Doutorando em Economia na Universidade de Massachusetts – Amherst.

A persistência de uma economia frágil: o que esta geringonça nunca poderia resolver

A convergência parlamentar à esquerda seria capaz de abrir um novo caminho de desenvolvimento para Portugal, e esta ideia deve ser acolhida com ceticismo. O que não implica que não se reconheça que se tratou de uma concretização política de grande importância, cujo balanço histórico é positivo e motivo de orgulho. 

Ensaio
24 Janeiro 2024

A convergência parlamentar à esquerda mereceu amplo apoio da base social dos partidos que a constituíram. Mas persistem desentendimentos sobre o seu real potencial transformador. Parte dessa base social acreditou que se tratava de uma nova forma política sustentável no tempo, capaz de abrir um novo caminho de desenvolvimento para Portugal, ancorado numa visão mais solidária, trazida pelo diálogo à esquerda.

Este artigo procura argumentar que essa interpretação deve ser acolhida com ceticismo. O que não implica deixar de reconhecer que foi uma concretização política de grande importância, cujo balanço histórico é positivo e motivo de orgulho. Foi a Geringonça que permitiu estancar a vertigem privatizadora da direita, alcançar medidas públicas de teor universalista contrárias à alocação hegemónica do mercado (como o novo regime dos passes sociais, os manuais escolares gratuitos ou a redução de propinas) e uma maior equidade no processo de crescimento, sobretudo por meio dos aumentos do salário mínimo.

No entanto, a convergência de esquerda não resolveu nenhum dos problemas estruturais do modelo de desenvolvimento português. E nem poderia ter sido de outra forma: o entendimento com o Partido Socialista pressupôs que BE e PCP aceitassem fazer parte de uma solução onde nenhum dos constrangimentos europeus poderia ser contestado e é neles que assenta grande parte dos obstáculos ao desenvolvimento das economias periféricas.

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As causas da retoma da economia portuguesa

Somos com frequência levados a pensar que as ações de quem ocupa elevados cargos de responsabilidade política têm sempre a capacidade de alterar o curso contemporâneo dos eventos. No caso de uma pequena economia aberta com elevados constrangimentos de política macroeconómica, e ausência de autonomia monetária e cambial, essa é uma conclusão de veracidade improvável.

A recuperação da economia portuguesa deve ser entendida como um triângulo virtuoso de três eventos exógenos: a mudança drástica de política monetária do BCE, o bloqueio do Tribunal Constitucional às medidas adicionais de austeridade do governo e a expansão da procura externa para as atividades turísticas e do imobiliário.

A mudança de política monetária é a mais importante das causas apontadas. Com o seu discurso de 2012, onde garantia “fazer o que fosse necessário” para manter a integridade da zona euro, Mario Draghi criou um ponto de viragem na crise da moeda comum.

 Foi a Geringonça que permitiu estancar a vertigem privatizadora da direita, alcançar medidas públicas de teor universalista contrárias à alocação hegemónica do mercado e uma maior equidade no processo de crescimento. 

As taxas de juro dos países periféricos convergiram com os níveis das respetivas obrigações de dívida pública dos países do norte da Europa. Isso permitiu que os Estados sob intervenção externa, como Portugal, regressassem aos mercados, potenciando uma inversão de expetativas que favoreceu a atividade económica interna, com a dissipação do risco de incumprimento da dívida portuguesa. Foi este o principal fator que permitiu a Portugal financiar nos mercados a sua dívida pública e não recorrer a um novo programa de austeridade.

Qualquer tentativa de relação causal entre o cumprimento zeloso do programa da Troika e a diminuição das taxas de juro representa uma equívoca tentativa de amnistia histórica daqueles que apresentaram o programa de austeridade como uma inevitabilidade, quando estava ao alcance do BCE poupar o sacrifício social a que a sociedade portuguesa foi submetida.

