Peter Fitzek declarou-se rei e vive num palácio de 2,3 milhões de euros. Diz viajar pela Europa com um passaporte do país que inventou, não paga impostos e criou um banco com moeda própria. Tem ligações à extrema-direita e 650 súbditos. O Setenta e Quatro entrevistou-o uma semana antes de o reino imaginário ser alvo de buscas pela polícia.
Era uma vez, na Alemanha, um rapaz ateu que falava com os animais da floresta. Tornou-se cozinheiro e professor de karaté até que conheceu uma menina especial, atormentada por abusos e rituais satânicos. O rapaz curou-a, encheu-se de fé e percebeu que era um profeta. Deixou de ser alemão e fez-se rei do seu feudo. Acreditava que o mundo estava a viver os seus dias do fim, devido à malvadez de uma elite judaica que decidia guerras, pandemias e todas as pragas. Eram eles que controlavam a Alemanha e só ele a podia libertar. Arrastou consigo fiéis súbditos que lhe fizeram oferendas de moedas e de terras. Tornou-se muito rico e comprou um palácio.
O que parece ser um absurdo conto de fadas é, na verdade, um resumo da vida de Peter Fitzek.
O palácio existe. Chama-se Wolfsgrüner, “Lobo Verde”, em português. Ergue-se num promontório à beira da estrada para Eibenstock, uma pequena cidade da Saxónia, no leste da Alemanha, quase encostada à fronteira com a República Checa. Do humilde quiosque de salsichas que funciona na berma, é possível distinguir o seu telhado íngreme, a torre cónica e o quadriculado de madeira que embeleza a fachada. A vendedora conhece o proprietário: “O rei Peter deve estar lá em cima”.
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À entrada, uma placa anuncia a chegada a um lugar intrigante: “Bem-vindos ao Reino da Alemanha”. Em frente, uma recepção em madeira escura, lembrança do tempo em que ali funcionou um hotel. Em cima de uma mesa, os mapas e os guias sobre as atrações turísticas foram substituídos por panfletos de propaganda do banco, do seguro de saúde e do portal de comércio eletrónico do “reino”. Duas mulheres trabalham no escritório, enquanto um homem passa com material para as obras no telhado.
Peter Fitzek, 57 anos, chega cinco minutos depois. Tem um fino rabo-de-cavalo a pender da cabeça calva, um brilho invulgar nos olhos azuis-claros e um sorriso constante. Veste uma camisa escura com rebordos brancos e o brasão do reino bordado ao coração. “Chamem-me só Peter, por favor. Peter Fitzek é o meu nome na República Alemã e, portanto, já não existe”, afirma, enquanto se senta num cadeirão de braços dourados. Estamos no salão nobre: lustres, pinturas neoclássicas, um piano branco e um tabuleiro de xadrez. Há um mini estúdio de televisão montado e pedem-nos para gravar a conversa. “É uma maneira de nos defendermos. Sofremos muitos ataques da imprensa mentirosa”, justifica.
O alemão está debaixo dos holofotes desde que se tornou, em 2012, fundador e líder daquele que é considerado pelas autoridades o maior grupo Reichsbürger (Cidadãos do Império) do país: uma ideologia conspirativo-soberanista alicerçada em crenças antissemitas e que se caracteriza pela rejeição da legitimidade da Alemanha como país. Os seus elementos, cerca de 23 mil, preferem orientar-se pelas fronteiras e pelas leis do Império Alemão, nos seus formatos do século XIX ou pré-II Guerra Mundial. As autoridades interceptaram recentemente dois planos terroristas de golpe de Estado arquitetados por suspeitos ligados ao meio.
“Não nos revemos minimamente no uso de armas ou de violência e condenamos esses planos, caso se confirmem”, avisa Peter, que se autoproclamou régulo do “Königreich Deutschland” (Reino da Alemanha), assinando desde então como Peter I, Rei da Alemanha. “Deixamos entrar quem já tenha licença de porte de arma na República, mas não emitimos internamente autorizações para a compra de armamento.”
A sua aparente veia pacifista contribuiu para que, ao longo de mais de uma década, tivesse realizado um bizarro conto de fadas e convencido milhares de pessoas a tornarem-se parte dele, sem alarmar as autoridades em demasia.
