Licenciado em Línguas e Literaturas Modernas pela Universidade de Lisboa. É escritor e trabalha na área da comunicação desportiva. Publica regularmente no Twitter e no blogue Modo:mudança

O financiamento do futebol no feminino

O sucesso desportivo e comercial do Mundial feminino aumentou as expetativas e ambições das mulheres que praticam futebol. Num momento de maior investimento na modalidade, as lutas das mulheres conquistam sentidos no desenhar do seu futuro no futebol.

Ensaio
14 Setembro 2023

A prática desportiva das mulheres fez-se sempre em situação de confronto. Às mulheres foi imputada incapacidade, incompetência e até perigo de saúde para praticar desporto, apesar da história estar cheia de exemplos que o desmentem. A afirmação dos direitos das mulheres encontrou, por outro lado, no desporto um território onde conjugar ação prática e teórica. É nesse território que nos nossos dias se joga a forma como a emancipação da mulher no desporto criará uma plataforma sustentável para o futuro.

O futebol tem uma história particular neste processo. Em Inglaterra, nos finais do século XIX e inícios do século XX, equipas de mulheres encheram estádios e entusiasmaram multidões, apenas para acabarem por enfrentar uma proibição à prática federada que acabou por se estender, dentro do mesmo argumentário machista, a grande parte dos países do continente europeu. Quando no início dos anos 1970 o futebol feminino voltou a demonstrar sinais de vigor com a realização de Mundialitos, ainda fora da égide da FIFA, em Itália e no México, as mulheres continuaram a enfrentar a mesma crítica e desvalorização, mas o reconhecimento da importância comercial das suas competições alertou os responsáveis do futebol mundial.

Ou seja, se a prática do futebol pelas mulheres é um campo de luta pela afirmação dos seus direitos, a forma como é apropriado pelas estruturas do futebol tende a ser pela criação de um produto financeiro atraente para o desenvolvimento da sua atividade. Depois de um Mundial feminino que foi um sucesso comercial e de audiência, onde as jogadoras receberam pela primeira vez um prémio que, em muitos casos, ultrapassou o seu salário anual, o regresso à realidade das competições nacionais relança a questão sobre o caminho que faz o futebol no feminino. Uma realidade que se consuma em velocidades bastante diferentes, não só de país para país, mas também dentro das próprias ligas domésticas.

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Oportunidade para investidores

Em agosto de 2022, a UEFA lançou um relatório sobre as oportunidades de negócio para o futebol no feminino, sublinhando o momento-chave que se vive no seu desenvolvimento. A relevância de uma base de adeptos que está em crescimento e com um potencial de multiplicação, a sua caracterização única, no que toca a juventude, progressismo e adaptabilidade aos meios digitais, a imagem positiva desenvolvida pelas atletas, a criação de novos quadros competitivos e mercados publicitários são elementos de base para a aposta a ser feita no futebol no feminino. 

Por outro lado, vários investidores acreditam hoje que o potencial de um euro investido no futebol feminino é muito maior, tendo em conta o contexto atual do mercado, do que o mesmo valor colocado no futebol masculino, que exige ações de maior monta e com menos impacto comparativo.

A realidade do futebol no feminino europeu tem caminhado para o domínio das competições femininas por equipas que têm estruturas profissionais masculinas.

Tem sido um longo percurso para que as mulheres encontrem plataformas onde desenvolver o seu futebol. O primeiro Campeonato Europeu realizou-se em 1984, o primeiro Mundial em 1991. A primeira competição oficial de clubes da UEFA teve que esperar por 2001/02 para ter lugar. A Liga Inglesa começou a formalizar-se no seu quadro atual em 2010; a NWSL, a Liga dos Estados Unidos, em 2012. 

Em Portugal, apenas em 2016/17 tivemos a primeira edição da Liga Feminina. Num espaço de cinco anos, passou-se de uma realidade onde apenas 7% das jogadoras dessa competição eram profissionais, para 46%. Ainda assim, a profissionalização faz-se a diferentes velocidades. A maioria dos clubes da Liga portuguesa ainda não são totalmente profissionais e, segundo dados de 2021, os salários situavam-se entre os 655 e os 8000 euros mensais - valores que contrastam brutalmente com os dos seus congéneres masculinos.

