A ameaça e o retrocesso no direito ao aborto nos Estados Unidos

O direito ao aborto sempre fez parte das agendas políticas e nunca foi consensual em nenhum lado, mas há muito tempo que nos EUA o debate permanece sempre presente. O preconceito e a atitude conservadora ou antidemocrática estão instalados em situações de destaque em praticamente metade dos estados, coincidindo quase esmagadoramente com votações no Partido Republicano. 

Ensaio
13 Julho 2022

O direito federal constitucional ao aborto foi posto em causa no dia 24 de Junho de 2022 por votação do Supremo Tribunal dos Estados Unidos da América (EUA). Terminam quase 50 anos de direito ao aborto, protegido na Constituição Federal; saem agora vencedores todos os que nos 26 estados mais conservadores pretendiam limitar este direito, ou mesmo bani-lo.

O direito ao aborto sempre fez parte das agendas políticas e nunca foi consensual em nenhum lado, mas há muito tempo que nos EUA o debate permanece sempre presente, sobretudo quando as maiorias conservadoras republicanas elegem um presidente. Por exemplo, com George H. W. Bush foram criadas condições de expressão e votação anti-escolha nas principais instâncias deliberativas e legislativas, a começar pelo Supremo Tribunal Federal. 

O preconceito e a atitude conservadora ou antidemocrática estão instalados em situações de destaque em praticamente metade dos estados, coincidindo quase esmagadoramente com votações no Partido Republicano. Nesses estados vivem 57% das mulheres em idade reprodutiva e as jovens que têm salários mais baixos já sentiam em muitos estados avanços na legislação restritiva, que determinavam deslocações para estados mais permissivos.

Dependemos de quem nos lê. Contribui aqui. 

Na era de Donald Trump, verificaram-se reduções de verbas estatais para a educação sexual, acesso a contraceção e apoio do Estado a fundos de investigação nacionais ou internacionais, no caso de programas que apresentassem apoio à formação e realização de abortos. Em vários estados, o acesso das jovens com obrigatoriedade do conhecimento dos pais já era prática frequente, bem como o encurtamento dos prazos e escassez de técnicos e meios necessários à realização de interrupções de gravidez.

A informação errada, sob a capa de “ciência”, é também uma forma de condicionar a opinião através da divulgação de ideias falsas e erróneas sobre contracepção e aborto.

Os movimentos feministas norte-americanos e internacionais irão enfrentar nos próximos anos lutas vividas há um século.

Pelo menos 20 estados aceitam livremente o acesso ao aborto nas condições legais (até às 24 semanas de gestação) e terão de reforçar as suas verbas e condições para dar apoio às mulheres de outros estados que percorrerão centenas de milhas para fazer um aborto. Em alguns estados, foi ainda lançada a ameaça de o banir — Kentucky, Louisiana, Missouri, South Dakota, Arkansas e Oklahoma — e assim que o Supremo votou, as ameaças foram postas em prática. Nalguns até o aborto por doença fetal ou materna não mortal serão proibidos. As ameaças vão até à proibição de deslocação entre estados e do envio por correio de pílulas que provocam o aborto médico.

O Instituto Guttmacher, dedicado à Saúde Reprodutiva, estima que o aborto médico já atinge 39% de todos os abortos nos EUA e que 60% foram realizados antes das dez semanas.

Está aberta uma via de consequências imparáveis, sobretudo para os direitos e saúde das mulheres. Os movimentos feministas norte-americanos e internacionais irão enfrentar nos próximos anos lutas vividas há um século.

Portugal: 15 anos depois da lei da interrupção voluntária da gravidez, que desafios?

Com o referendo vitorioso de 11 de fevereiro de 2007, as mulheres portuguesas ganharam o direito à legalidade do aborto, praticado em condições de segurança em instituições de saúde, sem os riscos para a sua saúde e liberdade que implicavam um aborto clandestino. Até então, as mulheres estavam sujeitas pela lei existente a uma condenação se houvesse denúncia e julgamento, o que aconteceu várias vezes. Foi, enfim, para todas as mulheres, a conquista de um direito civilizacional, um passo na afirmação da sua dignidade.

Portugal beneficiou de toda a experiência dos países europeus que desde 1988 (em França) começaram o aborto médico. Em 2005, a Organização Mundial de Saúde incluiu a associação de Mifepristona /Misoprostol, de uso no aborto médico, na sua lista de fármacos essenciais em Medicina, tornando-se possível e sem riscos o uso destes medicamentos para interromper uma gestação em ambulatório até às 9 semanas. 

