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A ânsia de privatizações da Iniciativa Liberal será o canto de cisne da nossa burguesia

As privatizações trouxeram vários benefícios aos mais ricos em Portugal, mas tornou-se ainda mais dependente de interesses estrangeiros e esta situação não tem uma solução trivial. À semelhança do PS e do PSD, a IL sujeita-se a um futuro em que terá de olhar com vergonha para o que defendeu.

Ensaio
8 Fevereiro 2024

Com o processo de privatizações dos anos 1990 em marcha, José Saramago escreveu “Privatize-se tudo!”. Da Capela Sistina à Cordilheira dos Andes, o autor pedia um “concurso internacional” para privatizar e aí encontrar “salvação do mundo”. Hoje, sem o sarcasmo de Saramago, e sem fechar o raciocínio com “e, já agora, privatize-se também a puta que os pariu a todos”, é esse o espírito da Iniciativa Liberal (IL).

Enquanto Saramago fez da escrita profissão, os privatizadores da IL são trolls do Twitter (agora X). Munidos de frases feitas, chavões e gráficos descontextualizados, os liberais escrevem a partir das suas grutas em defesa da entrega de setores e ativos estratégicos ao privado. Apesar de o líder do partido Rui Rocha ser apontado como erro de casting, ele é perfeitamente adequado ao partido: Rocha estabeleceu as suas credenciais como troll do Twitter. É natural ter chegado a CEO da startup política.

“A Caixa [Geral de Depósitos] e outras empresas deveriam ser privatizadas na totalidade”, disse o ex-troll twitteiro Rui Rocha em entrevista ao Jornal Económico. Foi apenas mais uma de tantas vezes em que a IL falou de privatizações. Aliás, dada a escassez de empresas públicas para privatizar, até surpreende a IL conseguir falar tanto de privatizações. Os ataques à TAP pública são constantes e a RTP é colocada no radar dos (neo)liberais como um alvo a privatizar. Nos Açores, a IL pressiona um governo de direita a privatizar a SATA Air Açores.

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Há mais exemplos. Outro troll da IL no Twitter chegou a falar de privatizar o Teatro D. Maria II e de se extinguir entidades como os gabinetes dos representantes da República nas regiões autónomas dos Açores e da Madeira. Qual o fim disto? Financiar a flat tax, sempre a flat tax.

Em setores como a saúde, no qual a privatização teria uma logística mais complicada, é promovido um recuo paulatino do Sistema Nacional de Saúde, deixando espaço para os privados como a CUF. Não surpreende, portanto, que a CEO da Luz Saúde (detida por capitais chineses) participe no evento de divulgação do programa eleitoral da IL. 

A IL aspira a ser a mãe das privatizações que estão para vir, mas as privatizações do passado foram trazidas ao mundo pelo centrão. À semelhança do PS e do PSD, a IL sujeita-se a um futuro em que terá de olhar para as suas filhas com vergonha.

De Cavaco a Passos Coelho, passando por Guterres

As privatizações sofreram grandes impulsos com a governação de Aníbal Cavaco Silva (1985-1995) e foram diligentemente prosseguidas pelos governos PS de António Guterres e José Sócrates. Como mencionado pelo economista João Rodrigues, do blogue Ladrões de Bicicletas, José Penedos, secretário de Estado de um governo de Guterres, afirmou numa entrevista à Visão em 1996: “por cada privatização que faço, abro uma garrafa de Champanhe”.

O curto governo PSD (2002-2004) de José Durão Barroso mostrou iniciativa para concretizar muitas privatizações, inclusive a da REN, que só acabaram por se materializar na última grande ronda, já no mandato dos credores internacionais em que Pedro Passos Coelho foi primeiro-ministro. Com a privatização de ativos como a EDP, a REN, os CTT, ANA (concessionada de forma desastrosa por 50 anos) e a Fidelidade (então parte da Caixa Geral de Depósitos), pouco restou do setor público. Em grande medida, significaram o reforço dos capitais estrangeiros em Portugal, destacando-se o chinês.

Enquanto sob a liderança de Paulo Portas, o CDS-PP guinava o PSD para medidas como o fim dos impostos sobre sucessões e doações, a IL assume agora esse papel entre as direitas, promovendo a continuação das descidas de impostos para os mais ricos e do avanço das privatizações. É na fronteira do que Passos Coelho deixou por fazer que a IL se posiciona. Embora se tenha de ter em conta a pressão da austeridade e a intervenção estrangeira, muitas das intenções do projeto de Passos Coelho ficaram na gaveta.