Peter prescindiu do seu bilhete de identidade alemão e vive agora com documentos emitidos pelo país que ele próprio criou: incluindo a carta de condução e um passaporte branco com o símbolo do “Reino” e emitido em nome de Peter I. Mostra, inclusivamente, cartões de embarque para França, Egito e para a Madeira, em Portugal, impressos por diferentes transportadoras aéreas. “Tenho alguns problemas para sair da Alemanha, mas nunca no desembarque, em que os documentos são sempre aceites”, afirma. Ou seja, diz que viaja pela Europa com os documentos por si impressos.
O Setenta e Quatro não pôde atestar a veracidade das afirmações e das dezenas de documentos que o alemão foi mostrando ao longo da entrevista, inclusive aquele em que supostamente recebeu autorização judicial para registar uma fundação com legislação autónoma. “Com isto nunca poderão alegar que o Reino é ilegal”, sublinha.
Altamente carismático e com um discurso magnético, Peter persuadiu cerca de 650 pessoas a integrarem um país que só ele reconhece, depois de passarem um exame sobre a Constituição que ele mesmo escreveu. Conta com 4500 membros honorários que ainda não se submeteram ao teste obrigatório. Muitas dessas pessoas fazem-lhe generosos donativos: segundo a estação pública MDR, um deles entregou-lhe 250 mil euros para o ajudar a comprar o palácio em Eibenstock. O custo total foi de 2,3 milhões de euros.
“Usamos este espaço como centro de conferências, seminários e de saúde”, diz o Reichsbürger. “E temos outros espalhados pela Alemanha, que consideramos parte do nosso território, apesar dos obstáculos burocráticos na transferência de propriedade.”
Além do antigo hotel, adquiriram um segundo palácio na Saxónia, em Boxberg-Oberlausitz, no valor de 1,3 milhões. Somam-se as delegações do “Gemeinwohlkasse” (“Caixa do Bem Comum”) em várias localidades do país. Têm ainda a intenção de usar uma aldeia inteira, Rutemberg, a norte de Berlim, com 180 habitantes, como balão de ensaio para a primeira povoação auto suficiente da comunidade. “Temos as pessoas quase todas connosco, mas a República federal tem medo de que ganhemos poder”, diz. As autoridades encaram a possibilidade como uma “ameaça à segurança interna”.
Peter Fitzek nasceu numa família da classe baixa em Halle an der Saale, na República Democrática Alemã (RDA), no lado soviético do Muro de Berlim. Cresceu em Wittenberg, uma cidade entre Leipzig e Berlim, onde, no século XIII, Martinho Lutero viveu e deu origem à reforma protestante. “Desde criança que tive fascínio pela liderança e dificuldade em aceitar regras descabidas”, afirma. “Quando os meus pais chegavam do trabalho, eu nunca estava. Ia para a floresta e os animais iam ter comigo. Eu acariciava-os e falava com eles. Nenhum animal tem medo de mim.”
Tirou um curso de chef de cozinha e começou a trabalhar em restaurantes, onde diz ter-se apercebido da sua capacidade para comandar equipas. Ao mesmo tempo, ainda antes da reunificação da Alemanha, abriu um videoclube e um salão de jogos. “Também fui professor de judo e karaté e, em 1992, fiquei em quarto no campeonato europeu de artes marciais mistas”, recorda, orgulhoso.
Chegou a votar nos primeiros anos em que conheceu a democracia: “Não me lembro em quem”, ressalva. “Mas logo me desencantei com o sistema e deixei de participar”. Mais tarde, em 2008 e 2009, Fitzek concorreu como independente para a presidência da Câmara de Wittenberg e como deputado federal. Obteve apenas 0,7% dos votos em ambos os sufrágios. “Foi a minha derradeira tentativa de fazer parte do sistema e transformá-lo por dentro”, comenta. “Serviu apenas para concluir que a democracia estava minada de corrupção e interesses. Não havia nada a fazer.”
Por essa altura, já o saxão estava influenciado pelo esoterismo e pelas teorias da conspiração. “Muito por causa de livros de autores anarquistas e naturistas”, justifica. O interesse cresceu quando abriu clandestinamente, no final da década de 1990, uma pequena loja de artefactos e livros alternativos, ligados ao ocultismo e a perspetivas laterais da História e da Política.