As vantagens do aborto médico sobre o cirúrgico residem no facto de ser um método que não necessita de internamento ou anestesia para a sua realização, tornando-o possível em ambulatório. O aborto médico é mais barato, não requer treino cirúrgico, é menos invasivo do que o aborto cirúrgico e simula uma situação natural. Estes factos permitem que a mulher se integre de forma diferente na sua situação, podendo controlar o processo, o que é uma pretensão de muitas mulheres.

Em Portugal, desde o início da aplicação da lei, o método medicamentoso é largamente dominante, com exceção das instituições privadas, em que é praticado essencialmente o aborto cirúrgico.

A formação sobre direitos e saúde sexual e reprodutiva deve obrigatoriamente ser um ponto curricular importante nas escolas médicas e de enfermagem.

O número de casos registados de IVG tem vindo a descer nos últimos anos, tendo nos últimos três os registos contabilizado, respetivamente,14696 (2019), 13777 (2020) e 11640 (2021). Na pandemia, o SNS conseguiu dar também resposta aos pedidos de aborto.

O recurso às unidades privadas de saúde situa-se nos 30%, tendo havido pequenos ajustamentos que podem ser interpretados como sendo devidos a maior ocupação de profissionais com a pandemia. Há agora um menor número de instituições a praticar IVG, o que pode vir a ser um problema, uma vez que os profissionais que iniciaram esta prática em Portugal estão a chegar à idade da reforma.

Estes números podem ser interpretados como tendo havido um correto uso de contracepção, o que tem sido um dos desafios que a lei trouxe. Mas temos de encarar ainda dificuldades no acesso, sobretudo das imigrantes, pessoas mais vulneráveis ou ainda as que vivem em zonas em que nos hospitais há objetores de consciência, tendo de se deslocar para outras áreas.

Um grande desafio para os próximos anos cabe ao ministério da Saúde, às Administrações Regionais de Saúde e à Direção Geral de Saúde, devendo haver coordenação de ideias e de esforços para treino de novos profissionais e de novos locais de realização de IVG, podendo as IVG medicamentosas ficar a cargo dos Cuidados Primários de Saúde, em coordenação com o hospital da área.

A formação sobre direitos e saúde sexual e reprodutiva deve obrigatoriamente ser um ponto curricular importante nas escolas médicas e de enfermagem - e dentro dos direitos reprodutivos deve constar sempre o direito ao aborto.

Portugal tem conseguido responder aos desafios que a sua lei impõe às determinadas situações, mas é altura de pensar em ajustamentos sem retrocessos. 

A idade limite para uma IVG (dez semanas mais seis dias) é a mais pequena dos países da Europa; contudo a maioria das mulheres interrompe a gravidez pelas sete semanas, o que indica bom acesso e respostas adequadas das unidades. 

Exatamente a pensar nas situações de mais difícil decisão ou maior vulnerabilidade e acessibilidade mais dificultadas, é importante repensar os prazos e propor o alargamento até às 12 semanas.

Do balanço destes 15 anos, deve sublinhar-se que o SNS e os seus profissionais foram capazes de responder a este direito das mulheres, reduzindo as suas complicações praticamente a zero e aconselhando as escolhas contraceptivas mais adequadas, tentando que a banalização do aborto não seja uma realidade.

No entanto, seria importante rediscutir alguns pontos da lei.

O período de reflexão obrigatório marca uma situação de menoridade das mulheres que, na sua esmagadora maioria, não têm dúvidas e já decidiram. Este período é um atraso para a sua vida. Deveria deixar de ser obrigatório e passar a facultativo.

Quinze anos depois da lei, Portugal tem conseguido responder aos desafios que a sua lei impõe às determinadas situações, mas é altura de pensar em ajustamentos sem retrocessos. 

Aqui e em todo o lado, perante mudanças políticas que possam existir, é preciso considerar como ponto assente na mobilização de todas e todos que não pode ser possível retroceder neste direito reprodutivo.

Tal como vimos nos Estados Unidos, o direito ao aborto pode ser posto em causa por maiorias políticas conservadoras e será sempre um assunto polémico.

Existem controvérsias quanto à forma como deve ser vivida a sexualidade, o prazer, a intimidade, a vida privada, se o aborto deve estar incluído nos direitos das mulheres e se pode refletir o seu papel na sociedade. O outro ponto da controvérsia são os diferentes códigos morais, éticos, religiosos e o direito de cada pessoa decidir por si nos assuntos da sua sexualidade e reprodução, não devendo as leis do estado obrigar ninguém. As decisões individuais devem ser respeitadas.