Médico neurologista e intensivista no Hospital de São José, ativista do movimento “Mais SNS” e sindicalista da Federação Nacional de Médicos (FNAM).

A luta dos médicos contra a propaganda de António Costa

A estratégia do governo tem sido apostar no desgaste da imagem dos médicos, tal como fez com enfermeiros e professores. O aumento de orçamento da Saúde sublinhado pelo primeiro-ministro tem servido para pagar aos privados. Na última década, os médicos perderam um quarto do salário.

Ensaio
14 Setembro 2023

Quando o tema são os médicos e as suas condições de trabalho, o campo onde se jogam argumentos resvala, invariavelmente, para o populismo e o ódio a uma suposta “elite”. “Mercenários”, “vendidos”, “arrogantes”. Claro que os temos, tal como os há entre os advogados, os professores, os políticos, os jornalistas... Mas, à semelhança de todos os preconceitos, este também cai por terra quando conhecemos a realidade por detrás dos números. E é dela que importa falar.

O primeiro-ministro, António Costa, tem sido exímio em cavalgar os preconceitos mais básicos para decidir políticas de degradação das carreiras dos vários profissionais. Foi assim com os professores, com os enfermeiros e está a ser assim com os médicos.

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O problema

“O orçamento do SNS aumentou 56% desde 2016”, António Costa, em Julho de 2023

A partir de 2013, o produto interno bruto (PIB) português retomou a trajetória de crescimento, com um aumento de 30 mil milhões entre 2013 e 2019. A despesa do Serviço Nacional de Saúde (SNS) também aumentou na última década em valores absolutos, mas a magnitude desse aumento foi inferior à do aumento do PIB. A despesa em saúde em percentagem do PIB diminuiu de 9,9% em 2009 para 9% em 2018. Ou seja, o “esforço orçamental” para a saúde foi-se reduzindo até 2019, porque o PIB aumentou mais do que o dinheiro orçamentado e gasto com o SNS.

Já em 2022, no período pós-pandemia, a despesa prevista no Orçamento de Estado para o SNS diminuiu 0,2%, em percentagem do PIB. Mesmo havendo mais dinheiro disponível em valor absoluto. E, de acordo com o INE, esse valor será ainda menor em 2023, com mais uma redução de 0,25%.

António Costa esquece-se ainda de outro fator: a inflação. Ou seja, atualizando os preços de 2010 para os de hoje, o aumento do financiamento do SNS fica-se por uns modestos 0,9%.

Costa usou sempre esta tática nos oito anos enquanto primeiro-ministro: anunciar grandes orçamentos (grandes??) que de pouco servem, porque o dinheiro não chega, efetivamente, ao SNS.

Toda esta trama orçamental adensa-se quando falamos em investimento. Estamos todos familiarizados com os vetos de gaveta do antigo ministro das Finanças Mário Centeno, ou das infinitas demoras na aprovação de planos de investimento no gabinete do atual ministro das Finanças Fernando Medina. O orçamento para 2023 contemplava 753,4 milhões de euros para investimento no SNS. Em Junho deste ano, estavam executados apenas 101,8 milhões, ou seja, 13,5%  do valor orçamentado. 

Já em 2022 estavam orçamentados 509 milhões, dos quais apenas 230 milhões foram executados, ou seja, 45%. Costa usou sempre esta tática nos oito anos enquanto primeiro-ministro: anunciar grandes orçamentos (grandes??) que de pouco servem, porque o dinheiro não chega, efetivamente, ao SNS.

Este é o contexto financeiro do SNS: além dos números em bruto que Costa anuncia, há desinvestimento, suborçamentação e cativações. A sua  tradução é simples: em 2022, 38,4% das despesas em saúde em Portugal foram pagas pelas famílias do seu bolso a prestadores privados, porque o SNS não foi suficiente.

O aumento de orçamento sublinhado pelo primeiro-ministro tem servido para pagar serviços aos privados ou soluções temporárias e precárias de emprego, que não resolvem o défice estrutural de médicos. Em primeiro lugar, para pagar convenções com os privados – serviços que o SNS não consegue assegurar, que neste momento rondam os 600 milhões de euros e crescem todos os anos. 

