Jornalista que se dedica a investigar violações dos Direitos Humanos, Causas Sociais, Justiça e Feminismo. É jornalista no Projecto Inocência, uma iniciativa de jornalismo com publicação no Público

Diários entre muros: O olhar de uma voluntária nas prisões portuguesas

A minha avó registou detalhadamente o que via e ouvia entre os muros de prisões durante 31 anos. Ela fazia voluntariado e pela sua mão também entrei nesse mundo. Mergulhei nos seus dez diários para contar uma parte da sua história.

Ensaio
11 Janeiro 2024

Elvira Pinto saiu de casa de madrugada, fazendo-se à estrada até ao Porto. Pelas nove horas da manhã de 25 de janeiro de 2012, chegámos ao grande portão do Estabelecimento Prisional do Porto. O arame farpado ferrugento percorria, ao longo de vários metros, a parte superior do edifício de meados do século XX. A cor rosada da fachada do lado direito só deixava uma dúvida: seria uma prisão ou um asilo? Era certamente um lugar que se queria isolado do mundo.

No caminho, Elvira explicava que aquele local tinha sido construído pela  chamada Brigada de Trabalho Prisional do Porto, composta por 230 reclusos da Cadeia Civil. Foram forçados, até ao final da década de 1960, a construí-lo sem que soubessem do que se tratava. Depois de passar por várias transformações, o estabelecimento prisional (EP) foi chamado de “poste telegráfico” quatro dias depois do 25 de Abril de 1974 e recebeu os primeiros reclusos. Nessa mesma altura Elvira já fazia voluntariado, mas o sistema era outro, dividido entre poucas visitas e algumas cartas. Ela ditava e alguém da sua confiança escrevia.

“Cheirava a casco velho, enferrujado. Os portões eram de ferro bruto, verde, e não a assustaram, mas curioso é que a primeira coisa que ela disse foi: ‘cheira a calaboiço’. O que não seria de estranhar, porque esta é uma prisão de alta segurança”. Assim começa o texto de um dos dez diários de Elvira, datado de 25 de janeiro de 2012. O “ela” era eu, a sua neta de 16 anos. Foi assim que a minha avó descreveu o meu primeiro contacto com um estabelecimento prisional.

As características daquele EP eram diferentes das que me tinha contado até então. Além do pátio aberto e amplo, que se seguia aos tais portões impetuosos, os formatos das janelas disfarçavam as grades em formato de “jogo do galo”. O edifício retangular tinha um elemento exemplar: a profundidade. Afastava as variadas zonas residenciais dos sons de uma rua militar, a Rua Monte do Vale que se estende a um outro EP próximo, o de Custóias, também de alta segurança. Em dias de inverno, esta rua concentra uma bruma densa que só desvanece a partir das 11 horas da manhã. Além do pouco ruído que se ouvia vindo do EP, aqueles edifícios reduziam o comprimento necessário dos corredores internos, demasiado estreitos. Admito que sempre me perguntei por que razão não havia mais luz natural naquele lugar meio descampado. 

DEPENDEMOS DE QUEM NOS LÊ. CONTRIBUI AQUI.

Na primeira vez em que pisei o chão do estabelecimento pensava que sabia ao que ia. A minha avó já me tinha contado inúmeras histórias de vida, descrito cada passo das entradas, o aspeto das salas. Até um ou outro contacto mais próximo com reclusos. O mais íntimo guardava para si, para o bloco de notas que sempre carregava consigo. Eu pensava, então, conhecer a realidade com que me ia deparar, mas enganei-me. 

A minha avó registou detalhadamente o que via e ouvia entre muros de prisões durante 31 anos, mas o voluntariado fazia-o há mais de cinco décadas. Os diários começaram em 1983 e prolongaram-se até 2014. Li poucos desses escritos antes dos 16 anos, mas passada uma década mergulhei naqueles dez cadernos empilhados. O que resulta neste ensaio é precisamente isso: a leitura que uma neta faz das experiências mais marcantes pelas quais a sua avó passou. Chegou a ser quase um diálogo entre uma mulher de 94 anos que recordava cada detalhe pouco antes de falecer e uma neta que aos 26 anos quis recuperá-los.