Se neste caminho os entraves à prática das mulheres vão sendo diminuídos, com o aumento de clubes com escalões de formação e o aumento de competições femininas, a chegada ao topo não afasta as melhores atletas de um quadro de precariedade. O investimento feito na Liga Feminina permitiu um movimento de regresso de algumas das melhores atletas a Portugal, bem como vem permitindo um muito melhor quadro formativo, com sinais visíveis na competitividade das seleções portuguesas. Segundo dados da Federação Portuguesa de Futebol (FPF), foram investidos 4,5 milhões de euros desde 2018/19, ao quais se acrescem apoios à arbitragem, formação, seguros e deslocações. No que toca às Seleções, se em 2011/12 contavam com um investimento de um milhão de euros, na última temporada foram investidos 8,5 milhões.

Prémios e sustentabilidade

A FPF tem vindo a aumentar o valor dos seus prémios de participação. Na Taça de Portugal feminina, os valores foram triplicados para a nova época, com o vencedor a receber 50 mil euros. Na Liga Feminina, estão delineados diferentes critérios, desde um valor base por participante, até à classificação, profissionalização das jogadoras, formação, habilitações da equipa técnica, presença de mulheres na estrutura e quantidade de adeptos nos jogos, entre outros. 

Ainda assim são valores que estão muito longe de garantir o orçamento de uma equipa profissional, segundo dirigentes dos principais clubes. Em Portugal, as competições femininas não geram valor a partir da venda de direitos de transmissão, nem existe ainda um mercado de transferências que potencie o lucro, como acontece na vertente masculina.

Em Portugal,  só em 2016/17 tivemos a primeira edição da Liga Feminina. Num espaço de cinco anos, passou-se de uma realidade onde apenas 7% das jogadoras dessa competição eram profissionais, para 46%.

Daí que se coloque um problema de sustentabilidade aos clubes. O aumento exponencial de praticantes em escalões de formação acaba por ser uma chave para encontrar financiamento dos escalões mais jovens, ainda que as equipas femininas continuem a lutar por espaços e horários com as suas congéneres masculinas. A formação em Portugal faz-se hoje, na sua maioria, em campos de relva sintética, muitos dos quais fruto de investimento público, o que coloca dificuldades na organização de horários. Por outro lado, as competições de formação feminina ainda enfrentam uma visão secundarizada em relação às das equipas masculinas, elemento cultural que continua a ter de ser combatido. É um processo lento, com efeitos ainda limitados na real transformação do panorama da modalidade.

A realidade do futebol no feminino europeu tem caminhado para o domínio das competições femininas por equipas que têm estruturas profissionais masculinas. Na Alemanha, o histórico Turbine Postdam desceu de divisão e das 12 equipas presentes na principal competição só uma não está nas duas divisões de topo do futebol germânico, o mesmo número de exceções que se encontram em França e Itália. Em Espanha são três as equipas que se apresentam como exceção. Em Inglaterra, todas as 12 equipas têm uma equipa masculina nas duas principais divisões. 

Portugal ainda está longe deste quadro. Em 12 equipas da Liga Feminina, cinco estão fora das competições profissionais masculinas. O que oferece dificuldades no que toca à profissionalização da estrutura, mas também pode permitir uma melhor adequação às especificidades do futebol no feminino.

Públicos, discurso, Estado

A existência de um público diferenciado do futebol no feminino serviu à criação de uma base de desenvolvimento do futebol nos Estados Unidos, onde a via universitária por onde passa a generalidade das jogadoras vem permitindo carreiras duais e um crescimento da presença de mulheres em lugar de decisão. Na Liga, nas equipas e entre as principais figuras do futebol feminino existe um discurso e uma visão feminista que permite uma consolidação dos seus direitos e dos investimentos feitos. 

Essa parece ser ainda uma lacuna sentida na Europa, onde apesar dessa diferenciação ser reconhecida pela UEFA na sua documentação sobre o desenvolvimento, não tem ainda grande corporização nas opções, quer da organização europeia, quer das respetivas federações.