Por exemplo, antes de ser primeiro-ministro, Passos Coelho ambicionava privatizar a RTP. Outras privatizações, como as Águas de Portugal e a Caixa Geral de Depósitos, também ficaram pelas intenções. Nos transportes, a CP Carga foi o seu único sucesso. Nos últimos suspiros da governação de Passos Coelho, foram feitas concessões do Metro de Lisboa e da Carris a um grupo mexicano, mas acabaram por ser revertidas, pelo recém nomeado primeiro-ministro António Costa, que chegou ao poder apoiado pelos partidos à sua esquerda. Na altura, a privatização da TAP, depois da danosa administração do norte-americano David Neelman, também foi parcialmente revertida pelas concessões de Costa ao Bloco de Esquerda e ao Partido Comunista. Com o surgimento da IL, o partido passou a tirar ao PSD o fardo de ser porta estandarte da venda de ativos públicos. No entanto, o espírito privatizador não se esfumou. 

A interação IL-PSD funciona como divisão de tarefas. Primeiro, o PSD fica aliviado de não fazer essas propostas, podendo melhor chegar ao centro político (mas nunca ao ponto de rejeitar a agenda privatizadora). Segundo, mesmo não o tornando numa das suas bandeiras, um executivo PSD poderá facilmente justificar uma agenda privatizadora como o preço a pagar pelo apoio político-parlamentar da IL.

Isto veio ao de cima em 2022, num debate entre Rui Rio e João Cotrim Figueiredo. Rio admitiu a privatização da CGD se o banco “começar a ter problemas” – um critério suficientemente flexível para conservar votos ao centro mas também, quando conveniente, justificar a privatização. Nesta campanha eleitoral, Luís Montenegro já deixou bem claro ver os benefícios da flexibilidade tática que a IL lhe oferece, ao afirmar, sem hesitações, que será o seu parceiro de coligação preferencial.

Só sobrou o entreguismo

A passagem das propostas privatizadoras para a IL também está relacionada com a sua impopularidade. Nas primeiras rondas de privatizações, a compatibilização com as regras europeias e as virtudes do mercado liberalizado eram os grandes argumentos. Chegou-se a imaginar um capitalismo popular, em que cada cidadão teria uma fatia de uma empresa privatizada. Depois, largos anos passados, a angariação de fundos para abater a elevada dívida pública ganhou força, além de ser complementar à necessidade de cumprir as exigências da Troika.

À medida que as privatizações se tornaram impopulares, e ativos estratégicos foram entregues a Estados estrangeiros, a sua defesa tornou-se mais difícil. Com vários casos de degradação dos serviços, especialmente explícito no caso dos CTT, as virtudes da gestão privada perderam o brilho. 

Em alturas de campanha eleitoral, vemos partidos a disputar a autoria de números do crescimento económico, a criação de serviços públicos, o acerto das contas públicas e as subidas do salário mínimo. Nenhum partido faz uma campanha a gabar-se das privatizações que promoveu. Paira uma vergonha mal escondida sobre o PS e o PSD, por causa do papel que desempenharam nas últimas décadas. O legado das privatizações é uma chaga e, em retrospectiva, é difícil ver algo mais do que entreguismo de património nacional. 

Argumentos como “o Estado gere pior do que os privados” servem mais para manter a sanidade interna entre os militantes da agenda privatizadora do que para convencer o público. Nestas circunstâncias, a agenda privatizadora virou-se para a guerrilha, e é aí que os trolls da IL encontram o seu Che Guevara interno.

Aquando de greves na CP (que já viu a sua divisão de cargas privatizada), Rui Rocha defendeu que o dinheiro do passe correspondente a esses dias deve ser devolvido. Menos de um mês depois, propôs a concessão da CP a privados. Quando a IL fala “em defesa” da ferrovia, o ponto é contestar a CP como empresa pública. 

Quando, em 2019, a IL apresentou a proposta de impossibilitar o Estado de injetar dinheiro na banca, colocava os dinheiros injetados na CGD no centro da argumentação, esquecendo convenientemente os 15 mil milhões que o Estado injetou na banca privada, com quase sete mil milhões a serem-no só no Novo Banco até 2019. Rui Rocha desloca-se a centros de saúde para denunciar o mau estado da saúde em Portugal e, sem hesitações, propor a destruição do SNS.