A avó voluntária

A minha avó nasceu dois meses antes do golpe militar de 28 de Maio de 1926 e começou a trabalhar com oito anos. A sua mãe tinha dois empregos, mas o que recebia não chegava para as despesas. O trabalho impôs-se para ajudar nos gastos da casa e, quando não era o trabalho, era a necessidade de cuidar das suas três irmãs, pois era a filha mais velha. A escola teve de ficar para segundo plano, ou mesmo para terceiro. Daí que no princípio da década de 1960 não soubesse escrever e tarde veio a aprender. As responsabilidades que lhe exigiam assim a obrigaram, mas nem por isso deixou de encontrar tempo para cuidar dos outros, sem que dedicasse esse tempo a si própria. 

Quando tinha 30 anos, enquanto criava dois dos oito filhos que veio a ter, a sua vida ganhou novos hábitos. Todas as quartas e domingos saía pela tarde para visitar reclusos. A distância de sua casa até à prisão era de 60 quilómetros, o equivalente a uma viagem de 45 minutos de carro. As suas ausências tornaram-se naturais na minha família. Eram pouco mais que visitas solidárias, mas faziam toda a diferença para quem vivia 24 horas entre muros com arame farpado. Das visitas passou à troca de correspondência, escrevendo linhas e linhas, sempre com letra cuidada, bem redondinha, colando depois os envelopes com saliva — a caligrafia cuidada demonstrava ao recluso que ele se importava. Chamaram-lhe madrinha, nome roubado às madrinhas da Guerra Colonial, quando o aparelho de propaganda do Estado Novo recrutava mulheres para se corresponderem com soldados em Angola, Moçambique, Cabo Verde ou Guiné Bissau, para lhes aumentar a moral. Mas a guerra dos reclusos não se fazia lá longe nas matas contra guerrilheiros que lutavam pela independência. Era outra, e bem perto de nós: como viver fechado entre quatro paredes? Era, sobretudo, uma guerra contra eles próprios.

No ano em que comecei a fazer voluntariado, em 2012, eram mais de 13 mil. Apesar de não se registarem grandes estudos pela Comissão dos Direitos Humanos da Ordem dos Advogados, os EPs Centrais e Especiais já registavam lotação máxima de reclusos.

O voluntariado da minha avó sempre foi laico, ao contrário do que naquela altura se praticava. Se o voluntariado em contexto prisional já era incomum, fazê-lo despido de uma autoridade religiosa era muito raro. Aos 64 anos, já então com décadas de experiência, decidiu dar mais um passo: fundou a associação Clusa (palavra típica de calão nortenho que significa vale transversal) e criou um programa de voluntariado sem qualquer relação religiosa. Tornou-se monitora e supervisora e foi pela sua mão que entrei pela primeira vez numa prisão. Passei a acompanhá-la em todas as visitas nos quase quatro anos que se seguiram. 

As cartas continuaram por mais de duas décadas e, a partir dos meus dez anos, quando a curiosidade por aqueles envelopes abertos, mas guardados com todo o cuidado numa gaveta, se aguçou, pedi à minha mãe que mas lesse. A partir da sua escrita bem redondinha ouvi histórias reais, tristezas e amarguras, felicidades dos dias depois das visitas semanais de familiares, pedidos sentidos de quem já nem se imaginava a regressar ao mundo cá de fora. Desabafos. Não foi fácil ler as cartas, e tão nova era que nem cheguei a perceber a confiança necessária para que tivessem sido escritas em primeiro lugar.

