Licenciado em Línguas e Literaturas Modernas pela Universidade de Lisboa. É escritor e trabalha na área da comunicação desportiva. Publica regularmente no Twitter e no blogue Modo:mudança

A luta do futebol no feminino: do querer ao poder

Em 1920, os jogos de equipas de futebol feminino mobilizavam dezenas de milhares de pessoas. Houve homens que não gostaram e tudo fizeram para ostracizar o futebol feminino. Não conseguiram.  O campeonato europeu deste ano é mais uma prova disso mesmo.

Ensaio
7 Julho 2022

Com uma larga história de contrariedades impostas e paulatinamente ultrapassadas, o futebol feminino chega a 2022 a viver um momento de fulgor como nunca antes. Os estádios ingleses vão-se encher este mês de julho para ver seleções nacionais disputarem o título no Campeonato da Europa, mas que caminho fez o futebol feminino? Quais as dificuldades que enfrentou e continua a enfrentar?

A realidade profissional e o desenvolvimento de um posicionamento cultural das suas principais jogadoras permite encontrar um espaço de progresso para uma realidade que sempre foi combatida por preconceitos. Nesse âmbito, além de uma curta história das dificuldades encontradas pelas mulheres na prática do futebol, procuro uma introdução das linhas em discussão quando se fala de futebol feminino.

Uma história de contrariedades vencidas

As ruas em torno do estádio de Liverpool estavam a abarrotar. As jogadoras da equipa Dick, Kerr Ladies, uma das primeiras em Inglaterra, fundada em 1917, defrontou as St. Helen’s. Mais do que o resultado do jogo, o que surpreendeu foi a multidão que quis assistir: lotação esgotada com 53 mil pessoas a conseguirem um bilhete, mais uns milhares que terão ficado de fora. Foi o jogo de futebol feminino até então com mais plateia, o estádio estava ao rubro. Era uma nova era, pensava-se.

Dependemos de quem nos lê. Contribui aqui. 

Uma nova realidade que os homens dirigentes da Federação Inglesa de Futebol não gostaram. Em 1921, a organização mãe do futebol proibiu a cedência dos estádios das equipas inscritas nas suas competições para a prática de futebol feminino. A decisão deveria travar o crescimento do futebol feminino, mas a verdade é que os seus decisores estavam muito longe de imaginar que o impacto da decisão extrapolasse as suas intenções. 

Não se tratou de um mero bloqueio financeiro e estrutural à prática de uma modalidade que lhes fugia das mãos. Foi o início de uma série de iniciativas que, por toda a Europa, fizeram acompanhar o crescimento do futebol masculino de uma série de preconceitos sobre a presença das mulheres na prática deste desporto.

Só no início dos anos 1970 é que o futebol feminino começou a recuperar do efeito de uma medida que o relegou ao ostracismo. Para justificar as proibições da prática feminina apresentaram-se justificações médicas que se transformaram em verdade sem prova até aos nossos dias. Ao mesmo tempo, impedia-se que as mulheres praticassem a modalidade, levando-as a procurar alternativas para terem uma prática desportiva que desejavam. Ainda assim, o futebol feminino não deixou de existir, mesmo que muitas vezes o tenha feito de forma quase clandestina.

Em Inglaterra, apesar da proibição de usar os principais estádios do país, as equipas femininas foram desenvolvendo-se um pouco por todo o país. França e Itália, décadas mais tarde, bem como os países escandinavos, contribuíram para que o jogo tivesse alguma linha de evolução e, no caso italiano, tenha permitido mesmo algumas experiências profissionais nos anos 1970.

Para justificar as proibições da prática feminina apresentaram-se justificações médicas que se transformaram em verdade sem prova até aos nossos dias. Só no início dos anos 1970 é que o futebol feminino começou a recuperar.

A organização de competições ainda fora da égide da FIFA, como no México e em Itália, mostrava um outro lado: um interesse comercial na prática do futebol feminino, com a companhia Martini & Rosso a ser a principal patrocinadora das provas. Algo estava a mudar. 

O início dos anos 1970 marca, ao mesmo tempo, a procura de uma organização do futebol feminino dentro das organizações que comandam o futebol. No entanto, voltar a permitir o futebol feminino e incentivá-lo dentro das estruturas da UEFA e da FIFA acabou por ser um desafio maior que o prometido. De alguma forma, a capacidade de decisão deslocou-se para um enquadramento em que se passou a olhar a modalidade (na vertente masculina e na feminina) pelas lentes da comparação, levando a que se demorasse mais uns quantos anos até encontrarmos o futebol feminino a aproximar-se do seu máximo potencial.

O primeiro Campeonato da Europa de futebol feminino organizado pela UEFA aconteceu apenas em 1984. O primeiro Campeonato do Mundo feminino organizado pela FIFA teve a sua primeira edição oficial em 1991. Apenas em 1996 a modalidade se tornou olímpica. Por aqui se percebem as resistências e os desafios que sempre foram colocados às mulheres, para verem a sua prática desportiva reconhecida e, sobretudo, respeitada. Esse caminho continua a fazer-se ainda hoje. 

Depois de várias tentativas falhadas, nos Estados Unidos a competição profissional vai encontrando formas de sustentabilidade. Na Europa, países como Inglaterra, Espanha, França e Alemanha posicionam-se para oferecer condições de profissionalismo às suas jogadoras, percebendo-se também pelo nível crescente da Liga dos Campeões femininas a maneira como os meios estão a aumentar.