O único fio condutor que une todos estes argumentos, que oscilam entre o duvidoso e a fraude pura, é a pujança ideológica para privatizar. O caso mais gritante desta guerrilha é a TAP, onde os quadros da IL trazem à política os anos de experiência como Trolls do Twitter (e antes no mundo dos blogues).

Trolls contra a TAP

A saga privatizadora da TAP não começou com a IL. Como relatado pelo jornalista Pedro Tadeu, teve um ponto alto no segundo governo de Passos Coelho, que durou 27 dias, 16 dos quais em gestão, com a sua existência devida ao voluntarismo do então Presidente da República, Aníbal Cavaco Silva. Mesmo com os avisos de António Costa da sua reversão (parcialmente cumprida), quando era claro que este seria primeiro-ministro, Passos Coelho avançou com a alienação da transportadora aérea.

Como descrito por Francisco Pinheiro, ex-adjunto do Ministro das Infraestruturas e Habitação, a venda de dois terços da TAP por apenas 10 milhões de euros contou com cláusulas como “mesmo com um terço do capital da empresa, o Estado apenas nomeava dois administradores num total de 11” e ficava responsável por toda a dívida da empresa.

Depois da reversão parcial em que o Estado ficou com 50% do capital da TAP, surgiu com estrondo a pandemia de covid-19 no início de 2020, pondo em risco a existência da transportadora aérea. A IL, tendo sempre em mente a (re)privatização da transportadora, transformou a guerrilha contra a empresa pública na marca da sua presença no parlamento.

Esta iniciou-se em cartazes com uma representação pouco dignificante de António Costa, seguida de livros lançados pelo think tank adjacente à IL (depois apresentados nas televisões em horário nobre). Os argumentos tinham como centro os 3,2 mil milhões injetados para evitar o colapso da TAP. Como bons trolls, as críticas iam de contrastar o dinheiro na TAP com políticas sociais, que a IL nunca defendeu (e até se opõe), a contestar a TAP como serviço público devido à existência de voos “estratégicos” em que a TAP não foi usada. O terreno argumentativo foi aberto com questões menores, muitas vezes com bandeiras da esquerda, para no final propor o derradeiro fim da TAP como empresa pública. 

Numa tentativa clara de replicar o fenómeno da Comissão de Inquérito ao Banco Espírito Santo que popularizou a deputada bloquista Mariana Mortágua em 2014, a IL tentou projetar o seu deputado Bernardo Blanco. O esforço para produzir bons momentos para partilhar em reels do Instagram com as perguntas de Blanco eram penosamente evidentes. A TAP ocupa tanto espaço na cabeça dos liberais, que Blanco foi premiado com o primeiro lugar nas listas por Lisboa.

A gestão privada danosa da TAP, a alienação desastrosa feita por um governo sem legitimidade e o desinteresse dos accionistas privados com a chegada da pandemia são constantemente ignorados pelos liberais. Seguindo sempre o mesmo guião, o interesse público que defendem é travado quando se trata de enfrentar os grandes interesses privados.

Mesmo quando a privatização não é o assunto central, é o pano de fundo de toda a argumentação liberal. Isto ficou demonstrado quando Carlos Guimarães Pinto, deputado da IL, troll veterano, propôs na televisão a dissolução da TAP, acompanhada da reconstrução de uma empresa pública em separado, aproveitando o mecanismo de falência para livrar a empresa das dívidas. Como bom troll, ao empilhar falhas argumentativas, força uma resposta que exige mais do que três linhas, podendo assim sentir-se triunfal durante 15 segundos - curiosamente, André Ventura segue uma tática parecida.

Obviamente, se o Estado seguisse o mecanismo que Guimarães Pinto propôs, seria arrastado para uma litigância interminável, a reconstrução de uma nova TAP em paralelo não seria uma tarefa trivial, com postos de trabalho e a posição do hub aéreo em cheque, entre muitos outros fatores. Mais crucial, se o Estado fizesse uso estratégico do mecanismo de bancarrota para se desfazer de dívidas de uma empresa pública, a IL estaria na linha da frente na defesa dos interesses dos credores.

Os fantoches de O'Leary

Há um aspecto incontornável da guerrilha contra a TAP para enquadrar a IL como força política: os grandes vencedores seriam as transportadoras aéreas internacionais. Não é preciso ser-se muito clarividente para entender que Michael O'Leary, CEO da Ryanair, tem um interesse especial no negócio da TAP, em particular nos slots no aeroporto de Lisboa. Não hesitou em classificar os apoios públicos à TAP como “deitados na sanita”, ambicionando constantemente a presença que a TAP tem no aeroporto de Lisboa, e não esconde que gostaria de absorver a TAP na Ryanair.