Passaram-se quase 15 anos desde que os folheei ao de leve e dez desde a minha primeira visita a uma prisão. Lembro-me que a minha avó não largava os seus cadernos pretos, de pele, desgastados. A certa altura deixou o bloco mais pequeno e começou a comprar cadernos com folhas de textura. Hoje, ao olhar para eles, guardados com todo o cuidado em caixas de cartão que já tiveram melhor aspeto, reconheço os seus diferentes estados de alma: umas folhas têm a letra bem cuidada, redondinha; outras são gatafunhos escritos à pressa, como se o fluxo de pensamento tivesse passado diretamente para o papel. Em todas há expetativas, experiências, descrições do que presenciou e das condições em que os reclusos se viam fechados, histórias de vida. Os sentimentos são omissos, talvez preferisse guardá-los para si, não sei.

No início de 2023 havia mais de 12 mil pessoas encarceradas em Portugal, segundo dados da Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRS). No ano em que comecei a fazer voluntariado, em 2012, eram mais de 13 mil. Apesar de não se registarem grandes estudos pela Comissão dos Direitos Humanos da Ordem dos Advogados, os EPs Centrais e Especiais já registavam lotação máxima de reclusos. No ano seguinte, o número aumentou exponencialmente, ultrapassando as 14 mil pessoas.

Portugal é o sexto país mais seguro do mundo segundo o SPACE I, o relatório anual de estatísticas penais do Conselho da Europa, mas tem o triplo da duração média das penas a nível europeu e os relatórios internacionais referem más condições, abuso e discricionariedade dentro das prisões portuguesas. Também se têm registado situações graves de privação de cuidados de saúde básicos. 

A minha avó registou detalhadamente o que via e ouvia entre muros de prisões durante 31 anos, mas o voluntariado fazia-o há mais de cinco décadas. Os diários começaram em 1983 e prolongaram-se até 2014.

Em 2013, o Observatório das Prisões alertou para o número de suicídios nos estabelecimentos prisionais. Alguns deles foram denunciados pela minha avó: “Guilherme Rodrigues Silva (nome fictício) está preso no estabelecimento prisional de Custóias e a ameaça de suicídio mostra-se cada vez maior. Não tem apoio psicológico há mais de seis meses e os fármacos a que é submetido deixam dúvidas. Pedimos ajuda para evitar o que possa suceder”, escreveu, rodeando a palavra “ajuda” a vermelho, como se fosse um sinal de alerta. Foi das poucas vezes que vi algo discriminado a cor vermelha pela minha avó, pois dizia não gostar de a usar, porque era a cor da censura, mesmo que eu insistisse em dizer que não fazia sentido porque a analogia era a do “lápis azul”.

Naquela altura já existia aquilo a que se chama Princípios Internacionais dos Tratamento dos Reclusos, que contemplam as “Regras Penitenciárias do Conselho da Europa”, previstas na Recomendação de um Comité de Ministros aos Estados Membros, de 2006. Nada mais se soube sobre o Guilherme, a minha avó nunca mais o viu e a sua família nada mais nos disse. 

O sistema de Justiça Europeu “parecia” apoiar uma grande narrativa da história progressista, dizia a minha avó. Recuperando um dos seus diários mais antigos, de 2007, escreveu que “o arco da história curva-se em direção à justiça”, era essa a sensação que tinha. Mas a dezembro de 2008 o retrocesso tornou-se-lhe evidente: “os abusos estruturais invariavelmente florescem. Ninguém é responsabilizado pelos abusos dos direitos humanos. Espancamentos, tentativa de asfixia, confinamento solitário (prolongado em segurança máxima) e maus-tratos a detidos menores e doentes mentais. Hoje vi cães de ataque, o que nem sabia que existia dentro das prisões portuguesas”, termina nas notas desse ano.

