O leque de suspeitos do plano de ataque ao parlamento alemão desfez todas as dúvidas sobre a infiltração da extrema-direita nos movimentos anti-vacinas. Num deles, o Setenta e Quatro encontrou um neonazi que viveu anónimo em Évora até ser detido e extraditado de Portugal.
Antes da invasão ao Capitólio, em Washington D.C., por apoiantes de Donald Trump, e da vandalização das sedes do poder em Brasília por militantes de Jair Bolsonaro, o primeiro ensaio de assalto a um quartel-general da democracia ocidental aconteceu em Berlim, na Alemanha. Na tarde de 29 de agosto de 2020, um protesto supostamente pacífico contra as medidas de combate à pandemia de covid-19, organizada pelo movimento Querdenken (Pensamento Lateral), juntou cerca de 100 mil manifestantes e acabou com centenas deles a irromperem pela escadaria do parlamento e a lutarem com a polícia para entrarem no edifício.
As imagens depressa se tornaram virais: manifestantes a chorar de alegria, bandeiras da Alemanha imperial agitadas diante do templo da democracia e brindes com cerveja entre nacionalistas e hippies esotéricos. Um pequeno número de polícias conseguiu travar a tentativa de ocupação até à chegada de reforços. O país ficou em estado de choque.
O desmantelamento da rede que desejava fazer um golpe de Estado em Berlim ofereceu provas sobre o amadurecimento de alianças entre a extrema-direita e vários grupos orientados por teorias da conspiração.
E mais incrédulo ficou quando a dissecação dos vídeos revelou que na linha da frente estavam alguns dos mais perigosos radicais de extrema-direita. Não faltava Rüdiger Hoffman, ex-funcionário do partido nacional-socialista NPD, perpetrador de vários ataques a imigrantes e condenado a três anos e meio de prisão por tentativa de homicídio. Ele foi o principal instigador da invasão. O ataque não só envolveu mais de 20 indivíduos vigiados pelo Departamento de Proteção da Constituição (BKI) – como os violentos Dominik Röseler, fundador do gangue nacionalista “Hooligans contra Salafistas”, ou Rick Wegner, um neonazi mestre de artes marciais e “cão de fila” nos protestos anti-imigração do PEGIDA –, como também deputados e membros do Alternativa para a Alemanha (AfD). O partido de extrema-direita populista tem representação parlamentar e pertence ao mesmo grupo político europeu, o Identidade e Democracia, que os portugueses do Chega.
Foi uma autêntica constelação de entusiastas da velha extrema-direita, de cabeça rapada e botas da tropa, e da nova, de ténis desportivos e penteado da moda, salpicada por libertários avessos ao uso de máscara e seguidores das mais diversas correntes conspirativas.
Como se chegou a esta mistura? Tobias Ginsburg, jornalista que esteve dois anos infiltrado em movimentos de extrema-direita e autor de três livros, diz ao Setenta e Quatro que nos últimos tempos reencontrou velhos conhecidos de grupos xenófobos em manifestações contra as vacinas em que se imiscuiu.
“Alguns deles são muito lúcidos e perceberam prontamente que a revolta contra as restrições à liberdade individual ordenadas pelo governo era terreno fértil para recrutar pessoas para a sua luta”, reitera. “E, assim, vi indivíduos que há uns anos não eram neonazis e até tinham medo deles, de repente, a marchar lado a lado com eles. Eram pessoas com quem eu simpatizava. E atrás deles levavam senhoras de meia-idade que nem faziam ideia de que os organizadores dos protestos estavam ligados à extrema-direita mais radical”.
Ginsburg focou a sua investigação nos Reichsbürger, o meio do qual saíram os 55 suspeitos que há dois meses provocaram a maior operação contraterrorista da história da Alemanha, levada a cabo para travar um violento plano de golpe de Estado. O jornalista escreveu “Fuck the System” na máscara e recebeu de imediato a atenção dos organizadores. “Alguns eram Reichsbürger e até levavam as suas bandeiras imperiais. Ninguém os questionava. A pandemia foi para eles a tempestade perfeita”, afirma.