A posição de O'Leary não nos deve supreender. Trata-se, afinal, do CEO de uma empresa aérea que se expandiu à base de custos baixos, feitos sobre a poupanças agressivas de salários (baseadas em dumping social), fraca qualidade do serviço e apostas em receitas acessórias, como raspadinhas. Que O’Leary aspire a dominar as rotas áreas de um país com dez milhões de habitantes cada vez mais dependente do turismo é o prolongamento do seu modelo de negócio.

O que devemos estranhar é um partido com assento no parlamento português que faz proativamente claque por O’Leary, ora aplaudindo as suas investidas contra uma empresa pública de interesse estratégico, ora projetando os seus argumentos para atacar governantes em funções.

O’Leary não esconde ao que vem quando ameaça cortar voos para Lisboa caso o governo não cumpra as suas exigências de slots no aeroporto de Lisboa. Não é difícil imaginar as consequências se ele tiver o poder de limitar (pelo menos no curto prazo) o funcionamento da economia portuguesa.

É comum dizer que a IL é o partido da burguesia. Esta afirmação está certa, mas precisa de ser complementada: a IL é o representante da burguesia internacional em Portugal. Se a opção de basear a economia portuguesa no turismo é contestável que chegue, tornar os capitais estrangeiros nos grandes beneficiários ainda o é mais.

Uma TAP pública tem muitos mais beneficiários além dos trabalhadores que emprega diretamente. A perspetiva de o turismo português ser dominado por uma empresa como a Ryanair inspira medo na hotelaria portuguesa. A capacidade que este setor tem de conduzir turistas com maior poder de compra para Portugal é um fator que valorizam e a TAP é uma importante garantia para o negócio, uma vez que responde ao governo português, sobre o qual o setor do turismo português consegue exercer influência. 

Este contraste entre o interesse da agenda privatizadora e o interesse da hotelaria nacional materializou-se no caso de Miguel Quintas. Como CEO de uma agência de turismo, Quintas via o valor de uma TAP nacionalizada. Mas o Quintas candidato dos liberais à autarquia de Lisboa viu-se forçado a desistir da eleição, abandonando depois o partido.

Os burgueses confusos

Episódios como o afastamento de Miguel Quintas do partido são naturais para uma força política com a agenda da IL. As privatizações foram um passo crucial no longo processo de submissão da burguesia portuguesa aos capitais internacionais. Empresas que eram antes populadas por gestores nacionais foram desmembradas e muitos dos cargos de gestão deslocados, como a Portugal Telecom, tornada subsidiária da francesa Altice.

Podemos quase afirmar que a burguesia portuguesa joga contra si própria ao promover processos de privatizações. No caso da TAP, encontramos um exemplo particular desta contradição. Como reconhecido até pelos intervenientes na recente intervenção do Estado na transportadora aérea, houve uma derrota comunicacional da sua defesa. Mesmo que o dossier TAP não comprometa um novo mandato legislativo do PS, o assunto é visto com embaraço.

Para compreender esta derrota, devemos olhar para os setores sociais que beneficiam diretamente de uma TAP pública: os empresários do turismo, como Miguel Quintas, e, talvez mais importante, os trabalhadores da empresa.

Em ambos os casos, os interesses são contraditórios. É fácil perceber que, embora possam entrar em conflito, os capitais turísticos nacionais têm uma afinidade ideológica com empresários internacionais como O’Leary. Dentro do universo dos trabalhadores da TAP, o destaque vai para tripulação de cabine: pilotos e pessoal de bordo.

Um levantamento sociológico da TAP, ou de qualquer empresa, seria difícil obter. No entanto, uma observação destes trabalhadores da TAP, quer quando se voa, quer em contextos pessoais, mostra o grosso da sua origem social ser de meios afluentes (vulgo betos), ou que pelo menos possuem formação académica. Dada a importância da imagem e apresentação nestes empregos, e o papel histórico da empresa no transporte da burguesia nacional, o pedigree social é monetizável. Para os filhos de famílias abastadas que não conseguem seguir as passadas dos progenitores, numa economia cada vez mais primária, trabalhos como assistente de bordo na TAP, são atrativos em relação às opções de ficar por terra. Muitos nunca aceitariam o mesmo trabalho com as condições da Ryanair. Para os que não vêm de famílias abastadas, mas que se formaram e passaram ao lado de trabalhos qualificados, o raciocínio não é muito diferente.