Ao choque positivo de expetativas desta medida somou-se a ação do Tribunal Constitucional, que em 2012 e 2013 chumbou medidas que se traduziriam no aprofundamento dos cortes salariais da função pública, das pensões e do subsídio de desemprego. Embora seja difícil quantificar o real efeito dessa decisão, não se pode negligenciar o efeito de uma garantia judicial quanto aos limites da trajetória descendente que o governo era capaz de impor e, por conseguinte, aos choques de procura negativa a que a economia poderia ser sujeita no futuro.

Por último, e de forma determinante, destaque-se o efeito da pronunciada subida da procura externa por serviços de turismo e imobiliários. Ainda que a maioria governamental de direita se tenha ao longo dos anos esforçado por colher os méritos deste desenvolvimento, um olhar cuidadoso da situação internacional permite concluir que as ações governamentais de promoção de Portugal como destino turístico não tiveram um efeito mais do que marginal.

A expansão do mercado turístico internacional ocorrera já nos anos anteriores, fruto da diminuição do custo dos transportes aéreos e das alterações políticas ocorridas no Norte de África, que tiveram particular impacto no aumento de procura de destinos substitutos no Sul da Europa. Lisboa e Porto foram apenas as últimas de várias cidades europeias a sentir os efeitos de um turismo massificado, mimetizando o que já ocorrera em Barcelona, Madrid ou Veneza.

A expansão das atividades mobiliárias é complementar das atividades turísticas, embora aqui se deva acrescentar o papel da elevada liquidez do sistema financeiro, com taxas de juro baixas e investidores em busca de ativos que lhes garantissem maior rentabilidade.

Neste domínio, é de considerar o papel que o programa de Vistos Gold pode ter desempenhado. Mas mesmo concedendo esse efeito direto da ação do governo da direita, ele fica associado à recuperação da economia portuguesa que teve menor impacto positivo no emprego e maior custo social, por consequência dos efeitos externos nas rendas e no preço da habitação.

Nenhum dos fatores internos comummente apontados consegue sobredeterminar a influência dos fatores exógenos referidos. No discurso da direita, a ideia das reformas estruturais dos mercados de produto e de trabalho como causas do aumento do emprego esbarra nas evidências que cada da vez mais a contrariam. A tese de que o seu impacto resultou da melhoria das condições competitivas no setor exportador também é pouco plausível: o grande crescimento das exportações aconteceu no domínio dos serviços (turismo, no essencial), enquanto a exportação de bens manteve uma tendência de crescimento que já vinha de 2007.

Além disso, o crescimento rápido do emprego encontra uma explicação mais provável na combinação entre a procura externa e a mudança estrutural da economia, como se sustentará adiante.

Ainda que a maioria governamental de direita se tenha esforçado por colher os méritos, um olhar cuidadoso da situação internacional permite concluir que as ações governamentais de promoção de Portugal como destino turístico não tiveram um efeito mais do que marginal.

No discurso da esquerda, a ideia da “viragem da página da austeridade” como fator principal da retoma também não é adequada. Sendo de reconhecer alguns efeitos positivos da procura interna que não se registariam com a direita no poder, depositar em exclusivo nesse acontecimento os motivos do crescimento a partir de 2015 é, além de imprecisa, uma estratégia pouco avisada, pois cria a ilusão de que na economia portuguesa é possível guiar o curso dos acontecimentos na atual arquitetura de integração económica apenas com base na decisão dos atores políticos
internos. Essa proposição não seria coerente com uma esquerda que reafirma a necessidade de rever
essas limitações externas, em particular as que se referem à zona euro.

A evolução estrutural da economia portuguesa e a insustentabilidade de um modelo de desenvolvimento

Qualquer análise da realidade deve ter consciência do enviesamento que os métodos e instrumentos que utiliza podem introduzir. A economia portuguesa durante o período de recuperação é ilustrativa desse risco.