Dois anos e meio depois do ataque ao parlamento, o desmantelamento da rede destinada a consumar o golpe de Estado dos “cidadãos-soberanos” em Berlim ofereceu provas sobre o amadurecimento de alianças entre a extrema-direita e vários grupos orientados por teorias da conspiração. Mais de metade dos suspeitos eram participantes assíduos em ações de protesto contra máscaras e vacinas, escreveu o jornal Tagesspiegel. Não é claro se começaram por aí e se acabaram por cair na teia dos Reichsbürger, ou se já tinham convicções antissemitas e imperialistas quando se juntaram aos Querdenkers.
O ritual repete-se todas as segundas-feiras, pelas 18h30m, desde meados de 2020: Tom Uller, 61 anos, estaciona a sua carrinha no meio da Praça Nelson Mandela, em Nuremberga, a segunda maior cidade da Baviera, no sudeste, e começa a discursar da traseira do veículo para a plateia atenta.
Encostados a um banco de jardim, há pilhas de cartazes com as mais diversas palavras de ordem: “Demissão de todos os ministros incompetentes! Especialização em vez de ideologia”, “Regras da liberdade = acordar, questionar, tirar a máscara e viver sem medo”, “Fora com a Nato! Amizade com a Rússia. Bloco soberano”. São apenas alguns exemplos. As mensagens do “contra” são à escolha do freguês; quem chega escolhe o cartaz com que mais se identifica e junta-se à manifestação. O que importa é ter um pensamento alternativo ao dominante.
Isso explica, parcialmente, a heterogeneidade dos participantes. “Temos libertários de esquerda e de direita, ecologistas, anarquistas, esotéricos, enfim, qualquer um que pensa pela sua própria cabeça”, diz Tom, ao Setenta e Quatro. O sociólogo e administrador de bens imobiliários avançou com a Team Menschenrechte (Equipa Direitos Humanos) após o anúncio do primeiro confinamento, no início da pandemia, em março de 2020, com o qual não concordou.
“Sempre questionei o meu pai sobre as razões de a sua geração ter obedecido tão cegamente aos nazis. Ele dizia-me que aquela gente era obcecada, doentia, cruel. Eu não percebia. Só quando o governo tirou a liberdade aos cidadãos por causa da pretensa pandemia e eles obedeceram, é que entendi o que ele queria dizer”, conta o líder do movimento. “Mas recusei-me a fazer parte do rebanho”.
Passou a discursar na rua depois de um polícia o mandar para casa quando ele queria pôr uma rosa branca na Rua dos Direitos Humanos. “Não havia ninguém sequer em redor que eu pudesse contaminar. Achei aquilo absurdo”, recorda. Rapidamente percebeu que não estava sozinho na sua indignação. No pico da pandemia, Tom chegou a liderar manifestações com dezenas de milhar de “pensadores laterais”, furiosos com o debate sobre a obrigatoriedade das vacinas e uso compulsivo de máscaras. “Admito que também encontrei nisto um escape, um lugar para exprimir as minhas posições e frustrações.”
Em 2012, o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras deteve Gerhard Ittner em Montemor-o-Novo com base numa denúncia anónima.
O psicólogo social Andreas Zick, da Universidade de Bielefeld, aponta precisamente a integração numa comunidade como um dos fatores de atração de movimentos alicerçados em mentiras ou factos não comprovados. “Escolhes uma conspiração e recebes um grupo. Essa comunidade disponibiliza-te uma rede de novos contactos e a sensação de recuperar o poder e a liberdade, bem como soltar a frustração causada pelas complexas explicações para os maiores problemas mundiais”, explica.