A Carris Metropolitana recorre em larga escala a emigrantes de países africanos de língua portuguesa para colmatar faltas de pessoal. Já a TAP, mesmo em períodos de dificuldades, nunca enveredou em larga escala por essa estratégia de corte de custos, mesmo com a importância que esses países têm para a empresa. Postos de trabalho da TAP funcionam como reservatório para a burguesia portuguesa depositar os seus descendentes com perspectivas menos lucrativas.

Noutros empregos, como os pilotos e funções de gestão, o contexto social também é de maior afluência. Não é de surpreender que em 2020, na hora de receber fundos públicos para se porem os salários em dia, a Groundforce, que opera nos aeroportos, onde o contexto social é muito menos favorável, tenha sido a última a comer, e só depois de sucessivas manifestações. Apesar de operarem no mesmo negócio, é gritante o contraste entre os pilotos, que chegaram a ter direito a uma percentagem da TAP em caso de privatização, e os trabalhadores da Groundforce com salários em atraso.

Quanto à relação do grosso da população portuguesa com a TAP, as interações são pouco presentes na vida laboral, e ocasionais no dia a dia. A interação é oposta à de serviços como os CTT, onde a interação com os serviços deteriorados após a privatização são evidentes e onde a população empregada é mais representativa do português comum.

No recente livro de Hugo Mendes e de Frederico Pinheiro, antigos governantes que tiveram a TAP sob sua tutela, os autores fazem uma comparação do resgate da TAP com o caso da CGD. No caso do banco público, com “uma ligação umbilical a milhões de portugueses”, a controvérsia de o Estado colocar dinheiro na empresa não foi comparável com o resgate da TAP.

É neste remoinho de interesses contraditórios que devemos encontrar a razão de fundo para a impopularidade do resgate à TAP. Entre os grandes beneficiários diretos, muitos pertencem a camadas sociais afluentes, e é nessas que se encontra muito do apoio ao partido onde a sede de privatizações é maior. Já os setores mais favoráveis a um setor público robusto não se vêem especialmente galvanizados por uma empresa que quase só se dão conta existir nos noticiários. Enquanto antes era altamente valorizada por aqueles emigrados e as suas famílias, hoje a ligação é muito mais ténue. Embora o conjunto do país ganhe com uma TAP nacional, estes obstáculos dificultam a criação de uma agenda a favor da transportadora aérea.

Não é por acaso que o PSD é sistematicamente acusado de ter uma posição ambígua sobre a TAP. O partido liderado por Luís Montenegro vê-se em dificuldades para conciliar estas posições contraditórias. Numa lógica semelhante, Montenegro fica encurralado na questão do aeroporto: entre defender um projeto que promova o turismo ou deixar o seu camarada de partido José Luís Arnaut defender os interesses da privatizada ANA, o líder do PSD opta pela omissão envergonhada.

A eutanásia dos entreguistas

No Twitter, um membro da IL que chegou a fazer parte das listas do partido para as legislativas ficou surpreendido por a TAP cobrar 120 euros por malas maiores que as dimensões indicadas. Um defensor da privatização da transportadora aérea pública cai, ao denunciar esta prática (comum no setor e expandida por empresas como a Ryanair), numa contradição óbvia. Este episódio é oportuno como ilustração da agenda política da IL.

A CGD, a outra grande aspiração a ser privatizada, partilha do perfil social da TAP. Em especial nos altos e nos médios quadros, o banco público é composto por pessoas que podemos enquadrar como parte da pequena-média burguesia, quer os que vêm de famílias abastadas, quer os que vêm de camadas populares e atingiram altos perfis de formação. No caso de privatização do banco público, estes quadros estariam entre as principais vítimas do processo. Ao repetir-se a dinâmica que se viu em muitos grupos portugueses que passaram para as mãos de capitais estrangeiros, em particular bancos como o BPI e BES (agora Novo Banco), muitos desses postos de decisão acabariam suprimidos ou deslocalizados.

A burguesia portuguesa é cada vez mais dependente de interesses estrangeiros e esta situação não tem uma solução trivial. Tal como o militante da IL irritado com a cobrança de malas por parte da TAP, aquilo que deseja poderá não ser aquilo que pretende. Enquanto as primeiras privatizações podem ter trazido vários benefícios aos mais ricos em Portugal, a aceleração do processo e a força do entreguismo dos últimos anos pode ditar a sua eutanásia.