As análises assentes em dados agregados apontam para desenvolvimentos conjunturais positivos: um crescimento moderado, mas sustentado, do produto interno, impulsionador de um rápido crescimento do emprego e com uma assinalável capacidade de manutenção do equilíbrio externo. Mas permitem também observar indicadores de longo-prazo preocupantes: a produtividade média do trabalho e os salários reais quase estagnaram, crescendo respetivamente a uma taxa média anual de 0,17% e 0,35% entre 2013 e 2019.

A maioria das análises opta por separar estes dois desenvolvimentos. Os ganhos positivos de curto-prazo seriam o reflexo da capacidade de adaptação da economia portuguesa às reformas feitas durante o período da Troika (nas análises da direita) ou da capacidade de gestão dos decisores políticos presentes (em análises da área do governo).

A estagnação da produtividade e dos salários reais mereceu menor atenção, mas foi sempre o flanco escolhido pelos setores conservadores para fazerem vingar a sua agenda, num momento adverso para a aceitação das suas posições.

Segundo essas análises, foi a falta de ímpeto e coragem reformadora de esquerda (leia-se, ausência de maior flexibilização do mercado laboral, de produto e diminuição da carga fiscal) que impediram a economia portuguesa de compaginar um ciclo virtuoso de crescimento com o aumento da produtividade e dos salários. Trata-se de uma análise dicotómica inapropriada e que conduz a conclusões erradas. Apenas a integração das duas dimensões, e que considere a drástica evolução da estrutura setorial do produto e do emprego, pode explicar as características do modelo de crescimento da economia portuguesa até à pandemia e avaliar a sua sustentabilidade.

Qualquer análise da realidade deve ter consciência do enviesamento que os métodos e instrumentos que utiliza podem introduzir. A economia portuguesa durante o período de recuperação é ilustrativa desse risco.

Entre 2013 e 2019, o PIB cresceu a uma taxa média anual de 1,9%. Mas esse crescimento foi assimétrico na sua composição setorial: o setor das atividades de restauração e alojamento e dos serviços de apoio (que inclui muitos serviços de trabalho-intensivo, como a limpeza doméstica) cresceram mais do dobro, respetivamente 4.4% e 6,7%. Mas quando olhamos para a estrutura do emprego, verificamos que este cresceu a uma taxa média de 2,1%/ano, enquanto o número de trabalhadores aumentou 5,7% no setor de restauração e alojamento e 4,3%/ano no setor das atividades e serviços de apoio.

Setores que cresceram acima da média agregada durante a recuperação e que têm uma característica comum: apresentam níveis de produtividade setorial e salários médios reais abaixo da média da economia. Em 2019 a produtividade média destes setores era cerca de metade da média nacional, enquanto que os salários médios representavam cerca de dois terços do salário médio agregado.

Uma retoma ancorada em setores com produtividade e salários reais abaixo da média é essencial para entender a rápida expansão do emprego e a manutenção do equilíbrio externo.

A expansão rápida do emprego resulta do efeito multiplicador do PIB agregado e é superior quando os setores com produtividade relativa inferior crescem mais rapidamente. A explicação é intuitiva: um setor com produtividade mais baixa necessita de um maior número de trabalhadores/horas para satisfazer um dado valor de procura. É neste valor mais elevado do multiplicador do emprego que deve ser encontrada a causa para o seu rápido crescimento, com um aumento apenas moderado do PIB.

Por outro lado, a existência de salários médios mais baixos nestes setores foi essencial para moderar o crescimento da procura interna, limitando a expansão das importações e permitindo manter o equilíbrio externo.

A mesma evolução estrutural que permitiu estes registos positivos é também a causa dos problemas de longo-prazo da economia portuguesa.

No que se refere à evolução da produtividade, podemos distinguir efeitos negativos desta evolução, decompostos numa componente estática e dinâmica. A componente estática é de compreensão imediata: uma maior percentagem de trabalhadores em setores com produtividade abaixo da média gera uma redução da produtividade média agregada da economia, o que favorece um padrão de estagnação.