Para Tom, quase tudo o que chega aos cidadãos comuns através das notícias é encenado. É o caso da tentativa de invasão ao parlamento. “Eu estava lá e vi os tipos de extrema-direita concentrados em redor da estátua de [Otto von] Bismarck. Foi a própria polícia que lhes abriu as barreiras para poderem subir as escadarias. Transformaram um protesto normal numa ação de neonazis. Muito conveniente”, opina.
Também não acredita na narrativa sobre o golpe de Estado congeminado pelos Reichsbürger, aliados a indivíduos de movimentos congéneres do seu. “Tanto aparato para um grupo de pessoas com umas ideias loucas. Alguém acredita que aqueles tipos iam fazer um golpe de Estado? Por favor… a polícia até avisou a imprensa da hora e do local das detenções. Não faltaria que agora prendessem toda a gente com ideias malucas. O objetivo foi transmitir medo e denegrir os movimentos alternativos”.
Faz tudo parte de um plano, afirma, para identificar os “pensadores laterais” com a direita radical. A tese é evidente num dos cartazes disponibilizados, erguido por um homem de sobretudo abotoado até ao pescoço: “Se os cidadãos são incómodos, tornam-se subitamente de extrema-direita”. Tom, leninista e votante tradicional do Die Linke, o partido de esquerda, não rejeita, porém, intentos de infiltração da extrema-direita nas manifestações. “Têm sido mais nos últimos meses. Mas o que podemos fazer? Proibimos qualquer simbologia neonazi, mas, se chegarem aqui sem estarem identificados, não podemos adivinhar o que está dentro das suas cabeças”.
Na cabeça de Gerhard Ittner, contudo, quase toda a cidade sabe ao que vai. O neonazi da velha guarda, de 63 anos, foi identificado por diversas ocasiões nas manifestações organizadas por Tom e pela sua equipa, a desfilar pela cidade e a falar com outros manifestantes. Vídeos e fotografias confirmam a sua presença. “É óbvio que não estava ali para gritar umas frases contra as máscaras”, diz Birgit Mair, especialista em extrema-direita no Instituto de Ciências Sociais, Educação e Consultoria. “Estava a recrutar pessoas para o submundo neonazi, que foi o que ele fez a vida toda.”
Em março de 2005, acusado de incitamento ao ódio, insulto a comunidades religiosas e disseminação de propaganda para organizações inconstitucionais, Ittner pôs-se em fuga no dia do veredito. Acabou condenado in absentia a dois anos e nove meses de prisão.
Por esta altura, já se tinha tornado conhecido pelas suas sucessivas aparições em encontros neonazis, onde proferia discursos inflamados a negar o Holocausto, a elogiar Adolf Hitler e a incentivar perseguições a estrangeiros. Consideravam-no uma figura de proa da cena neonazi da Baviera. Não trabalhava e recebia assistência social do Estado. Quando lhe perguntavam pela profissão, respondia sempre: “Protetor do Império Alemão”, exatamente o mesmo que muitos Reichsbürger afirmam ter como ocupação. “Ittner é um neonazi perigoso disfarçado de Reichsbürger e agora também de ativista contra as vacinas”, diz Mair.
Nos sete anos em que esteve desaparecido, os procuradores acreditam que Ittner se manteve ativo através da disseminação de discurso de ódio em vários fóruns da extrema-direita na internet. Até que, em 2012, o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), em Portugal, recebeu uma denúncia anónima a alertar para a presença numa herdade do Alentejo de um indivíduo sob o qual pendia um mandado de captura internacional.
A 12 de abril desse ano, o SEF deteve Gerhard Ittner em Montemor-o-Novo com base numa denúncia anónima que indicava a sua presença numa herdade da zona. Como o próprio diria mais tarde em tribunal, vivia “como um verdadeiro agricultor, rodeado de porcos, galinhas e cavalos”. Desconhece-se como conseguiu viver na clandestinidade e sem uma profissão remunerada no passado, bem como se agiu sozinho ou se tinha alguma rede de apoio em Portugal.
