Cofundador da República dos Pijamas, newsletter de economia e política. Membro do conselho editorial do Shifter.

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A estratégia eleitoral de Ventura é clara: prometer tudo e o seu contrário

O Chega não é apenas a continuação das ideias e das personalidades da direita. Projetos tanto irrealistas como indesejáveis são uma marca desse campo político há muito. Ventura tenta cavalgar a raiva e o descontentamento latentes na sociedade portuguesa.

Ensaio
22 Fevereiro 2024

Antes de o Chega garantir a sua presença no parlamento português, Portugal era muitas vezes citado como parte do excepcionalismo ibérico. Ao contrário de outros países da Europa, Portugal (a par com Espanha) retinha uma memória histórica dos tempos do fascismo, e assim a extrema-direita tinha poucas hipóteses de singrar na política nacional. Afinal, apesar de uma presença muito esporádica nos media durante vários anos, Partido Nacional Renovador (PNR) – entretanto renomeado “Ergue-te!” – ia pouco além de momentos comicamente tristes.

Em menos de uma década, o Chega liderado por André Ventura tornou-se o terceiro maior partido na Assembleia da República. Neste momento, apesar da pouca fiabilidade das sondagens, a hipótese de ter um resultado semelhante ao do PSD não deve ser descartada. Ventura tenta capitalizar essa ideia quando afirma que a luta para governar Portugal é a três.

As recentes propostas económicas do Chega podem parecer um rompimento com o legado de contas certas que a direita diz valorizar. No entanto, traçando o percurso do partido de extrema-direita, vemos que não deve nada ao socialismo, e que é na reconfiguração das direitas após as derrotas de Pedro Passos Coelho que encontramos a sua alma. É na ambiguidade e na arbitrariedade que Ventura encontra a sua fórmula, cavalgando o ressentimento. 

Vindo do coração da direita

No último congresso do PSD, Luís Montenegro afirmou que “não pode ser mais lucrativo estar em casa a receber subsídios do que trabalhar”. Enquanto comentadores associaram esta frase a uma aproximação eleitoral ao partido de André Ventura, devemos recuar mais de uma década para entender o que este slogan significa realmente na atual reconfiguração do campo da direita

Na campanha para as eleições legislativas de 2009, Paulo Portas percorreu feiras referindo-se ao Rendimento Social de Inserção (RSI) como um "subsídio à preguiça". Em 2010, num congresso do PSD, Pedro Passos Coelho apontou aqueles que, sem encontrar emprego, “ficam em casa à espera do subsídio, e que vivem do subsídio”. Mais tarde, e em campanha, o mesmo líder partidário disse a uma desempregada que “uma enxadazinha também lhe fazia bem”. Em 2011, o par Portas e Passos Coelho formou governo, naquilo que ficou conhecido como o governo da Troika e que tentou o rebranding sob o slogan Portugal à Frente (PaF) na sua tentativa de reeleição, em 2015.

A imagem desta coligação ficou irremediavelmente danificada. Durante a liderança Passos Coelho-Portas, a economia portuguesa retraiu-se durante três anos consecutivos, o desemprego ficou acima dos 16% (e o desemprego jovem ultrapassou os 42%), deu-se uma vaga de emigração como já não se via há décadas (mais de 134 mil só em 2014), houve constantes cortes nos serviços públicos, decretou-se o congelamento do salário mínimo, as privatizações tornaram-se a regra, entre outros flagelos. Apesar de em 2015 ainda conseguir uma vitória, o funeral da PaF foi confirmado mais à frente.

É por esses motivos que, agora, os seus herdeiros diretos, Luís Montenegro e Nuno Melo, decidiram resgatar o nome de Aliança Democrática (AD) dos anos 1980, uma coligação que teve como objetivo isolar a extrema-direita de então. Para evitar litígios com o Partido Popular Monárquico (partido menos votado em 2022, com 260 votos), a PaF integrou o partido na campanha, impondo uma mordaça ao seu líder, Gonçalo da Câmara Pereira, notável por justificar a violência doméstica, assumir querer derrubar a República, entre outros episódios comicamente tristes.

Ao contrário de outros países, a extrema-direita não surgiu durante a crise das dívidas soberanas, ou mesmo na sequência da apelidada crise dos refugiados, em 2015. Apareceu quando foi necessário manter à tona o legado da PaF. Por isso, 2017 é o ano zero do Chega. Em parte pelo surgimento de André Ventura como figura política de relevo, com a sua candidatura autárquica em Loures, mas acima de tudo pela morte do passismo como projeto unificador da direita portuguesa. Se nas legislativas de 2015 o passismo ficou em primeiro, apesar de não conseguir formar governo, as eleições autárquicas de 2017 resultaram numa derrota humilhante para o PSD. 