Em segundo lugar, para pagar a médicos tarefeiros, ou melhor, às empresas de trabalho temporário. Com as contratações de novos médicos reféns do Ministério das Finanças e com a falta de candidatos para os concursos que abrem todos os anos, ficam as escalas de urgência por preencher, problema que o governo tenta resolver contratando “médicos ao dia”, que não têm qualquer vínculo com a instituição onde prestam serviço, nem relação técnica e hierárquica com as “equipas da casa”. Também este valor aumenta todos os anos. 

Por último, com os pagamentos de horas extraordinárias. Cifradas em dezenas de milhões ao ano, elas são a demonstração da falta de médicos no SNS e o motivo do cansaço, desânimo e desistência que têm levado tantos a abandonar o SNS.

“Não sou do sindicato dos médicos, sou do sindicato dos portugueses (...) aumentar os salários dos médicos não faz parte das prioridades do governo” António Costa

De acordo com dados da OCDE, entre 2010 e 2022, a remuneração média mensal de um médico especialista em Portugal diminuiu de 4.072 euros ilíquidos para 3.029 euros. Atualmente o salário médio mensal líquido de um médico no SNS é de 1.665 euros.

Entre 2022 e 2023, com uma inflação de 8,6% (em abril), as remunerações na administração pública aumentaram apenas 4,7% e as dos médicos ficaram em metade desse valor. Num ano, os médicos tiveram uma perda de poder de compra de 5,4%. Entre 2011 e 2023 a redução do poder de compra dos médicos corresponde a 23%. Ou seja, em pouco mais de uma década os médicos perderam um quarto do salário!

Quando olhamos para a evolução dos salários dos médicos nos países da OCDE, entre 2010 e 2020, há apenas três países onde existe redução salarial – Portugal, Reino Unido e Eslovénia, sendo que Portugal é o país onde a redução é maior. A perda salarial dos médicos não é uma tendência internacional, é uma exceção.

“Houve um aumento líquido do número de profissionais, mais 25.000 do que em 2016” António Costa, Julho de 2023

Portugal tem 562 médicos por 100 mil habitantes, o segundo maior número de toda a União Europeia. Em 2022, estavam inscritos na Ordem de Médicos 60.396 médicos, dos quais apenas 42.277 estavam no ativo. No SNS, segundo o Ministério da Saúde, estarão a trabalhar 21.010 médicos e cerca de 10 mil internos em formação. Ou seja, apenas metade dos médicos inscritos estarão no SNS.

Depois de 2016, apesar do aumento de profissionais exaltado por António Costa, cresceram as listas de espera para cirurgia e consultas de especialidade e disparou o número de utentes sem médico de família. Sobre o caos nas urgências, que cresce de ano para ano, nem vale a pena falar. Algo não bate certo nas contas do governo! Mas, se em vez de propagandearmos números, olharmos para a realidade, é fácil de perceber. 

Desde 2009 que nenhum médico pode aceder ao regime de dedicação exclusiva, uma decisão tomada também num governo do PS, no qual, por um acréscimo salarial, o profissional trabalha exclusivamente para o SNS. Aliado à compressão dos salários, os médicos procuraram, cada vez mais, o poliemprego, acumulando funções no SNS com trabalho no setor privado, para completar o salário baixo do setor público. 

E isso foi sendo estimulado por várias medidas tomadas entretanto: a concentração de horas normais de trabalho na urgência (18h obrigatórias por semana), deixando menos tempo para consultas e cirurgias; a remuneração horária mais elevada para os médicos tarefeiros, em detrimento dos pagamentos baixos aos “médicos da casa”; e obviamente o brutal aumento do custo de vida, sobretudo a crise na habitação, que também atinge os médicos e os seus rendimento familiares.

Talvez o fator mais importante seja mesmo um assunto de que pouco se fala. Desde os anos 1990 que mudaram os estatutos dos hospitais, passando a empresas públicas. E com isso, os médicos, sobretudo os mais jovens e as gerações intermédias, passaram a ser contratados para o SNS com contratos individuais de trabalho. Isso significou que, não estando na carreira da função pública, aquilo que é já a maioria dos médicos, não tem atualizações salariais. Um médico contratado em 2009 tem o mesmo salário em 2023.