Extraditado para a Alemanha, cumpriu a pena a que havia sido condenado. Devia ter sido libertado em 2014, mas, como se abriram novas investigações, ficou sob custódia até ao final do ano seguinte. Membros de partidos de extrema-direita e aficionados locais do movimento anti-islâmico Pegida manifestaram-se em frente à prisão de Nuremberga diversas vezes. “Liberdade para Gerd Ittner e para todos os prisioneiros políticos”, gritaram.
Desde que saiu da prisão, Ittner tem circulado pela cena Reichsbürger, creem as autoridades. E não perdeu as ligações ao universo neonazi. A sua presença ao lado de alemães comuns nas marchas das segundas-feiras em Nuremberga faz Birgit Mair estremecer. “Como é que eles ousam chamar-se ‘Equipa Direitos Humanos’ se permitem a presença de pessoas como Ittner ou o líder local do [partido nacional-socialista] NPD? Eles tinham a obrigação de não deixar estas pessoas entrar”.
Não era apenas a extrema-direita obscura e clandestina que andava a preparar um brutal ataque à democracia. Pelo menos três dos suspeitos do ‘golpe Reichsbürger’ estavam ou estiveram ligados ao AfD, terceira força política nas últimas eleições legislativas federais, em 2021, com 12,6% dos votos.
Apesar de o caso mais mediático ser o da juíza e antiga deputada dos populistas de extrema-direita, Birgit Malsack-Winkemann, a história de Christian W., 44 anos, dirigente e deputado municipal da AfD em Olbernhau, na Saxónia, leste da Alemanha, é a mais paradigmática no que toca à promiscuidade entre os golpistas e os negacionistas da pandemia.
O político assumiu funções na autarquia em 2019. Em consequência do anúncio do primeiro confinamento, anunciou as “Marchas Corona” – um protesto semanal contra as medidas para limitar a propagação do vírus da covid-19. De megafone em punho, Christian W. arrastou centenas de cidadãos para a causa.
“Não é apenas a crescente vontade de usar a violência que é preocupante, mas também os sentimentos de extrema-direita estarem a ameaçar avançar para o centro político, ao ponto de até pessoas instruídas que servem o Estado se estarem a envolver", disse a deputada da CDU Catarina dos Santos Firnhaber.
Em 2021, começou a disseminar a ideologia Reichsbürger, ao defender que a República Federal Alemã era uma empresa gerida pelos Estados Unidos e outros Aliados, e não um país. Opôs-se veementemente ao acolhimento de refugiados. Em 2022, a sua casa foi alvo de buscas e apreenderam-lhe várias armas que trouxera do clube de tiro que presidia.
Na passagem de ano de 2022, num chat, já dava indicações do plano em curso: “Feliz Ano Novo! O ‘big bang’ [grande explosão] desta vez não chega na viragem do ano, mas um pouco mais tarde”, escreveu num grupo de Telegram de antigos veteranos do exército que também participavam nas manifestações contra os confinamentos. A sua radicalização foi tão vertiginosa que pediu a demissão do partido. No passado 7 de dezembro foi preso por envolvimento na rede terrorista.
“Não acredito que este grupo tivesse os meios e o apoio popular necessários para derrubar uma democracia consolidada como a alemã”, diz Birgit Mair. “A maior ameaça à democracia é a AfD. Não só pela sua presença constante nestes esquemas criminosos, mas, essencialmente, pelas políticas que defende no parlamento e pelo apoio que vai reunindo dos partidos conservadores.”