“Conheci então uma rapariga que estava muito doente, tinha dores no ventre e ataques de pânico. Os médicos tinham atribuído os sintomas a distúrbios de personalidade, mas eu fiquei a saber que ela tinha uma vida muito sofrida”, diz o autoproclamado monarca. Através da hipnose, afirma, conseguiu saber que a mulher tinha sofrido abusos e torturas desde os quatro anos. “Tinha sido abusada sexualmente e vítima de rituais satânicos por parte polícias, políticos, juízes e vários outros poderosos.”
A tese de crianças sexualmente abusadas por clãs satanistas formados por políticos e outras classes profissionais dominantes está na raiz do QAnon, a teoria da conspiração que perigosamente se disseminou pelos Estados Unidos durante a administração de Donald Trump. Ao longo da entrevista, Fitzek referiu inúmeras correntes conspirativas como argumentos para a sua ideologia.
“Cresci ateu, como todos na RDA. Mas apercebi-me, desde esse episódio, que tinha uma relação com Deus e qual o papel que ele me tinha atribuído neste mundo”, afirma “Peter I”, que também se identifica como “Peter Menschensohn” (“Peter, Filho do Homem”), o seu alter-ego espiritual. Exibe, inclusive, documentos de processos legais em que, enquanto réu, é identificado por escrito como “Peter Menschensohn”. “Eu não lhes disse nada. São funcionários judiciais que tiveram acesso aos vídeos que a polícia me apreendeu e que sabem quem eu sou na verdade”, explica, enigmaticamente.
A par da suposta transformação espiritual, Fitzek administrava também a maior associação alemã de moedas privadas, um género de antepassado físico das criptomoedas. Aprendeu a estrutura e as regras do sistema cambista e bancário, que diz ter-lhe sido muito útil quando lançou o banco e o seguro de saúde do seu reino fantasista, considerados ilegais desde 2014 pela Autoridade Federal de Supervisão Financeira. O “Königreich” tem a sua própria moeda, o marco, que vale 1,10 euros. As moedas são de prata e as notas estão identificadas com números de série.
Começou então a ponderar fundar um país com as suas regras. Encontrou pessoas com causas comuns e ao longo de dez anos conduziu seminários pagos a 205 euros por cabeça sobre formas de abandonar a cidadania alemã, deixar de pagar impostos e garantir a auto subsistência numa comunidade alicerçada no bem comum, ou seja, cada indivíduo produz para a comunidade garantir respostas às necessidades de todos.
“Eu queria criar um regime democrático, mas as pessoas que estavam comigo não queriam assumir a responsabilidade das nossas ações”, responde. “Vi-me assim forçado a fazer uma monarquia e a assumir-me como rei, chamando a mim todas as responsabilidades. Mas é uma monarquia parlamentar, com uma assembleia eleita pelos membros.”
A coroação, celebrada em Wittenberg, em 2012, pode ainda ser vista pela internet; um ritual barroco, com direito a coroa, cetro e trono, testemunhada ao vivo por uma audiência de súbditos. “Peter I” contava então apenas com uma pequena sede na sua cidade, três funcionários e pouco mais de uma centena de apoiantes. Tem hoje 85 pessoas a trabalhar para o “reino”, uma agenda repleta de conferências e um vasto património imobiliário, financiado por uma legião de seguidores que aumentou mais de 100% desde o início da pandemia.
Peter rejeita ser de extrema-direita. Escuda-se no facto de não existirem restrições de nacionalidade, religião, cor de pele ou orientação sexual para integrar o “reino”. Os únicos que estão proibidos de o fazer são os vacinados contra a covid-19. “Porque estão gravemente doentes e esse mal pode ser passado através de relações sexuais”, argumenta.