Num ano, os médicos tiveram uma perda de poder de compra de 5,4%. Entre 2011 e 2023 a redução do poder de compra dos médicos corresponde a 23%.

Não admira que os “estudos de produtividade” mostrem que ela caiu significativamente desde 2016 entre os médicos: com o poliemprego, fica curto o tempo disponível para o serviço no SNS. Há mais médicos, mas são piores as condições em que trabalham, o que se reflete no agravamento das listas de espera.

Este é o contexto por trás do aumento do número de profissionais: redução de salário, poliemprego, menor produtividade.

“Fazemos turnos extra, dormimos mal e longe da família, que nos tira anos de vida. A troco de quê? 50€ pela urgência?” testemunho de um médico interno à FNAM (Federação Nacional dos Médicos)

Esta é a realidade além dos números. Serviços depauperados de profissionais, que saem para trabalhar em exclusividade no setor privado, no estrangeiro ou, no caso dos enfermeiros, abandonam mesmo a saúde pública. Os que ficam têm de acumular o trabalho dos que saem. Multiplicam-se as horas extraordinárias, aumenta o assédio dos chefes de serviço e das administrações, o cansaço e o burn-out tornam-se convivas do dia a dia. Não é incomum ver internos fazerem horários semanais de 80, 90, 100 horas. E os turnos de 24 horas ou 36 horas de trabalho consecutivas são a regra. Fica a questão: quem quer ser atendido por um médico com 23 horas de trabalho acumulado?

Os médicos são os únicos trabalhadores do setor público que trabalham obrigatoriamente 40 horas semanais – trabalham mais dois meses por ano do que os restantes funcionários públicos; são obrigados por contrato a fazer 150 horas extraordinárias por ano; cumprem jornadas de trabalho 24 horas seguidas; não gozam os descansos compensatórios com prejuízo de horário, a que têm direito por lei. Tudo isto por um salário médio mensal de 1.665€ líquidos. Só para comparação, a renda média de um T2 em Lisboa está neste momento nos 1.500€.

As soluções

"Aprovámos no ano passado uma reforma fundamental, que foi o novo estatuto do SNS. A primeira medida do estatuto do SNS que implantamos foi a criação da direção executiva.” António Costa, Julho de 2023

Para o governo, a reforma da saúde é a criação de uma direção executiva e, mais recentemente, a transformação dos hospitais e centros de saúde em Unidades Locais de Saúde (ULS). Estamos para perceber o que faz exatamente a direção executiva, cujos estatutos ainda nem existem e já temos estudos de impacto que mostram que o modelo de organização das ULS não é superior ao modelo que temos atualmente, sendo pior em muitos indicadores e completamente indesejado pelos cuidados de saúde primários. 

Mas mesmo que ambas as mudanças fossem virtuosas, em nenhuma medida elas resolvem ou mitigam o problema central do SNS: a fuga de profissionais. A “grande reforma” do SNS anunciada pelo governo é apenas isto: pequenas mudanças organizacionais sem qualquer impacto no que realmente importa neste momento. São propaganda de quem não pretende mexer um milímetro que seja para fixar médicos no SNS.

"Há centenas de empresas deste género a funcionar em Portugal e o Governo não controla o que elas pagam aos médicos.” – resposta de Manuel Pizarro, quando questionado sobre empresas de recrutamento de médicos cubanos que pagam apenas uma parte do salário aos médicos, Julho de 2023

Para o ministro da Saúde, Manuel Pizarro, pouco importa as condições em que médicos estrangeiros são contratados para prestar serviço em Portugal. Estas declarações mereceram condenação pública da Amnistia Internacional. O ministro não consegue justificar porque precisa de contratar médicos estrangeiros, no segundo país da União Europeia que mais médicos por habitante tem. Não se trata aqui de questionar a integração de médicos estrangeiros que decidem trabalhar em Portugal, mas sim de um programa do governo para os ir, ativamente, recrutar. António Costa prefere contratar médicos estrangeiros a negociar melhorias nas condições de trabalho dos médicos que já trabalham no país e que são em número suficiente.