Passos Coelho liderou nos dois anos seguintes uma oposição ineficaz, atrelada à ideia de que a geringonça (o governo mais bem avaliado deste século) era um golpe constitucional e que iria levar o país para a bancarrota - “Vem aí o Diabo”. O desfecho foram os resultados humilhantes do PSD por todo o país, destacando-se os casos de Lisboa e do Porto, onde nas duas cidades juntas teve menos votos do que Assunção Cristas, do CDS, em Lisboa. A derrota trouxe uma hegemonia municipal ao PS sem precedentes e ditou o afastamento de Passos Coelho da liderança do partido. Se os portugueses tinham dúvidas sobre se o passismo devia ser despejado em 2015, 2017 confirmou que conviviam bem com a direita fora do poder. 

Depois de falhar a conquista da autarquia de Loures nessas eleições com o PSD, André Ventura abandonou o cargo de vereador em 2018. Fê-lo para dar forma ao Chega. Ainda antes disso, em 2017, chegou a sondar a possibilidade de desafiar Rui Rio (visto como oposição interna ao passismo) pela liderança do partido. Já o outro filho do passismo, a Iniciativa Liberal, ganhou fôlego. Carlos Guimarães Pinto chegou à liderança, trazendo consigo vários quadros da órbita de blogs de direita, como o Insurgente e o Blasfémias, e outros ligados a quadros institucionais da PaF (como Cotrim Figueiredo, Pedro Silva Martins ou Henrique Gomes). Seria com estes que alcançaria o parlamento. As coincidências e as diferenças entre os dois partidos tornam impossível contar a história do desenvolvimento do Chega sem falar dos liberais.

As eleições legislativas de 2019 e 2022 confirmaram a reconfiguração da direita: os setores mais radicais da burguesia portuguesa entenderam que o duo PSD-CDS seria incapaz de tomar de novo o poder, pelo menos sem uma reaproximação ao centro. 

Nesse sentido, o súbito vigor da IL, até à altura quase insignificante, e a criação do Chega cumpriram duas funções. Em primeiro e no imediato, domesticar o PSD, condicionando uma liderança de Rui Rio que procurasse o centro político e denunciasse o legado de Passos Coelho. Em simultâneo, tentar abordagens políticas que, apesar de já serem ensaiadas no PSD e CDS, precisavam de novos projetos para serem levadas às latitudes desejadas. Mais do que um fenómeno de competição eleitoral, a pulverização da direita sinalizou um experimentalismo em que cada parte se complementou para tentar expandir a sua base social sem perder os fiéis da PaF. Tal como admitido por Ventura no debate televisivo com Montenegro, “saí do PSD para que a direita tivesse maioria”.

Enquanto o Chega é um complemento ao PSD, de onde Ventura saiu depois de se ver sem espaço para competir pela liderança contra Rui Rio, devemos olhar para as bandeiras da IL para entendermos melhor o desenvolvimento do Chega.

Contra os ciganos, contra os impostos e estatizante convertido

Seguindo as deixas que usou na campanha de Loures, onde fez o seu marketing político apontando baterias estigmatizantes à população cigana, tendo por base um estudo deturpado ou mesmo falso que nunca se viu, André Ventura introduziu o Chega como o partido “dos portugueses de bem”, slogan copiado do bolsonarismo. Focar-se na população cigana, insultar os habitantes do Bairro da Jamaica, no Seixal, fazer bullying contra uma deputada negra, entre outras iniciativas xenófobas e racistas, foram o cartão de visita com que o partido de extrema-direita chegou à praça pública. Mas um incidente obrigou a sua cúpula partidária a repensar a estratégia.

Em 2019, foi trazido ao de cima que o curtíssimo programa do Chega previa, como descrito pelas palavras do comentador Daniel Oliveira, "o fim progressivo do Serviço Nacional de Saúde, a privatização total da escola pública (…), que o Estado se deve livrar dos edifícios das escolas, defende a privatização dos hospitais e dos centros de saúde, é contra que a TAP seja do Estado, o Metro, a Carris, a CP, acha aliás que nada, o Estado não deve ter nenhuma empresa nem garantir nenhum serviço".