A componente dinâmica provém da diferente propensão que os setores da economia têm para apresentar ganhos de produtividade no futuro. Autores da escola Keynesiana e Estruturalista, como Nicholas Kaldor ou Albert Hirschman, enfatizam que as perspetivas de evolução futura da produtividade não são invariantes à composição setorial da economia. Setores associados à indústria têm elevado potencial de economia de escala, geração de inovação tecnológica e efeitos multiplicadores em relação à restante economia, por via da sua associação a montante e a jusante com os outros setores.

O essencial a reter é que este modelo económico não era sustentável a prazo e estava na iminência de se debater com as suas contradições internas, caso a pandemia não tivesse surgido.

Pelo contrário, os setores ligados aos serviços tradicionais tendem a estar associados a produtividades médias do trabalho com progressão lenta. Uma estratégia de desenvolvimento assente na contínua expansão de serviços intensivos em trabalho e com baixo valor acrescentado determina um viés descendente na evolução potencial da produtividade no futuro.

Tal como determina um aumento da tendência secular para a desigualdade, como reflexo de uma economia em crescente dualização. De um lado, setores com elevado potencial de crescimento de produtividade, com maior facilidade em acomodar crescimentos reais dos salários sem impacto na taxa de lucro, e com relações laborais caracterizadas pela estabilidade. Do outro lado, setores com baixo potencial de crescimento de produtividade, com relações laborais precárias e com salários reais com um potencial de crescimento baixo - porque, na medida em que a evolução da produtividade é baixa, o crescimento salarial sem colocar em causa a taxa de lucro do setor implica o aumento de preços, que por sua vez têm o seu crescimento limitado por ação da competitividade internacional.

Por fim, é um modelo cujos efeitos indiretos impõem um impacto económico e social negativo sobre determinados setores da população, que com frequência mais do que excede os ganhos observados com a retoma. É o caso do acesso à habitação, com a pressão de procura criada pelo turismo para favorecer o arrendamento de curto prazo e uma construção destinada a segmentos de rendimento acima da procura nacional.

É possível que os capitalistas destes setores consentissem uma diminuição da sua taxa de lucro para que o aumento de salários não se traduzisse no aumento de preços.

Num contexto de estagnação salarial, os custos das rendas aumentaram, em média, 70% à escala nacional, com subidas médias que atingiram os 117% na cidade de Lisboa, entre 2013 e 2020, para algumas tipologias de habitação.

Efeitos que afetaram desproporcionalmente os setores mais vulneráveis da população, sem habitação própria, e os jovens, aumentando um fosso de desigualdade que provinha já desde a década de 1990, entre as camadas média e média alta que tinham tido acesso a crédito imobiliário e as classes média e baixa, que tinham sido arredadas desse processo.

O essencial a reter é que este modelo económico não era sustentável a prazo e estava na iminência de se debater com as suas contradições internas, caso a pandemia não tivesse surgido.

Com a economia a aproximar-se de valores de pleno emprego, não seria possível continuar a crescer num modelo com salários reais estagnados. A massa de desempregados que possibilitara a expansão extraordinária dos setores associados ao turismo sem pressão nos salários estava a esgotar-se. Ou os salários cresciam acima da produtividade e os preços subiam, criando uma tendência para o desequilíbrio externo por meio do efeito sobre a competitividade internacional e do aumento da procura interna, ou cessava o investimento nesses setores, gerando uma tendência recessiva com impacto negativo no equilíbrio orçamental.

É possível que os capitalistas destes setores consentissem uma diminuição da sua taxa de lucro para que o aumento de salários não se traduzisse no aumento de preços. Mas esta via, além de improvável pelas assimetrias de poder reivindicativo nestes setores, também acabaria por ter efeitos recessivos a prazo.

Nenhum dos problemas estruturais da economia portuguesa foi, portanto, superado com a agenda de reformas da Troika ou com os anos de governação que se lhe seguiram. A tendência para o desequilíbrio manteve-se presente e apenas um conjunto de choques externos favoráveis e mudanças estruturais obscureceram essas fragilidades de forma contingente.