O partido alemão, que ainda no mês passado participou, a convite de André Ventura, na última convenção do Chega, tem andado debaixo de fogo por causa da alegada ligação de alguns dos seus dirigentes com o meio Reichsbürger. A 1 de fevereiro, Alice Weidel, uma das presidentes, foi acusada de usar terminologias associadas ao léxico dos “cidadãos-soberanos” num e-mail escrito em 2017, a que a estação pública de tv ZDF teve acesso. Descreve árabes e ciganos como “povos culturalmente estranhos importados para o país para invadir a sociedade alemã”. A culpa é do governo, a que chama de “porcos” e “fantoches dos poderes vitoriosos na II Guerra Mundial”. Questionada pelos jornalistas, Weidel rejeitou esclarecer a autoria da mensagem.
Andreas Zick, especialista em radicalização, acredita que o AfD se posicionou como braço parlamentar de movimentos como os Querdenker e os Reichsbürger: “Ao levantarem na Assembleia posters com uma cruz sobre a Constituição, defendendo o fim da lei fundamental do país, os deputados do partido colam-se à base ideológica dos Reichsbürger”, comenta. “Eles querem representar estas vozes das conspirações. Podem até nunca expressar apoio às suas ações de rua, mas deixam explícito que podem contar com a sua representação política.”
Com presença nas ruas e no parlamento, a extrema-direita pôde soltar-se das franjas da sociedade, onde até à transição de século operava através de ações avulsas de bandos de skinheads. A ideologia sente-se já na medula da sociedade, como mostram as profissões dos membros da célula terrorista recentemente descoberta: médicos, polícias, empresários, políticos, funcionários públicos, advogados, juízes. “Nestas novas cenas de extrema-direita, que se alteraram com mitos conspirativos durante a era corona, a ligação com os meios burgueses tornou-se mais forte”, diz Zink. “Há um influxo de ‘cidadãos normais’ que são radicais no seu tempo livre e nos seus nichos de extrema-direita, mas que se mantêm ligados às suas profissões, muitas no setor público, no quotidiano.”
Num estudo dirigido à classe média alemã, em 2021, Zink identificou atitudes da extrema-direita autoritária no núcleo da sociedade. 45% dos inquiridos concordou absoluta ou parcialmente com que “é preciso mostrar mais resistência contra as políticas atuais”. 16% considera que os “partidos do governo enganam as pessoas”, ao passo que 20% concorda parcialmente. “As novas correntes ideológicas encontraram espaço em preconceitos que a classe média já tinha, mas que receava exteriorizar”, diz o académico, que diz já ter perdido a conta às ameaças de morte recebidas por e-mail.
Os deputados da nação, alvos prioritários do golpe, não são indiferentes à tendência. Catarina dos Santos Firnhaber, a primeira deputada de ascendência portuguesa no hemiciclo alemão, eleita pela CDU, de centro-direita, encara o plano dos Reichsbürger como um perigo sério. “Não é apenas a crescente vontade de usar a violência que é preocupante, mas também os sentimentos de extrema-direita estarem a ameaçar avançar para o centro político, ao ponto de até pessoas instruídas que servem o Estado se estarem a envolver. Devemos reconhecer esse fenómeno, por mais doloroso que seja”, afirma ao Setenta e Quatro, sublinhando que já há em entidades públicas alemãs agentes encarregues da prevenção do extremismo. O mesmo acontece nos departamentos afetos às forças de segurança.