A atenção pública ao programa de 2019 foi um embaraço para o Chega. Depressa deixou de estar disponível, e a sua direção tentou apagá-lo da memória coletiva chegana. O incómodo em apresentar a destruição do Estado era óbvio. Já durante a presente campanha eleitoral, a declaração de princípios do Chega, em que um dos elementos era “o combate ao atual sistema de extorsão fiscal transformado em terrorismo de Estado”, também se esfumou, sendo substituída pela página com o atual programa do Chega.

Se ser um partido que se limitava a usar politicamente o racismo não foi suficiente para o PNR singrar, o Chega também não teria a força que hoje tem se não fosse uma cópia da Iniciativa Liberal com uns toques (bastante) fortes de racismo.

Entre esse período e recentemente, o primeiro passo da estratégia foi falar o mínimo possível de economia. Apesar de ser uma herança do passismo, os quadros do Chega fazem de conta ter vivido num universo paralelo durante os anos da Troika. As vendas de ativos públicos e privados a estrangeiros durante a era Passos Coelho nunca fizeram parte dos seus discursos. Quando confrontado em debate pelo secretário-geral do PCP, Paulo Raimundo, sobre o papel das privatizações na corrupção, grande bandeira retórica do Chega, Ventura limitou-se a dizer que existe tanto no privado como no público, e apontou o dedo às autarquias. 

A lealdade à causa entreguista é tanta que, mesmo nos casos em que foram vendidos a capitais chineses (privados e estatais), o Chega opta pelo silêncio, não seguindo a estratégia que permite combinar xenofobia com anticomunismo, popular entre a direita trumpista nos Estados Unidos. Num debate parlamentar de 2020 sobre os CTT, André Ventura fugiu (fisicamente) de discutir o que achava sobre a alienação de uma empresa pública privatizada e que teve o seu serviço degradado. Esta performance resume o modo de operar de Ventura em relação ao legado passista. Sempre que tem uma oportunidade, o líder do Chega elogia Passos Coelho, recorrendo a expressões como “assertividade” e “pragmatismo”, como se o antigo líder do PSD tivesse governado quatro anos sem medidas específicas.

Se existissem dúvidas sobre se as propostas que surgem à esquerda, como a de limitar a venda de casas a não residentes constituem ou não xenofobia, o Chega dissipa as dúvidas ao nunca a ter apresentado e querer mesmo reintroduzir os vistos gold. Mostrando a sua lealdade tanto ao capital como à xenofobia de facto, aponta os imigrantes (muitos a viver em condições de sobrelotação, garantindo grandes rentabilidades aos proprietários, de forma ilegal) como a causa da crise da habitação.

Embora o programa de 2019 tenha sido apagado, não é equivalente a nunca ter existido, ou ser politicamente neutro. Para os setores da burguesia que apoiam o Chega, o facto de o apagão do programa ter sido seguido de timidez nas questões económicas foi uma sinalização importante. Ficaram a entender que podiam contar com o partido de Ventura, mesmo que agora apareça com uma postura aparentemente mais intervencionista.

Um dos grandes financiadores do Chega é a família Champalimaud, grande grupo económico do pré 25 de Abril e que durante o PREC apoiou forças contra revolucionárias, hoje com uma posição forte nos privatizados CTT, o que torna notável o encontro entre o passado e o presente. Embora outros tipos de apoios sejam mais difíceis de documentar a partir da informação pública, não devemos considerar a presença desproporcional do Chega nos meios de comunicação imune a este fator.

No entanto, Ventura não se conformou com não ter uma opinião sobre assuntos económicos. Como notado pelo comentariado, a retórica racista perdeu peso no Chega, com o partido a apresentar-se como o partido anti-corrupção, narrativa clássica da extrema-direita. Para isso aproveitou a boleia de casos e casinhos que iam afetando PS e PSD. A outra porta de reentrada para os assuntos económicos foi menos reparada. 

Como segundo pilar da estratégia, o Chega parou de fazer propostas económicas para dar espaço a propostas sobre as suas bandeiras, às quais atrela propostas económicas. O grande exemplo foi adotar a agenda da IL sobre a descida de impostos, mas sendo muito menos específico nos detalhes, sugerindo financiá-la com o confisco de bens de um pacote anticorrupção impossível de definir. A proposta recente de cortar em “400 milhões” em fundos de “ideologia de género” segue a lógica que foi sendo ensaiada.

