Jornalista, tendo trabalhado na Reuters e na Antena 1 - RTP. Ex-adjunto do Ministro das Infraestruturas e Habitação.

O Estado sem asas: um balanço da política de privatizações

É longo o debate sobre qual deve ser o papel do Estado na economia. As batalhas têm sido ganhas pelos defensores do Estado mínimo. Agora é o momento de olhar para os resultados: transferência de riqueza para o privado, perda de soberania e saída do setor público de conhecimento acumulado ao longo de décadas.

Ensaio
31 Janeiro 2024

Take 1

Dia 12 de novembro de 2015. Fecham-se numa sala dois Secretários de Estado (Isabel Castelo Branco e Miguel Pinto Luz), dois investidores privados (Humberto Pedrosa e David Neeleman) e o então presidente da Parpública, Pedro Ferreira Pinto. Sem público, sem convidarem sequer a comunicação social. Ali, os cinco fazem um dos negócios mais lesivos do interesse público da democracia: assinam, em segredo, a privatização da TAP. Preço: 10 milhões. Não dá sequer para contratar um jogador de futebol. Mas deu para comprar uma empresa com 70 anos de conhecimento, 77 aviões e 11 mil trabalhadores. Uma foto tirada pelo telemóvel de um assessor e um comunicado de imprensa fecham o negócio.

Dois dias antes, a esquerda tinha-se unido para expulsar a direita do poder e tornava públicos os acordos políticos que deram suporte à solução governativa encontrada em 2015. As três posições conjuntas expressavam claramente o compromisso de "não admissão de qualquer novo processo de privatização". Ou seja, o povo decidiu não vender a TAP, declarando nas eleições que queria uma TAP pública. Mas a direita tratou dos negócios antes de sair.

Take 2

"Marina, praias, água transparente e calor. HMMMarselha… Foge da confusão algarvia e descansa em França!!". A 29 de julho de 2019, é este o convite da ANA – Aeroportos de Portugal, nas redes sociais. "Política Patriótica e de Esquerda" é o slogan que me vem à cabeça enquanto leio o anúncio. Porquê? Recuemos então no tempo:

27 de dezembro de 2012, plena quadra festiva. O país acabou de festejar o Natal e prepara-se para celebrar o ano novo. É o momento escolhido pelo Governo para vender os dez principais aeroportos à francesa Vinci: Lisboa, Porto, Faro, Beja, Ponta Delgada, Horta, Santa Maria, Flores, Funchal e Porto Santo. Entregar um monopólio natural a uma empresa privada estrangeira, numa situação inédita a nível europeu neste setor. E para onde foi o dinheiro? Foi dividido em três lotes: 700 milhões para limpar a dívida da empresa, 1.200 milhões para o saco sem fundo da dívida pública e os outros 1.200 milhões imediatamente transferidos para salvar o Banif, quatro dias depois.

Menos Estado na economia

As empresas detidas pelo Estado assumem um papel determinante na prossecução de políticas públicas, embora a hegemonia do pensamento neoliberal nas últimas décadas tenha reduzido a presença destas sociedades na economia de múltiplos países e blocos políticos, nomeadamente na União Europeia (UE).

Portugal não foi exceção e implementou, desde o final dos anos 80, sucessivos programas de privatizações, num caminho que foi intensificado com o programa de assistência financeira do Fundo Monetário Internacional (FMI) e da UE, iniciado em 2011.

Esta última fase ficou marcada pelo total afastamento do Estado de alguns setores- chave da economia. Se em períodos anteriores a opção tinha sido a de fazer vendas parciais de capital e de manter as chamadas golden shares – ações com direitos especiais – em setores considerados estratégicos, a última vaga dificilmente poderia ser mais liberalizadora. Primeiro foram vendidas as golden shares na EDP, PT e Galp. Depois foi alienada a totalidade do capital público na EDP, na REN e nos CTT, e cedido o controlo do setor aeronáutico, com a venda da ANA e da TAP.

Dependemos de quem nos lê. Contribui aqui. 

Existem já sinais preocupantes quanto aos efeitos destas opções políticas. Nos serviços postais – e para além do acumular de prejuízos de uma empresa que era, até então, lucrativa – a entidade reguladora das telecomunicações (ANACOM) tem vindo a apontar falhas dos CTT no cumprimento de indicadores de qualidade do serviço postal universal. No setor elétrico, o nível de investimento feito pela EDP e pela REN foi reduzido para um mínimo histórico depois da privatização.

Transferência de riqueza do público para o privado

Com uma venda na época natalícia e outra quando já sabia que ia sair do Governo, a direita deixou também o país sem os principais ativos empresariais no setor do transporte aéreo. Estas privatizações foram essenciais, e nesse sentido instrumentais, para consumar o recuo da presença do Estado na economia, consolidando uma posição mais central e protegida dos interesses privados. Trata-se de uma transferência da riqueza de todos para alguns acionistas.