Quartas e domingos eram dias de escrita

Lembro-me que a minha avó aproveitava as silenciosas viagens de ida ou de volta para escrever. Usava os cadernos pequenos, com linhas, que nos filmes vemos os jornalistas a usar. As anotações eram em letra grande, quase sempre em cor azul, e hoje reconheço que, apesar de a mão ser a dela, a intimidade da palavra escrita era partilhada. Tanto falava em Albert Camus que foi exatamente nos seus registos diários que encontrei as muletas que agora me ajudam a escrever este ensaio.

Os alertas para o estado destes estabelecimentos prisionais continuavam. “As cadeias são um monte de problemas e podemos dizer que é difícil encontrar algo que esteja certo: instalações degradadas ao nível do terceiro mundo, comida péssima, má qualidade na saúde, falta de trabalho, dificuldade para estudar, dificuldade nos contactos com as famílias, nenhuma preocupação com a reabilitação. No pequeno edifício do EP de Chaves podemos ver objetos que tinham diferentes usos: as grilhetas ou esferas em ferro que serviam para prender os reclusos quando ficavam de castigo; as palmatórias (um pau em madeira com um disco redondo na ponta, e cinco furos) que serviam para bater; e todos estes materiais usados. É este o mundo em que vivemos. Uma franja social amargurada, onde a brutalidade está na ordem do dia”.

Aos 70 anos a minha avó tornava-se cada vez mais relutante às perspetivas e análises académicas sobre a punição europeia. Poucas revisões bibliográficas existiam na altura e, mesmo as que existiam, ela definia-as como “errôneas ou parciais e inadequadas”. Isto porque, no seu entender, os trabalhos académicos retratavam por vezes a reclusão em massa como exemplo do sistema disciplinar teorizado do filósofo Michel Foucault. Seria difícil imaginar uma abordagem mais confusa?, perguntava-se. 

Há uma imagética popular em torno do lugar prisional. O “criminoso” é oriundo de bairros precários, leva uma vida “no crime”, não trabalha, vive do roubo, do tráfico de droga. O guarda prisional é o “diamante bruto” que violenta, agride e abusa da autoridade.

As características deste “regime disciplinar” mantiveram-se. A existência de uma instituição chamada “prisão”; formas de poder que perpetuam “os mínimos detalhes da vida quotidiana”; a produção de um “arquipélago carcerário” que exporta a vigilância “da instituição penal para todo o corpo social”. Mas tudo o que isto nos diz é que as instituições se comunicam entre si. Mais do que comunicação, defendia que era importante uma mudança radical. Fosse ela a abolição ou não.

A minha avó não teve oportunidade de conhecer o trabalho da investigadora Mónica Salselas, responsável pelo primeiro estudo de experiência de voluntários em contexto prisional em Portugal ou de Projetos como o VOLPRIS (Prison Managing Volunteers in Europe), que envolvem cerca de cem prisões - entre elas as portuguesas - e que foram essenciais para se perceber que o voluntariado em contexto prisional tem grande impacto no desenvolvimento social e de comunidade dos reclusos. Mas o desconhecimento é pregado.

Há uma imagética popular em torno do lugar prisional, o mesmo sucede relativamente a quem o habita e, claramente, convocam-se clichés: o “criminoso” é oriundo de bairros precários, leva uma vida “no crime”, não trabalha, vive do roubo, do tráfico de droga. O guarda prisional, por sua vez, é o “diamante bruto” que violenta, agride e abusa da autoridade. Poderia dizer-se que é o desconhecido (mais uma vez) que pauta os estereótipos que se vão perpetuando, ano após ano, década após década, desde que a prisão foi concebida nos finais do século XVIII.

Politicamente, as decisões seguem o mesmo cenário. Não são isentas de conflitos: como justificar perante os eleitores a alocação de dinheiro para que “criminosos” tenham melhores condições de habitabilidade, por exemplo, reduzindo a sobrelotação? Que razão prevalece se for necessário escolher entre renovar um hospital, uma escola ou uma prisão? Estas seriam perguntas práticas para Michel Foucault que, nos anos 1970, entendia que “conhecemos todos os inconvenientes da prisão e sabemos que é perigosa, quando não inútil. E, no entanto, ela é a detestável solução de que não conseguimos abrir mão”.