O partido de extrema-direita aprendeu uma lição valiosa com o fiasco do programa de 2019. Além de reescrever as propostas do resto da direita, deixando-a desgastar-se no debate público, atrela-as às suas “causas fraturantes”. O terceiro, e talvez o pilar mais importante do Chega, foi habituar-se a comunicar por sinais, evitando ser específico. Tenta assim agradar a gregos e a troianos.

O que quer o Chega dos imigrantes

A posição do Chega sobre os emigrantes não é só uma das suas grandes bandeiras, é também, apesar de o discurso e o pensamento divergirem, onde a verdadeira direção das propostas do Chega é mais fácil de perceber.

Celebrou-se em vários setores da sociedade a estatística de que os “imigrantes deram à Segurança Social sete vezes mais do que receberam”. Esta notícia foi tomada como uma vitória sobre aqueles que cospem desprezo e ódio sobre os imigrantes. Embora esses números ajudem a desfazer mitos de que os imigrantes vivem "à custa do Estado e do dinheiro de quem trabalha", resumi-los ao suposto “lucro” que trazem para o país é jogar a favor dos argumentos de Ventura.

Ao propor o “crime de residência ilegal”, revogar de mobilidade para com a CPLP e falar de fazer quotas para emigrantes de acordo com o seu nível académico, o que o partido de extrema direita diz querer e o que realmente quer não coincidem. Mesmo apresentando-se publicamente contra a presença de imigrantes, o partido de Ventura compreende bem (e talvez melhor do que alguns dos seus opositores) os argumentos de que o atual modelo económico do país não poderia funcionar sem os imigrantes. Nem é preciso o Chega sair da sua bancada parlamentar para encontrar um exemplo em que a imigração foi usada pela burguesia nacional para defender as suas margens de lucro.

Os fluxos de migração têm sido impelidos pelo modelo de desenvolvimento do país, assente no turismo e noutros setores de salários baixos, como a agricultura. Como o economista Diogo Martins menciona, grande parte da recuperação económica portuguesa na era de António Costa foi baseada no turismo. A “massa de desempregados” deixada pelos anos de austeridade permitiu o crescimento de um setor que precisa de muita mão de obra com baixos salários. Mas a expansão desse modelo mostrava as suas limitações já antes da pandemia de covid-19, dado a economia portuguesa se aproximar do pleno emprego.

Este processo levou o Estado a iniciar políticas ativas de atração de mão de obra estrangeira (e barata) para o setor privado. Procurar trabalhadores entre os Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa foi uma tarefa conduzida pelo Ministério do Turismo nos últimos anos, a pedido dos representantes da burguesia hoteleira que lamentavam a “falta de trabalhadores”. 

Ao contrário do que dá a entender, e que muitos interlocutores levam à letra, André Ventura não pretende reduzir a imigração, mas redefinir as condições (já precárias) com que é feita. Apesar de não hesitar em criticar as governações de Costa, o líder do Chega nunca questionou a peça central da aposta desenfreada no turismo, em prejuízo de atividades mais dinâmicas. Em público, quando tem de casar a tensão inerente entre um discurso hostil à imigração e os interesses da burguesia nacional, Ventura aponta para uma suposta subsidiodependência dos portugueses que obriga os empresários a contratar estrangeiros. De uma só vez, o líder do Chega mostra a sua lealdade aos setores empresariais e ataca ferozmente as classes populares nacionais. 

A posição do Chega pode ser melhor resumida sob a frase proferida "uns são bem-vindos, outros não", ou reajustando: o Chega acha que os imigrantes são bem-vindos para certas coisas (sob certas condições), mas para outras não.

Ao representar certos setores da burguesia nacional, e nunca com as classes trabalhadoras em mente, o partido pretende sobretudo renegociar os termos que regem a vida dos imigrantes no país. As propostas de Ventura não iriam no sentido de restringir a imigração, mas de reduzir os direitos com que é feita. Cortar no acesso dos imigrantes ao Estado Social, reduzir os seus direitos laborais e vedar-lhes os direitos políticos é o coração da agenda de Ventura. 

Dia 17 deste mês, após quase meia década de existência e em plena campanha eleitoral, Ventura disse sem rodeios o que pretende para os imigrantes. Se a recente proposta chegana em que apoios sociais para imigrantes "apenas possam ser pedidos e atribuídos passados cinco anos mínimos de contribuições desses imigrantes em território português" fosse avante, certamente o “lucro” que produziram para o país seria maior.