Os sindicatos estão, por isso, a dar a resposta que podem: mobilização de rua e greve! E fazem-no em condições altamente desfavoráveis, com manipulação de números e a chantagem do costume – que estão a prejudicar os doentes.

Dedicação plena. É uma arte conseguir vender uma proposta de regime de trabalho que retira direitos aos trabalhadores. Mas António Costa consegue-o. O assunto da “dedicação plena” foi um dos assuntos de discórdia que levou à queda do orçamento e do governo em 2021. 

A esquerda defendia a dedicação exclusiva, tal e qual como estava definida na proposta de António Arnaut e João Semedo, para a lei de bases da saúde e que foi aprovada em 2019, com votos do PS. No entanto, para fugir à essência da proposta, o primeiro-ministro inventou a “dedicação plena”, que para começar não exige sequer que um médico só trabalhe no SNS. 

Conhecemos este ano a proposta de Manuel Pizarro: o regime prevê apenas um aumento de salário base de 3,6%, ao qual se acrescentam suplementos de produtividade, portanto, variáveis e com quotas limitadas. Em troca, os médicos aceitariam um aumento da jornada de trabalho diário para as 9 horas, que o trabalho ao sábado passasse a ser “regular”, uma redução do descanso compensatório por trabalho noturno e o aumento da “obrigatoriedade” das horas extraordinárias de 150 para 250 horas anuais. Na mesma proposta anunciava a criação de Unidades de Saúde Familiar modelo B – centros de saúde com remuneração associada à produtividade, no entanto escondendo uma redução em 50% do valor dos suplementos.

As negociações com os sindicatos

Passaram-se 18 meses desde o início das negociações da carreira médica. E só no final de junho surgiu a primeira proposta por parte do ministro da Saúde: um aumento de 3,6%, um regime de trabalho com perda de direitos e cortes nos suplementos remuneratórios, para um grupo de profissionais que perdeu 23% de poder de compra em dez anos.

Parece uma brincadeira mas não é. É uma estratégia há muito anunciada: apostar no desgaste da imagem dos médicos junto do público, tal como fez com enfermeiros e professores. No orçamento para a saúde de 2023 estava previsto um aumento de apenas 2,3% em despesa com pessoal (um terço da inflação), ou seja, as negociações não eram encaradas com seriedade pelo governo. António Costa aposta na mesma estratégia de sempre.

Os sindicatos estão, por isso, a dar a resposta que podem: mobilização de rua e greve! E fazem-no em condições altamente desfavoráveis, com manipulação de números e a chantagem do costume – que estão a prejudicar os doentes. A Federação Nacional dos Médicos (FNAM), em particular, tem tido um comportamento exemplar nas negociações, com uma postura séria e responsável, apresentando propostas e contrapropostas a tempo e horas, mas convocando greves e mobilizações onde são possíveis.

Não nos restam a nós, médicos, outras formas de luta. É uma batalha pela comunicação de David contra Golias. Mas falta-nos uma peça neste puzzle: os utentes. Precisamos, cada vez mais, de construir alianças com o resto da sociedade e construir movimentos comuns em defesa do SNS. Capazes de grandes mobilizações, de ganhar maiorias sociais e se afirmarem como ator central na defesa do SNS.

O ponto central nesta discussão não são sequer os médicos e a sua carreira, mas a sobrevivência do SNS como serviço público. O essencial de um serviço de saúde não são os equipamentos caros ou as instalações modernas. São os seus profissionais e a sua diferenciação técnica altamente especializada que a prestação de cuidados de saúde de qualidade exige. Se um serviço não consegue reter os profissionais que forma, porque se deterioram as suas condições de trabalho, a solução só pode passar por negociar melhoramentos nas suas carreiras. E António Costa sabe disso. Mas prefere apostar na propaganda dos números. Se o sabe, então só podemos concluir uma coisa: não há muito interesse deste governo num SNS público e de qualidade.