Se, quando a minha avó escrevia, as taxas de criminalidade violenta tinham caído, já as disparidades raciais do sistema de justiça criminal transformaram-se numa questão a que dedicou especial atenção. Há desigualdades sociais acrescidas quer nas cadeias quer no sistema penal. Os grupos “vulneráveis” no sistema de justiça penal português “não ocupam lugar”. Estas foram as palavras de um diretor de um estabelecimento prisional depois de a minha avó lhe perguntar sobre as condições de parte da população carcerária. Por outras palavras, e clarificando, ele disse-lhe que desvalorizavam a sobrelotação das prisões.

Em 2013, quando conheci Ruanda Valte, mulher cigana que estudava Direito durante o seu tempo de reclusão, ela ainda pensou escrever à Ordem dos Advogados Portugueses e à Direcção-Geral dos Serviços Prisionais, mas “tinha consciência que não resultaria em nada”. “Mitos são construídos em torno das decisões judiciais, o que apenas obscurece ainda mais o entendimento sobre os procedimentos criminais, como notamos com os ciganos”, disse-me na altura. 

"No EP de Chaves podemos ver objetos que tinham diferentes usos: as grilhetas ou esferas em ferro que serviam para prender os reclusos quando ficavam de castigo; as palmatórias que serviam para bater. É este o mundo em que vivemos."

Nesse mesmo dia, um dos relatos que a minha avó anotou mal chegou à carrinha que nos transportava foi o de um recluso do EP de Custóias, a que chamava “D.”. Tinha histórico de doenças mentais e foi confinado após condenação por roubo. As condições insalubres de isolamento fizeram com que a sua condição mental “se deteriorasse dramaticamente”, a ponto de ele “se sujar repetidamente com fezes e urina”. Os funcionários da prisão levaram-no à enfermaria para lhe darem banho: “D. conta que chamaram um médico para ajudar e ver a sua condição. Explica que ele pegou numa escova com pontas de metal, enrolou-a numa toalha e começou a esfregá-lo. Quinze minutos depois, quando D. conseguiu manter-se em pé, percebeu que a sua pele das suas pernas estava pendurada em grandes pedaços”, lê-se num dos seus últimos cadernos. 

Mais tarde vim a saber, depois de uma longa conversa com mais dois voluntários, que aquele recluso tinha ainda acrescentado que seis guardas-prisionais participaram nesse banho, de forma a garantir que D. permanecesse algemado, numa banheira de água a ferver. Quase morreu.

As conversas que (nunca) tive

Algumas das memórias descritas pela minha avó foram-me reveladas depois de ela falecer em 2020. O voluntariado era algo que pintava de forma demasiado necessária e importante. E eu sabia-o, mesmo que por vezes não tivesse consciência do que ela ouvia. Poucas vezes conversávamos sobre o que os reclusos e as reclusas nos diziam. E isso era (quase) uma regra sagrada que seguíamos de forma (quase) religiosa. Dois anos depois de começar o meu voluntariado também comecei a escrever. 

Era um domingo. O sol já ia alto quando chegámos ao Porto e entrámos no Estabelecimento Prisional de Santa Cruz do Bispo. Passamos por uma pequena porta, onde os guardas-prisionais nos revistaram. De seguida, escoltaram-nos até à sala de atividades, onde nos iríamos encontrar com as reclusas e reclusos. Atravessámos longos corredores com portas altas, algumas delas cobertas com betão. Eram portas que impediam de sair. Eram portas que impediam todo e qualquer contacto humano. Andamos mais uns metros, mais uma revista. Assinámos uma espécie de lista de presença e esperamos em frente a um novo portão. Do outro lado estava a única sala que havia para dar aulas, fazer exercício e para as reclusas trabalharem em determinadas funções mais oficiosas. Voltamos a caminhar quando nos disseram que era permitido. Obedecemos.