No debate contra Mariana Mortágua, Coordenadora Nacional do Bloco de Esquerda, Ventura mencionou a Suíça como exemplo de política de imigração. Noutras intervenções aludiu que os imigrantes em Portugal têm de ser respeitadores, como os portugueses são na França e no Luxemburgo. Parte desta tática, sugere de forma silenciosa que os imigrantes em solo nacional devem ter um estatuto de trabalhador de segunda e percorrer o caminho das pedras que os portugueses passaram nos Bidonvilles parisienses, ou na agricultura em solo suíço. A referência a países como a Suíça e o Luxemburgo serve um segundo propósito. Estes países definiram os seus Estados Sociais e sistemas políticos com regras que tornam a vida particularmente hostil para os trabalhadores de baixos rendimentos e pouca estabilidade laboral, maioritariamente trabalhadores imigrantes. 

O sistema de saúde suíço, o segundo mais caro do mundo considerado desenvolvido, baseado em seguros privados obrigatórios, funciona como um imposto sobre o desemprego e a pobreza, convidando qualquer imigrante desempregado a sair do país. O Luxemburgo, tendo um Estado Social mais universal, baseia-se num sistema político em que o direito ao voto é bastante restrito. Apenas os luxemburgueses (cerca de metade da população) têm direito ao voto, deixando uma grande parte da classe trabalhadora (imigrante) sem representação. Esta situação não é um mero acaso histórico, os luxemburgueses votaram massivamente contra a expansão do direito ao voto a estrangeiros.

Os paralelos com os casos da Suíça e do Luxemburgo, exemplos de liberalismo para uns e de cosmopolitismo para outros, revela que, apesar da atual oposição, vários setores da sociedade “respeitável” portuguesa estão dispostos a convergir com muito daquilo que Ventura propõe.

No tema dos serviços públicos, ao querer discutir assuntos como “a pressão” dos imigrantes na Saúde, Ventura prospera num contexto de desinvestimento nos serviços públicos, com crises quase permanentes no ensino, na saúde e na habitação. O cenário presente de austeridade orçamental, sempre à procura de excedentes, abre novas portas à extrema-direita. Ao contrário do racismo e da xenofobia explícitos, a narrativa de disputa de recursos públicos escassos é terreno fertil para conquistar eleitores genuinamente preocupados com o funcionamento do Estado Social. Direitos como o salário mínimo e prestações sociais dos emigrantes também são postos em cheque quando o Chega diz querer tornar mais difícil estarem em Portugal em conformidade com a Lei.

Quando a extrema-direita projeta um horizonte em que se torna difícil os imigrantes terem direitos políticos como o voto, aponta a consagração de um regime dual, no qual seriam ainda menos capazes de se representar politicamente. Uma massa de trabalhadores sem direitos laborais, sociais e políticos sempre foi uma proposta tentadora para a direita mais radical. De certa forma, representaria uma expansão da precarização dos estafetas (contestado judicialmente) para a maioria da mão de obra estrangeira. À medida que se vão constituindo como uma parte cada vez mais significativa da força de trabalho, este facto tem cada vez mais consequências políticas.

Fundamentalmente, ao enfraquecer a coesão entre as massas populares, com boa parte a ser composta por cidadãos de segunda, as condições políticas do pós 25 de Abril que deram origem ao Estado social são minadas. Dá-se espaço para enterrar definitivamente os serviços públicos universais. O projeto de destruição do regime que saiu de 1974, há muito ambicionado por vários setores da direita, pode tornar-se mais próximo.

Embora para vários portugueses comuns a perspectiva de uma força laboral sobreexplorada possa parecer tentadora, o realinhamento do equilíbrio social e o esmigalhar do setor público representaria uma perda para a esmagadora maioria da população.

 

Great minds think alike

No debate entre a IL e o Chega, Rui Rocha optou por um tom agressivo, ao classificar as recentes propostas do Chega como socialismo. O líder da IL referia-se a iniciativas anunciadas como a subida das pensões, aumentos para profissionais de saúde, reposição de carreiras para professores, suplementos para forças de segurança e impostos sobre os lucros da banca. No tema da imigração, a agressividade de Rui Rocha eclipsou-se.

Como apontado por Daniel Oliveira, e apesar da bolha mediática decretar Rocha como vencedor, Ventura tem-se mostrado mais eficaz, em parte porque consegue fazer chegar as suas propostas além da elite. 

