de Lisboa de as realojar em bairros isolados da restante população, foram colocadas em contentores, ao pé de um aterro sanitário. Os contentores tinham sido usado para armazenar explosivos. 

Por fim, o Parque das Nações acabou por se transformar numa zona de elite em Lisboa, atraindo empresas multinacionais, investidores, vistos gold e as classes abastadas do país. No entanto, quem construiu os escritórios, os centros comerciais e as restantes infraestruturas foram, desproporcionalmente, os imigrantes pós-coloniais luso-africanos a quem o Estado retirou a cidadania. Enquanto lhas tirava, o Estado usufruía do seu trabalho deliberadamente embaratecido para se “modernizar”. 

Mais chocante foi a forma como a empresa público-privada Parque Expo S.A. conduziu o realojamento das famílias que ali moravam. Não há qualquer rasto daquilo que os documentos oficiais classificaram como “bairro africano da zona industrial”.

Enquanto planeava a construção de milhares de imóveis de luxo, o Estado forçou estes trabalhadores a viver em bairros de auto-construção (as ditas barracas), remetendo-os à “ilegalidade” em três frentes: a da cidadania, a do trabalho e a da habitação. Pela mesma lógica, as mulheres destes trabalhadores tornaram-se as empregadas da limpeza sem contrato que às 6h da manhã se preparam, ainda hoje, para limpar os escritórios e as suites do cidadão ideal por e para quem o Parque das Nações foi imaginado. 

Muito se escreveu ao longo das décadas sobre a Expo’98 e o Parque das Nações. Contudo, e surpreendentemente, pouco se havia feito para relacionar este projeto com o império que está estampado em toda a sua fachada. É uma lacuna grave, pois, enquanto momento charneira da chamada modernização de Portugal, é fundamental para compreendermos as ligações estruturais entre o neoliberalismo e as suas raízes nos imaginários e práticas coloniais. 

Numa era em que finalmente se começa a discutir a pátria, é altura de refletirmos seriamente sobre a afasia colonial da qual ainda somos reféns. Não basta falar de império e colonialismo apenas quando uma pessoa racializada sofre de violência explícita. É, sobretudo, importante compreender como as ideias de império e colonialismo se materializam nos dias de hoje como violências não-espetaculares, latentes, mas estruturantes do tecido social.

Baseado no ensaio Post-Colonial Mulligan: The Urban Renewal of Parque das Nações que recebeu Distinção no âmbito do mestrado Postcolonial Culture & Global Policy, pela Goldsmiths College, University of London.