Comecei pelas visitas solidárias, passei pelas atividades multiculturais até entrar num dos projetos mais duradouros e significativos com a associação a que estava agregada, a da minha avó: criar uma ligação com a comunidade de origem antes do processo de reinserção social começar. Este era o meu objetivo enquanto voluntária.

Algumas das memórias descritas pela minha avó foram-me reveladas depois de ela falecer em 2020. O voluntariado era algo que pintava de forma demasiado necessária e importante.

Desempenhava-o de forma individual. O objetivo era “ser” um amparo. Não se tratava de um lugar de arrependimentos, de repreensão ou de recuperação. Eu ouvia, pouco perguntava — e era assim que tinha de ser. “Marya”, uma das reclusas com quem trabalhei, perguntava muitas vezes o que sentia, o que era ser voluntária. É uma resposta que até hoje não sei dar na íntegra. Não porque não saiba o que significa, mas porque qualquer definição não faz jus por completo a esta função. Há uma definição legal e social. Fiquemos por aí.

Falemos da Marya. Ao ouvir os guardas prisionais, percebi que uma das reclusas era conhecida por um número: Reclusa 379 (R-379). Não tinha chapas de prata com nome e contacto, nem apelido, mas ao fim de algumas horas percebi que o seu nome era tanto vulgar como invulgar. Soava ao tradicional português “Maria”, mas escrevia-se com “y”. Esta mulher tinha mais de 50 anos, mas não gostava de falar sobre a sua idade. Dispensava grandes apresentações e foram raras as vezes que ouvi a sua voz quando nos juntávamos em grupo, o que acontecia duas vezes por mês. Marya nasceu na Colômbia, numa região com nome de país europeu: Arménia. Recordo-me que foi o mote de uma conversa que nos ocupou cerca de três horas do tempo e três décadas no espaço. A sua cela era do tamanho do seu quarto no país de origem, mas com “mais 50 anos em cima e com mais três reclusas incluídas”, disse-me. A luz natural era claramente inexistente naquele lugar e as temperaturas extremas, quer no verão quer no inverno, dificultavam a vida de quem lá dormia. 

Sem que houvesse desordem em cada descrição que fazia do lugar em que “vivia” naqueles tempos, não quis ser tão criteriosa quando lhe perguntei o lugar que talvez tenha chamado de casa em Portugal, antes de chegar ao estabelecimento prisional. Talvez tenha sido erro meu, apesar de as “perguntas proibidas” serem outras — esta não o é, e se o é, não foi mencionada na formação que recebi. 

Nunca podemos perguntar a um recluso ou reclusa qual o motivo pelo qual está ali. O que é claramente legítimo sendo que a maioria dos voluntários que tem interesse em trabalhar em contexto prisional nunca estiveram dentro de uma prisão. Era necessário manter uma periodicidade no voluntariado, com uma postura low-profile e sempre cientes de que estávamos ali para ajudar quem precisava, independentemente do que pudesse ter feito. 

Pediam-nos que mantivéssemos a assertividade — definida como “a capacidade de autoafirmação na interação social”; pediam-nos para trabalhar o comportamento não-verbal; pediam-nos para trabalhar a respiração e o relaxamento muscular; pediam-nos que soubéssemos os nossos direitos. Pediam-nos, ou por outras palavras, “exigiam-nos”. Foi a primeira vez que me deparei com uma incoerência ética. Não era suposto eu saber a razão pela qual aquela mulher estaria no estabelecimento prisional, mas era suposto ela perceber que tinha todo o direito de me contar. 