E ninguém deu por nada?

Tomando como certo o acima exposto pode-se questionar, ainda assim, o motivo pelo qual os riscos deste modelo de crescimento não foram objeto de um debate mais intenso na sociedade portuguesa, sobretudo nos meios próximos das instituições com responsabilidade governativa. O motivo mais substantivo da ausência deste debate respeita à crença, explícita ou implícita, de que os processos guiados pelo mercado correspondem sempre ao melhor resultado possível, refletindo um ajustamento virtuoso aos fundamentos da economia.

A ideia de um capitalismo que se autorregula e permite a mais eficiente aloação de recursos, na ausência da ação distorcedora do Estado, é uma das proposições mais omnipresentes no debate económico desde a economia política clássica. Consciente ou inconscientemente, essa convicção guia a ação da maioria dos agentes políticos, sobretudo ao centro, onde o pensamento neoliberal define as fronteiras do que é tido como “razoável e possível”. Só isso pode explicar as declarações levianas de personalidades com elevada responsabilidade política, quando questionadas sobre o modelo de desenvolvimento adotado.

Fernando Medina, ex-Presidente da Câmara Municipal de Lisboa, disse “Não sei o que é ter turistas a mais” e Rita Marques, atual Secretária de Estado do Turismo, afirmou “[querer] muitos Web Summits”, mesmo quando o nível de intensidade de turismo atingido já revelava problemas severos no acesso à habitação e na vida nas cidades.

No contexto de uma especialização causada por um choque externo, a defesa dessa posição no espaço público é amiúde acompanhada de uma referência vaga à noção de vantagem comparativa. É comum não se explicar as suas consequências, entendendo-se esta alusão como uma forma de encerrar o debate por meio de um consenso firmado e indiscutível na ciência económica.

Sem se ter a pretensão de aprofundar o tema num texto desta natureza, importa fazer uma referência breve ao conceito de vantagem comparativa, que foi seminalmente proposto pelo economista político clássico inglês David Ricardo e mais tarde adaptado à visão neoclássica da economia no modelo Heckscher-Ohlin-Samuelson.

Nenhum dos problemas estruturais da economia portuguesa foi superado com a agenda de reformas da Troika ou com os anos de governação que se lhe seguiram. A tendência para o desequilíbrio manteve-se presente.

Embora as premissas dos dois modelos não sejam iguais, ambos sugerem que o comércio internacional é sempre benéfico para os países envolvidos, mesmo que um dos países seja mais produtivo na produção de ambos os bens.

Os termos de troca internacionais ajustam-se de forma a que um equilíbrio que maximiza o bem-estar dos dois países em conjunto seja atingido. Esta ideia é poderosa e exerce uma grande influência junto de economistas e decisores públicos. Mas as suas conclusões assentam em premissas muito fortes (rendimentos constantes à escala, balança comercial equilibrada, pleno emprego dos recursos produtivos ou uma análise em equilíbrio estático), sem ter em consideração que os equilíbrios presentes se traduzem em diferentes probabilidades de progresso no futuro.

Esta noção de vantagem comparativa tem sido disputada por autores que consideram ingénua esta forma de abordar a especialização produtiva.

Numa economia internacional marcada por desequilíbrios externos, subutilização de recursos produtivos e rendimentos crescentes à escala, a especialização produtiva presente pode de facto influenciar os níveis de rendimento futuros. É esta noção de vantagem comparativa dinâmica que deve ser tida em conta e os governos devem ativamente agir de modo a influenciar esse padrão de especialização. Tal não significa que aspetos tradicionalmente tido como essenciais, como a dotação de fatores produtivos, não sejam relevantes, mas antes que existe um espaço de política pública que pode ser explorado.