O crescimento mediático do futebol feminino e o nível de atenção que lhe é prestado atingem níveis nunca antes vistos, em vésperas de mais um campeonato europeu, disputado na Inglaterra.

À beira do início de mais um Campeonato da Europa de futebol feminino, a realizar-se em Inglaterra, o crescimento mediático e o nível de atenção prestado atingem níveis nunca antes vistos. O interesse dos adeptos é perceptível pela forma como acorreram à compra de bilhetes. Lançaram inclusive a discussão sobre se terão sido escolhidos os melhores estádios (e com capacidade suficiente) para abarcar tanto interesse. 

O ambiente de sucesso não deixa de trazer consigo, no entanto, uma série de reflexões que se vão tornando centrais na forma como o futebol se joga no feminino.

As questões que se colocam no futebol feminino

Na recolha de testemunhos orais realizada por Jean Williams no livro History of Women’s Football, o foco passa muitas vezes pela vontade de jogar futebol como o eixo onde se ancoram as memórias de imensas mulheres que chegaram à prática sem acreditar ou conhecer que existiam clubes com equipas femininas. O importante, acima de tudo, era conseguir encontrar uma forma de jogar. 

Essa vontade não deixa de estar em cima da mesa quando se fala com jogadoras como a internacional alemã Laura Freigang, que em recente entrevista ao jornal Kicker sublinhava que as mulheres desejam “a possibilidade de jogar futebol” sem roubar o espaço de alguém. 

O direito das mulheres ao jogo é ainda importante porque esse direito lhes foi negado durante tantos anos das maneiras mais preconceituosas, ao ponto de ainda hoje se ouvir muitas vezes que “o futebol não é para mulheres”. Ouvem-se ainda comparações de género para diminuir quem pratica futebol, seja nas provas masculinas como nas femininas.

O certo é que o profissionalismo está ainda muito longe de ser uma realidade constante e sustentável para as mulheres que se destacam entre as melhores na prática do futebol. E caminha a várias velocidades: se na Europa o momento atual é promissor, nos Estados Unidos a liga profissional feminina continua relativamente frágil e nem sempre competitiva ao nível salarial, apesar das leis de igualdade de género para a prática desportivo de Desporto Universitário.

Mesmo nos clubes onde existem profissionais ou semi-profissionais, as condições de treino, de acompanhamento e médicas estão ainda muito distantes da realidade masculina. 

Foquemo-nos na Europa. A Liga Inglesa é cada vez mais forte e competitiva, França (Paris SG e Lyon) e Espanha (Barcelona e Real Madrid) vivem momentos de investimento através dos principais conjuntos da modalidade. Na Alemanha, mantém-se um apoio que já vem de trás e que permitiu às seleções germânicas dominarem totalmente o panorama europeu durante décadas). Mas não chega, longe disso. 

Se sairmos da elite do futebol, a realidade muda radicalmente de figura e denuncia ainda as imensas diferenças existentes no tratamento dos praticantes conforme o género. A possibilidade de serem pagos prémios iguais aos convocados para as seleções principais só agora está em discussão e são ainda muito poucos os países que avançaram para essa realidade. Mesmo nos clubes onde existem profissionais ou semi-profissionais, as condições de treino, de acompanhamento e médicas estão ainda muito distantes da realidade masculina. 

Mais importante é numa realidade desportiva onde a tecnologia tem um enorme peso e contributo para o aumento do rendimento desportivo. Assim, as mulheres que praticam futebol continuam despojadas de condições para desenvolverem o seu jogo.

A forma como a presença da mulher na prática é vista tende também a ser um problema que carece de discussão e entendimento. Enquanto noutras modalidades já existiu um movimento para promover referências femininas, no futebol esse caminho está ainda a dar os primeiros passos. Será fundamental para uma cada vez maior sustentabilidade deste desporto o envolvimento de mais empresas e mais patrocínios que aproveitem o potencial, as ambições e os sonhos de tantas jovens que, pelo mundo inteiro, precisam de saber que é possível viver o futebol em todas as suas possibilidades.

O futebol feminino gostaria acima de tudo de ser apenas futebol, sem ser discriminado, mas a verdade é que a forma como foi marcadamente ostracizado levou a que encontrasse muitos outros significados para a sua existência. Daí que seja um território de afirmação de género que se constitui também como território de expansão de uma visão da modalidade que luta ativamente pela liberdade. As batalhas salariais e profissionais das jogadoras transformaram as principais caras da modalidade em autênticos símbolos feministas. 

A acusação preconceituosa do futebol feminino como meio para a masculinização da imagem feminina foi transformado num campo de afirmação de identidade. Exemplo disso é Megan Rapinoe, uma das mais destacadas jogadoras norte-americanas, ao tornar clara a sua abertura para que mulheres transgénero possam participar nas competições oficiais.

Aqueles que tentaram empurrar o futebol feminino para um beco sem saída falharam rotundamente no seu objetivo.

Aqueles que tentaram empurrar o futebol feminino para um beco sem saída falharam rotundamente no seu objetivo. É certo que o caminho tem sido duro, pleno de incompreensões, avanços e recuos, dificuldades que várias gerações de mulheres não deveriam ter passado. Mas também é certo que as mulheres souberam ultrapassar cada problema, encontrar uma solução. 

Este mês de julho, Inglaterra será um bom lugar para perceber como o mundo mudou. Estádios cheios, entusiasmo popular, bom futebol, figuras que solidificam a sua existência como referências para novas gerações, tudo isso será possível encontrar no Europeu de Futebol feminino. Elas querem e elas podem. Tal como o quiseram e fizeram em 1920. É só isso.