Essa percepção tem consequências no discurso sobre o jogo, na forma de o publicitar e comunicar, bem como nas audiências que poderá desenvolver. O último Mundial criou condições de uma massificação que permitirá a existência de superiores meios financeiros para alocar ao futebol feminino, mas também há quem coloque reservas na forma como esses meios podem depois ser distribuídos dentro das estruturas do futebol. 

É bom não ignorar que o crescimento do futebol pode trazer desafios de diversidade na prática desportiva das mulheres, combatendo também na vertente feminina um certo afunilamento do investimento e apoio público apenas no futebol.

No último mês, o Conselho de Administração do Sport Clube União Torreense, sociedade desportiva que tem uma equipa na Liga Feminina e uma equipa masculina na Liga 2, chamava a atenção para a disparidade de meios que os seus conjuntos recebem da parte das respetivas organizações de competições. Uma crítica justa, mas neste momento descontextualizada do enquadramento do futebol feminino. A falta de uma voz feminista no tratamento da questão é uma lacuna com consequências negativas.

A existência de políticas públicas de incentivo à prática desportiva das mulheres é outro dos campos de financiamento alternativo. Uma parte dos municípios apoia de forma majorada as atletas de formação femininas. Mas o sucesso da formação não passa apenas pela participação. A formação de treinadoras e dirigentes, a adoção de políticas de integração e diversidade e a promoção da igualdade em todos os setores associados ao desporto são pontos essenciais para que a visão sobre o desporto feminino crie raízes para se desenvolver. Uma visão nacional para o desporto que também está em falta na forma como os apoios existentes não capacitam clubes e atletas para competir ao mais alto nível.

Liga feminina, mulheres treinadoras, desafios

Em véspera de se iniciar mais uma edição da Liga Feminina, o sentimento global sobre o futebol no feminino é positivo. A sensação de se estar a viver um período de forte crescimento permite ainda uma comparação com um quadro anterior onde a realidade era amadora e deficitária. Mas também se marca aqui a entrada de uma nova geração de jogadoras que já fizeram todo o seu percurso de formação com os olhos na possibilidade de serem profissionais de futebol. É nessas jogadoras que se concentram as questões que importam discutir para a construção do futuro.

Das 12 equipas que começam a competição, apenas duas são treinadas por mulheres. Curiosamente, as duas equipas que entram com favoristimo na nova temporada disputaram a Supertaça feminina na última quarta-feira (depois da escrita deste artigo). Filipa Patão, do Benfica, e Mariana Cabral, do Sporting, são bons exemplos do desenvolvimento de carreira no futebol no feminino. Ambas foram atletas amadoras, campeãs nacionais, desenvolvendo depois uma carreira de treinadora que as trouxe até ao topo em Portugal. Exemplos que precisam de ser replicados em maior número.

O investimento financeiro realizado no futebol no feminino vai continuar a crescer, criando oportunidades para que as dificuldades que se apresentam às mulheres possam ser combatidas. Para lá das oportunidades profissionais, é fundamental que, em termos de cuidados de saúde, planeamento de treinos e disponibilidade de equipamentos, se atinjam graus de adaptabilidade que permitam um melhor enquadramento da prática desportiva das mulheres. Ao mesmo tempo, é bom não ignorar que o crescimento do futebol pode trazer desafios de diversidade na prática desportiva das mulheres, combatendo também na vertente feminina um certo afunilamento do investimento e apoio público apenas no futebol.

São desafios que insistem em tornar o futebol no feminino num território de luta, no qual a emancipação da mulher também é um processo de reflexão sobre as opções tomadas nas políticas desportivas e sociais. Nunca é fácil entrar em campo para jogar à bola com a consciência de que se transporta este tipo de responsabilidade às costas. Mas também é certo que é exatamente essa consciência e conteúdo que melhor permitirão às mulheres do futuro praticar e viver o futebol da forma como o desejarem, e não da forma como lhes for imposto pelos benefícios que eventualmente trará ao mercado.