Como referiu Ha-Joon Chang, num debate célebre com um economista chefe do Banco Mundial, “O princípio da vantagem comparativa (...) pode dizer-nos quais são as possibilidades “naturais” de desenvolvimento de um país e assim ajudar-nos a entender o risco envolvido em saltar um determinado número de “degraus”. (...) [Mas] dada a incerteza fundamental e a natureza coletiva dos processos de aprendizagem tecnológica (...) não é possível um país entrar num setor quando as suas dotações fatoriais são as corretas, como aconteceria no ajustamento suave de vantagem comparativa da economia neoclássica. (...) No mundo real, empresas que enfrentam uma fonte de grande incerteza têm de ser criadas, suportadas e subsidiadas, possivelmente por décadas, para que os ganhos de valor da estrutura produtiva sejam atingidos”.

Ao longo da história, a defesa do mercado livre como fator de desenvolvimento das capacidades produtivas internas beneficiou os países que se encontravam à partida numa posição favorável e hegemónica num dado contexto económico.

A maioria das periferias em processo de convergência usou diferentes combinações de políticas de pendor intervencionista como alavancas essenciais ao seu processo de desenvolvimento, onde se incluem a regulação da taxa de câmbio a níveis competitivos, a diferenciação setorial das taxas de juro, a proteção setorial por meio de tarifas, o controlo de capitais ou o envolvimento direto das autoridades públicas na política setorial. Mas com a pertença à zona euro, a maioria destes instrumentos deixou de estar ao alcance das autoridades nacionais.

Na linha do que caracteriza a ação dos vários governos desde há muitos anos, a resposta deste executivo foi aceitar o que o mercado teve para dar. Como narrativa de modernização impulsionada pelo Estado, refugiou-se nos ensinamentos esgotados herdados da Estratégia de Lisboa, onde a promoção da melhoria dos níveis de qualificação e o aumento do peso da investigação e desenvolvimento no orçamento de Estado são tidas como condições suficientes para o desenvolvimento.

Ignorando – ou pretendendo ignorar – que promover em simultâneo uma alteração estrutural para setores incapazes de absorver esses investimentos é uma estratégia incoerente e condenada a falhar. O resultado foi uma economia que cresceu mas continuou vulnerável à conjuntura, não se tendo libertado de nenhum dos seus problemas estruturais até à chegada da pandemia.

Conclusão

Enquadrada pelo credo do europeísmo convicto, a maioria das elites políticas nacionais consideraria que esta análise sofre de um pessimismo infundado, assegurando que a intervenção do BCE e o PRR serão suficientes para garantir estabilidade e desenvolvimento à economia portuguesa. Embora esteja para lá deste texto analisar a resposta europeia à crise, importa referir que essa ideia assenta em pressupostos pouco sólidos.

No que respeita à resposta do BCE, importa relembrar que Portugal continua a ser o responsável integral pelo seu stock de dívida pública. Qualquer movimento na política monetária do BCE, por pressão de tendências inflacionárias no centro, poderá determinar instabilidade ao nível do refinanciamento, pelo que um regresso à narrativa da austeridade não está afastado.

Por outro lado, não se devem insuflar as potencialidades do PRR para lá do seu verdadeiro alcance. Segundo os dados oficiais divulgados, o valor total do PRR representa apenas cerca de 8,3% do PIB português em 2020, com a aplicação desse valor a ser diluída ao longo de vários anos. Segundo as estimativas do Banco de Portugal para o seu impacto ao longo de uma década, o PRR só aumentará a taxa média de crescimento do PIB potencial anual em 0,2 pontos percentuais. Não será, pois, o PRR a garantir a mudança estrutural necessária.

A divergência dos níveis de produtividade com o centro e o acentuar da dimensão periférica da economia portuguesa são o cenário mais provável no futuro próximo. Tal como no título da música da banda britânica Clash, a questão Should I stay or should I go? [Devo ficar ou partir?] continua atual na relação de Portugal com a zona euro.

Ensaio originalmente publicado na Revista Manifesto.

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