Dos dois projetos que foram lançados em 2017 para reconquistar o poder à direita, o Chega mostra-se o mais concretizador, embora a IL tenha conseguido trazer a descida de impostos (dos mais ricos) para o centro do debate, o que não é uma conquista desprezável. Apesar de a comunicação social se dedicar a escrutinar as recentes propostas do Chega, apontando gralhas flagrantes, falta de coerência e irrealismo, o partido de André Ventura não introduziu um novo ataque ao rigor intelectual - esta prática já era comum à direita.

Apesar da suposta viragem de André Ventura para o estatismo, com propostas altamente escrutinadas para um partido de direita, ele não inovou ao apresentar propaganda irrealista. A criação de mitos por Pedro Passos Coelho e Paulo Portas já vem de longa data - em 2010 Portas acenava com soluções quase mágicas para os défices orçamentais, baseadas em cortes da despesa sem vítimas. Em anos mais recentes, o espaço público foi contaminado pela propaganda da IL, cimentada em mitos sobre o suposto liberalismo do centro da Europa e do socialismo de Portugal, nos seus gráficos descabidos e na mitologia sobre as virtudes das descidas de impostos. A Aliança Democrática liderada por Luís Montenegro socorre-se de 17 economistas para apresentar um programa irrealista baseado em números de crescimento do PIB para lá de fantasiosos. Os planos recentes de Ventura não cortam com a direita, dão continuidade às suas práticas de fraude.

Mais do que as propostas trazidas, a diferença entre Ventura e Rocha é que Ventura não acredita naquilo que diz, nem espera que o seu eleitorado encare as suas propostas com seriedade. Após o fiasco do programa de 2019, trazer ambiguidade para a mensagem mostrou-se ser a melhor estratégia para relançar a direita e expandir a sua base social. 

O partido de Ventura promove em simultâneo a extinção do IMI, descidas de IVA, aumentos de reformas, entre tantas outras medidas avulsas. É óbvio que boa parte nunca seria cumprida por parte do Chega, mas não se trata apenas de fraude. Ao ser ambíguo, Ventura vai ao encontro de uma realidade que o partido de Rui Rocha sempre se recusou a admitir: não existe uma agenda liberal para tirar o Estado da economia. Mesmo que os próprios não o entendam, os liberais não procuram soltar a economia das mãos do setor público, mas apenas redefinir o papel do Estado a favor dos mais ricos. 

Ao tentar uma aparência de rigor intelectual, os liberais vêem-se ultrapassados pelo Chega, que tem um caráter menos elitista. Dias depois de dizer que vem para dar poder à direita, Ventura tentou esvaziar a dicotomia política afirmando que “não penso em esquerda ou direita”. Enquanto a IL fez um ensaio de se dizer nem de esquerda nem direita, apelando às suas posições sociais, o Chega tenta o mesmo, mas sem se preocupar em fazê-lo com algum fundo de bagagem intelectual. Se o argumento não trouxer proveitos políticos, é logo abandonado, como muitos outros. 

Ao longo desta campanha, se propostas de aumento dos gastos públicos perde fôlego, Ventura rapidamente experimenta falar dos impostos durante alguns dias. Ir atirando barro à parede mostra-se mais eficaz do que um programa consistente ao longo dos anos. Por exemplo, a castração química era uma causa do Chega, mas hoje está no fundo do programa, talvez para voltar subitamente num par de meses.

Dizer tudo e o seu contrário é a forma de moldar uma agenda política baseada na arbitrariedade. O racismo e o nacionalismo de lapela preenchem o vácuo deixado para enfiar alguma ideologia. Arbitrariedade é mesmo a palavra chave para entender o projeto político de Ventura. 

Em primeiro lugar, a arbitrariedade concreta para beneficiar a burguesia que o apoia, sem ter de se limitar às balizas da liberalização económica. Em segundo, a arbitrariedade percepcionada a favor do eleitor comum, pois para um público pouco exigente e descrente em outras alternativas, é uma fórmula eficaz, mesmo que a sua concretização seja um horizonte longínquo.

O sucesso de Ventura e a estagnação da IL provam que o caminho para implementar o projeto que a direita ambiciona passa por afastar-se definitivamente da seriedade programática, usando o Estado de forma arbitrária para defender os interesses dos mais poderosos. Ao contrário do que é dito, as novas propostas de Ventura não são versões de programas do Partido Comunista Português ou do Bloco de Esquerda. São, sim, o fim de uma timidez em se usar o Estado para o que lhe é conveniente sem as amarras que a seriedade obriga.