Em seis anos, a Vinci conseguiu já lucrar um terço do valor que investiu na compra da ANA, pelo que a este ritmo, em 2030, a Vinci terá o investimento pago (incluindo custos de financiamento e tendo em conta a inflação). Como a Vinci tem a concessão dos aeroportos até 2062 (!!!), terá trinta anos de lucros para encaixar. Se a empresa fosse pública, esse dinheiro poderia agora ser investido nos serviços públicos de saúde, educação, etc.

Dia 12 de novembro de 2015. Fecham-se numa sala dois Secretários de Estado, dois investidores privados e o então presidente da Parpública. Sem público, sem convidarem sequer a comunicação social. Ali, fazem um dos negócios mais lesivos do interesse público da democracia: assinam, em segredo, a privatização da TAP.

O aumento da riqueza privada depende do crescimento do turismo, para o qual a ANA em nada contribui. Ou seja, o Estado investe na dinamização da atividade económica e a ANA encaixa os dividendos. Os passageiros nos aeroportos nacionais aumentaram 73% entre 2013 e 2018 devido à recuperação da economia. Um dinamismo que, misturado com os aumentos sucessivos das taxas aeroportuárias (uma benesse do contrato assinado entre a Vinci e a direita), levou a que os lucros anuais da ANA tivessem disparado 2300% no mesmo período.

Todos os anos aumentam e vão aumentar ainda mais, pois a operação da ANA vai ser ampliada no âmbito do contrato armadilhado que foi assinado: a Vinci tem o direito de construir e explorar o Novo Aeroporto de Lisboa. Assim, já no próximo ano começa a ser construído o Aeroporto do Montijo [afinal ainda se está a debater onde vai ser] – mais um ativo para os franceses.

No caso da TAP, o enriquecimento dos privados à custa de todos os portugueses contou ainda com a colaboração ativa das instituições europeias. É que as regras comunitárias foram escritas de forma a obrigar os Estados a privatizar as companhias aéreas. E foi o que aconteceu com a esmagadora maioria das empresas, dado que as regras de Direito da concorrência europeu dificultam as injeções de capital do acionista público nas empresas em dificuldades. Isto é, se for uma injeção de capital privado não há problema; se for do Estado, são levantados todos os bloqueios.

Tal como aconteceu com a Caixa Geral de Depósitos: para se capitalizar a Caixa, o banco teve de assinar um acordo com a "Europa dos Direitos Sociais" para despedir trabalhadores, fechar balcões, aumentar os custos para os clientes e ainda emitir dívida "em condições de mercado", o que resultou em juros especulativos e predatórios, superiores a 10%.

As mãos gananciosas da Comissão Europeia estão obviamente por trás de todos estes negócios. Um modelo institucional e ideológico falhado destrói a economia de inúmeros países, tal como Portugal, que são depois praticamente obrigados a vender as empresas públicas para alimentar o monstro insaciável da dívida. Ao mesmo tempo, o Estado vê-se privado dos recursos gerados por essas empresas (mil milhões de lucros anuais da EDP, centenas de milhões da GALP e da REN), levando ao enfraquecimento das condições para desenvolver as políticas públicas.

Defender a venda para arranjar um lugar

As portas giratórias são um fenómeno conhecido. São muitos os que passam pelo setor público para servirem interesses privados. E fazem-no com muita dedicação e orgulho: quando a 31 de maio de 2013 o então deputado do PSD Adriano Rafael Moreira, disse, para defender a venda dos CTT, que "o Estado é, em Portugal e em todo o mundo, mau gestor de empresas", foi oportunamente apontado por "estar a falar de si próprio". Porque, como lhe respondeu a também então deputada Ana Drago, no Parlamento, 'o Sr. Deputado foi administrador da CP, não se negou, não disse, quando lhe foi feito o convite, eu não creio que o Estado seja um bom gestor e, portanto, acredito na iniciativa privada'. Não, o senhor sentou-se nas reuniões do Conselho de Administração e recebeu o ordenado.Portanto, quando diz que o Estado é mau gestor está a truncar a mensagem, porque não é o Estado, a entidade pública que representa a soberania popular que é mau gestor, são os senhores, têm nome! É o senhor! Foi mau gestor, é verdade!". Ao que o deputado do PSD responde (sem nenhuma vergonha): "No que diz respeito aos cinco anos em que tive a honra de ser administrador da CP, devo dizer-lhe que fazia parte da minha missão preparar vários serviços daquela empresa para serem concessionados, tudo numa lógica de passagem de alguns setores para o privado".Trocando por miúdos: estava a receber dinheiro do Estado, mas em vez de servir o povo que lhe pagava, estava era preocupado em arranjar bons negócios para os privados.