Marya era formada em Neurologia com distinção e trabalhou em hospitais e clínicas privadas portuguesas. Ainda assim, foram raras as vezes em que foi destacada pelo seu célebre profissionalismo. Curiosamente, muito ligada às letras, o que permitiu que eu conhecesse autores como Pablo Neruda e Alejandro Zambra, dizia-me para não ser jornalista e eu retribuía com um aceno sem perceber ao certo porquê. Até porque todas as suas referências literárias tinham passado, em algum momento da sua vida, pelo jornalismo.

Durante mais de um ano, levei uma folha, isolada, fotocopiada, em cada visita que lhe fazia, para que José pudesse juntá-las, uma a uma, e assim ler Bento Moura.

A Marya da Colômbia, que habitava no norte do país, foi a “mulher de” ou “esposa de”. Cada vez que se tentava libertar dando lugar às três denúncias das agressões que sofreu — às quais somou quatro de violação sexual — via as mesmas serem arquivadas. “Sete das muitas em que ficava do outro lado da linha, durante 20 minutos a pedir ajuda”, porém sem resposta. Foi o crime de homicídio voluntário que lhe valeu uma condenação de 15 anos. A diferença é que desta vez era Marya a arguida.

Apesar de distribuirmos o nosso tempo de visita, que variava entre uma a três horas, era sempre muito difícil definir estratégias e levá-las a cabo do início ao fim. Por vezes ficávamos em silêncio, a ver alguns filmes que permitiam ficcionar o que, eventualmente, se passava no outro lado do muro. Cheguei a levar discos de vinil, porque havia quem nunca tivesse visto um. Os CDs eram proibidos porque se partiam facilmente e poderiam ser usados como armas . Foi a Teresa que mostrei um EP do Frank Sinatra, com o nome Strangers in the Night. Falava muito dele e da forma como escapava “às ligações com a máfia”. Dizia que gostava de ter sido uma privilegiada. Contou-me que nasceu em Angola, numa casa onde disse nunca ter sentido amor. Os problemas de alcoolismo surgiram cedo, aos 14 anos, e agravaram-se quando chegou a Portugal, em 2008. Depois de passar um mês na cadeia, “por uma briga feia”, a rua foi a sua primeira e única casa. Voltou à cadeia quatro anos depois.

No terceiro ano de voluntariado, os guardas-prisionais e a administração dos EP já nos conheciam pelo nome. Creio que entenderam aquilo como demasiada “proximidade”. Fui chamada a uma sala pequena, que parecia ser de secretariado, no EP do Custóias, em 2015. Pediram-me para deixar de atender às “distrações culturais” dos reclusos e reclusas. Não era uma forma adequada de fazer voluntariado, disseram-me. Fiquei restringida a levar apenas um livro, a Bíblia. Quanto à música, o mais próximo que podia avançar era com canções à capela, escritas em folhas brancas. Os reclusos estranharam. Até este pequeno (grande) detalhe fez com que regredissem não só na relação de confiança como também no contacto com o mundo. Lembro-me de Bento de Moura ser um autor peculiar para um dos reclusos. O “génio esquecido” que José Pinheiro tanto pedia para ler. Durante seis anos — dois deles a perguntar-me se conhecia Bento de Moura — pediu que não fosse tratado por mais um número, um dos muitos que ocupavam as celas de Custóias.

O José não tinha filhos nem parentes próximos. Pediu-me que visitasse a sua antiga casa, um lugar que não tinha entrada de luz e que não seria muito melhor que a cela onde estava. Em tempos, professor de Literatura Clássica numa universidade norueguesa e com dinheiro suficiente para viajar para outros lugares que não Portugal, trouxe consigo algo que não devia. E por ali a sua história ficou. Durante mais de um ano, levei uma folha, isolada, fotocopiada, em cada visita que lhe fazia, para que José pudesse juntá-las, uma a uma, e assim ler Bento Moura.

Nunca cheguei a perceber por que razão José citava tanto o filósofo Albert Camus, até mais que Bento Moura. Não houve tempo para que soubesse, mas dizia muitas vezes “abram as prisões ou promovam a vossa virtude”.