No entanto, quando questionado sobre a sua opinião sobre acontecimentos históricos fraturantes, deixa escapar ideias patenteadas pela direita radical e antissemita. II Guerra Mundial? “Hitler era apenas uma marioneta dos Aliados e o Holocausto aconteceu porque os judeus não queriam ir para Israel. Os Rothschild [família judaica de Frankfurt, ligada à alta finança] queriam que eles fossem para lá porque o plano deles é que a III Guerra Mundial seja entre judeus e árabes”. Reunificação da Alemanha? “Uma farsa, pois a Alemanha continua em guerra, nunca foi assinado um cessar-fogo”. Guerra na Ucrânia: “Zelensky é judeu, Putin também foi educado com bases judaicas e Israel ofereceu-se para ser mediador.”
Num vídeo publicado no YouTube, a majestade Reichsbürger aparece ao lado de Nikolai Nerling, um influenciador conhecido como “Professor do Povo”. “Hoje estou sentado ao lado de um velho conhecido, Peter Fitzek”, diz Nerling, que é mencionado como extremista de direita e negacionista do Holocausto no relatório dos serviços secretos da Baviera e que até já foi condenado por incitamento ao ódio.
Numa mensagem dirigida a um desistente da sua seita na internet, Peter escreveu: “Um certo grupo étnico, de nariz proeminente, viveu muito tempo em mentiras semelhantes e ainda espera o seu Salvador”. Entretanto, o líder do “reino da Alemanha” apresentou as suas desculpas: “Há pessoas boas e más em todos os lugares. Isso não tem nada a ver com religião e cor de pele. Nunca mais usarei essa comparação”.
As questões políticas não são dominantes, todavia, nos 127 casos que pendem sobre “Peter I” nos tribunais, a que se somam outros tantos contra a organização. O grosso são acusações por documentação falsa e por conduzir sem carta, mas as mais gravosas são por incumprimento fiscal e fraude financeira. Foram os crimes financeiros relacionados com as transações não autorizadas do seu banco e abuso de confiança dos seus clientes que o levaram à prisão, em 2017, para cumprir uma pena de três anos e oito meses.
“Usei esse tempo na cadeia para aprender ainda mais sobre Direito e para escrever dois livros, de mil páginas cada um, sobre a minha ideologia. O pacote das duas obras com alguns seminários custa mais de mil euros”, afirma.
Peter assume a sua própria defesa em tribunal. Um trabalho que, diz, o deixa dormir apenas entre três a seis horas por dia. O seu recurso para o Tribunal Supremo levou a que cumprisse apenas metade da pena, pois o julgamento acabaria anulado por causa de “erros processuais”. Uma vitória judicial que passou a usar como selo de credibilidade.
Uma vitória que produziu resultados: as autoridades de supervisão financeira detectaram transferências de 500 diferentes contas, na ordem dos 2,4 milhões de euros, para os cofres do cadastrado. O Departamento de Proteção da Constituição da Saxónia já alertou contra o investimento na organização. “Aparentemente, existem muitos apoiantes que estão realmente dispostos a deixar as suas economias num país que não existe”, disse a porta-voz, Patricia Vernhold, ao jornal Süddeutsche Zeitung. “Nós só podemos alertar os investidores de que não vão ter esse dinheiro de volta. Esse dinheiro vai desaparecer.”
Peter alega que quem dá o dinheiro o faz plenamente consciente de que está a contribuir para a causa comum. O esquema está, no entanto, na mira das autoridades: a maioria dos alemães não entende como é que as pretensas instituições financeiras de um radical de direita continuam em operação e, além disso, a cena reichsbürger tornou-se mais escrutinada após a descoberta dos planos de golpe de Estado.
Uma semana depois da entrevista de Peter Fitzek ao Setenta e Quatro, a 23 de fevereiro, a Autoridade Federal de Supervisão Financeira conduziu buscas nas três sucursais da “caixa do bem comum” do “Reino da Alemanha”, em Wittenberg, Dresden, na Saxónia, e em Menden, na Renânia-Vestfália do Norte (noroeste da Alemanha), apreendendo dezenas de caixotes com documentação e encerrando as lojas.
Em Dresden, as operações aconteciam no balcão de uma padaria. O “Reino” deixou uma mensagem na porta, interpretada como um incentivo à amotinação: “Em caso de emergência, as chaves encontram-se na esquadra da polícia”.
A história ainda vai a meio, mas tudo aponta para que o “rei” não tenha um final feliz. Afinal, por muito bem que um conto de fadas seja contado, a maioria continua a saber distingui-lo da realidade.
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