Em seis anos, a Vinci conseguiu já lucrar um terço do valor que investiu na compra da ANA. Os lucros anuais da ANA tivessem disparado 2300% no período entre 2013 e 2018. Se a empresa fosse pública, esse dinheiro poderia agora ser investido nos serviços públicos de saúde, educação.

Perante esta lógica de submissão a interesses privados, não é de estranhar que tanto o presidente do Conselho de Administração da TAP como o da ANA sejam antigos deputados e membros de Governos PSD. Defenderam o desmantelamento do Estado e a privatização das empresas públicas, vindo depois a arranjar lugares de topo, principescamente remunerados, nessas mesmas empresas. José Luís Arnaut, ex-deputado, ex-ministro e ex-secretário-geral do PSD, está não apenas nos órgãos de gestão de uma antiga empresa pública, mas de três: ANA, REN e Portway.

Para além de ganhar a vida a ocupar cargos nas empresas que defendeu que deviam ser vendidas, Arnaut é ainda membro de um órgão de consultores internacionais da Goldman Sachs. É aí que o advogado teve a oportunidade de demonstrar todo o seu talento ao aconselhar o banco norte americano a investir 680 milhões de euros no BES, semanas antes de este último falir.

Também pela banca passou o atual presidente da TAP, Miguel Frasquilho, uma das vozes economicamente mais liberais do PSD. Manteve sempre o cargo e o salário que tinha no BES, mesmo enquanto foi deputado.

Estado descapitalizado de conhecimento

As privatizações são, por regra, efetuadas num plano de grande assimetria negocial. No caso da ANA e da TAP, o Estado estava num colete de forças imposto pelas instituições internacionais ultraliberais, geridas a partir de Washington e do centro europeu. Sem dinheiro e numa rota de empobrecimento acelerado, o Governo colaboracionista da troika aproveitou a oportunidade para vender.

Perante estes constrangimentos fez, obviamente, péssimos negócios. O caso da ANA – Aeroportos de Portugal é particularmente ilustrativo. O Estado estabeleceu um contrato com o privado deliberadamente desequilibrado, até porque na altura o objetivo passava por maximizar o encaixe com a venda. Senão vejamos:

Permitiu à ANA aumentar inúmeras vezes as taxas aeroportuárias, com aumentos anuais bastante acima da inflação;

Entregou a uma empresa estrangeira privada o monopólio da gestão dos aeroportos nacionais;

O contrato de concessão obriga o Estado a indemnizar a ANA em caso de alterações legislativas relacionadas, por exemplo, com a proteção do ambiente, alterações ao setor, entre outros. Ou seja, sempre que a ANA perde dinheiro devido a decisões democráticas, o Estado paga. Mas o contrário já não se verifica: a ANA está a ganhar muito mais do que o previsto no momento da privatização, mas não reverte para o Estado nem mais um euro;

O contrato de concessão não permite ao Estado obrigar a ANA a investir o dinheiro que tem ganho a mais, apesar de os lucros e o tráfego terem disparado muito acima das previsões;

As obrigações relacionadas com a qualidade de serviço são ligeiras. Basta ver o estado em que se encontra o aeroporto Humberto Delgado, em Lisboa;

Para além disso, o Estado fica mais condicionado na capacidade de escolha da localização e timing da construção do Novo Aeroporto de Lisboa. Este último ponto é crucial para percebermos até que ponto foi a direita no que concerne a abdicar dos direitos de soberania, e dos interesses coletivos, na condução dos destinos do país. O Governo, na realidade, perde autonomia para escolher a localização da nova infraestrutura. O custo social e económico é incomportável: demoraria seis anos a retirar esse direito à ANA, com perdas calculadas na ordem das dezenas de milhares de milhões de euros para a economia, resultantes dos voos (e turistas) que teríamos de recusar, com forte impacto no crescimento e criação de emprego. Além disso, colocaria o Estado perante a situação de indemnizar a Vinci, pagando-lhes muito mais que os franceses pagaram pela compra da ANA. A Assembleia da República mandatou o Tribunal de Contas para efetuar uma auditoria à privatização da ANA. Em breve os resultados serão conhecidos.

Sem dinheiro e numa rota de empobrecimento acelerado, o Governo colaboracionista da troika aproveitou a oportunidade para vender. Perante estes constrangimentos fez, obviamente, péssimos negócios.

Também o contrato de venda de quase dois terços da TAP a privados foi bastante prejudicial:

O privado (Atlantic Gateway) tinha a opção, dois anos após a privatização e durante um prazo de seis meses, de comprar o restante capital detido pelo Estado. O preço ficaria dependente dos resultados de 2015, numa altura em que a gestão já seria totalmente controlada por privados. Ou seja, os privados iam definir o valor do negócio;

O capital injetado pelos privados na empresa terá de ser devolvido quando estes saírem;

Passados alguns anos, a TAP poderia tirar a sede de Portugal, acabar com o centro de operações em Lisboa (hub), dispensar totalmente a ligação às regiões autónomas, deixar de prosseguir objetivos como a "promoção do turismo e da economia nacional";

Mesmo com um terço do capital da empresa, o Estado apenas nomeava dois administradores num total de 11;

Na Assembleia Geral, o privado tinha a maioria dos direitos de voto e acordou-se que seria o privado a nomear a Comissão Executiva. Ou seja, o Estado deixou de ter qualquer poder;

A Parpública enviou uma carta de conforto aos bancos a garantir a dívida passada, presente e futura. Segundo o Tribunal de Contas este procedimento colocava o Estado "numa posição materialmente similar à da qualidade de acionista único". O privado podia estilhaçar a empresa e nunca seria responsável. No final, a conta seria paga pelo Estado (que não mandava na empresa).

Venda do conhecimento público

Com as privatizações vendem-se não apenas os ativos empresariais, mas também o conhecimento acumulado ao longo de décadas em setores muito específicos. Com a ANA pública, o Estado detinha na sua esfera um conjunto ímpar de trabalhadores altamente especializados, com conhecimentos muito aprofundados sobre o setor aeroportuário. O mesmo se passava com a TAP. Com as privatizações, todo este conhecimento passou a servir interesses privados, ao mesmo tempo que deixou o Estado com parcos recursos especializados.

Como pode o Estado efetuar uma negociação equilibrada com acionistas privados que detêm um batalhão de especialistas? Depois das privatizações, ficaram na esfera pública ‘meia dúzia’ de pessoas que percebem de aeroportos e aviação. E os que ficaram podem ser constantemente assediados para trabalharem para o privado, com condições salariais mais elevadas.

O contrato de venda de quase dois terços da TAP a privados foi bastante prejudicial. Segundo o Tribunal de Contas este procedimento colocava o Estado "numa posição materialmente similar à da qualidade de acionista único". O privado podia estilhaçar a empresa e nunca seria responsável. No final, a conta seria paga pelo Estado (que não mandava na empresa).

São os trabalhadores da TAP que sabem gerir uma companhia aérea, tal como são os trabalhadores da ANA que percebem de planeamento de aeroportos, expansão, localização, etc. Além disso, inclua-se nesta equação a capacidade de uma empresa privada altamente lucrativa, como a ANA, para contratar assessores internacionais, e compare-se com a capacidade que um Estado, como o português, tem para o fazer, quando ao mesmo tempo é obrigado a reduzir o défice e a dívida. É um campo altamente inclinado.

A arquitetura neoliberal entrega todo o conhecimento e poder financeiro aos privados, defendendo que o Estado se deve municiar de bons reguladores: os tais polícias que vão vigiar as atitudes dos privados. Se dúvidas persistissem, a crise financeira da primeira década do século dissipou-as. No entanto, o modelo mantém-se. E continua a não funcionar. Mas não é por falta de meios dos reguladores, como dizem os defensores do status quo. No caso em concreto, não funciona porque a assimetria de meios e de informação é brutal, a ponto de não ser possível colmatá-la.

Mais músculo empresarial público

Os desastres decorrentes de privatizações são inúmeros. Apenas em Portugal, para além dos já referidos, podemos ainda recordar a venda dos CTT, com despedimentos e encerramentos de balcões em massa; da EDP, com lucros milionários e rendas generosas que nos levam a pagar uma das contas da luz mais altas da UE; da antiga Portugal Telecom, que hoje em dia é uma sombra do que foi, detida por um fundo abutre; da Cimpor, que enquanto foi do Estado foi uma das maiores cimenteiras do mundo e agora não passa de uma pequena empresa dentro de um grupo turco; da reprivatização da banca nacional, peça central no processo da obviamente desastrosa financeirização da economia nacional. Para não esquecer, ainda, as vendas da Fidelidade, da REN ou da CP Carga, entre outras empresas-chave para a economia nacional.

Trata-se de processos que resultaram na transferência de riqueza e conhecimento do Estado para o privado e no enfraquecimento do poder democrático e da soberania nacional. É por isso que é essencial reforçar a capacidade empresarial do Estado, num processo indispensável para robustecer as políticas públicas e as capacidades da nossa comunidade.

Ensaio originalmente publicado na edição nº4 da Revista Manifesto, de 2019.

Manifesto