Hanau, 19 de fevereiro de 2020 – 11 pessoas morreram vítimas do tiroteio desencadeado por Tobias Rathjen, de 43 anos, um apoiante esquizofrénico de múltiplas teorias da conspiração de extrema-direita. Após o ataque a dois bares de shisha, onde alvejou imigrantes, matou a sua própria mãe antes de se suicidar. No vídeo que deixou, falava da erradicação dos povos de dezenas de países, citava Hitler e algumas teorias dos Reichsbürger e de QAnon. Halle, 9 de outubro de 2019 – Após não ter conseguido entrar na sinagoga local, onde pretendia efetuar um massacre, o agressor Stephan B., de 27 anos, matou uma transeunte e um cliente de um restaurante de kebab, ferindo mais duas pessoas. O terrorista tinha profundas crenças antissemitas. Kassel, 2 de junho de 2019 – Walter Lübcke, administrador municipal em Kassel, no centro do país, foi assassinado no terraço de sua casa, com um tiro na cabeça, pelo extremista neonazi Stephan Ernst, ligado ao grupo terrorista Combat 18. O político passara a receber muitas ameaças da extrema-direita desde que apoiara o acolhimento de refugiados e condenara as ações do grupo xenófobo Pegida. Munique, 22 de julho de 2016 – David Sonboly, de 18 anos, abriu fogo sobre os adolescentes que estavam à porta do Macdonald’s num centro comercial de Munique. Matou nove. Só em 2019 é que as autoridades classificaram o massacre como um crime de extrema-direita, depois de revelarem o manifesto nacionalista e xenófobo do atirador. |
O crescimento do extremismo na Alemanha transpira dos números de crimes com motivações políticas recolhidos pela Polícia Criminal (BKA) que, em 2021, atingiram níveis sem precedentes. Registaram-se 55.048 ocorrências, um aumento de 23% face a 2020. Cerca de 22 mil desses crimes partiram da extrema-direita, enquanto dez mil foram atribuídos à extrema-esquerda.
Pela primeira vez, as autoridades registaram um número elevadíssimo de ofensas à lei cuja prática não corresponde às clássicas classificações de direita ou esquerda: 21.340 casos – um aumento de 147%. A maioria esteve ligada aos protestos contra as medidas de combate à disseminação da covid-19. Um cliente de uma bomba de gasolina, por exemplo, matou a tiro o funcionário do estabelecimento quando este o obrigou a entrar de máscara.
A ministra do Interior, Nancy Faeser, sublinhou que 41% das vítimas de crimes violentos foram atacadas por agressores da direita radical. “É a maior ameaça extremista à nossa democracia”, disse em conferência de imprensa, em maio do ano transato. A governante mostrou-se particularmente sensível ao aumento de 29% de crimes de índole antissemita: 2552 do total de 3027 dessas infrações foram cometidas pela extrema-direita. “Uma desgraça para o nosso país”, afirmou, dada a responsabilidade histórica pelo Holocausto.
A responsável pela segurança interna considerou particularmente “vergonhoso” que alguns oponentes radicais das restrições pandémicas tenham banalizado o genocídio cometido pelos nazis contra os judeus, usando como protesto as estrelas amarelas com que os nacional-socialistas identificavam o povo semita.
Isso também aconteceu nas concentrações da “Equipa Direitos Humanos”, em Nuremberga. Hoje, com o novo coronavírus praticamente afastado da agenda mediática, as manifestações são muito menos participadas – cerca de 400 pessoas, na ação testemunhada em Nuremberga pelo Setenta e Quatro. A grande motivação tem sido a contestação à guerra na Ucrânia, especificamente no que toca à ajuda militar prestada pelo governo alemão a Kyiv. “O assunto provoca bastante divisão”, comenta Andreas Kaesar, engenheiro nuclear que faz parte do grupo. “Temos tido dificuldade em encontrar causas que unam toda a gente depois da pandemia.”
A marcha percorreu uma cidade com uma história particularmente talhada para entender o terrorismo de extrema-direita no país. Nuremberga foi o local escolhido por Hitler para albergar o recinto de comícios do partido nazi – um gigantesco complexo meio abandonado que ainda assombra a cidade –, fazendo dele a jóia da coroa da propaganda nacional-socialista. Porém, foi ao mesmo tempo o palco escolhido para o julgamento dos dirigentes nazis depois da guerra.
De imediato, nazis inconformados com a derrota na II Guerra Mundial tentaram atacar à bomba o tribunal onde decorriam os julgamentos. A 7 de janeiro de 1947 rebentaram com o Spruchkammer, a instituição encarregue da ‘desnazificação’, para um mês depois plantarem os explosivos na sede do partido de centro-esquerda SPD. Os bombistas deixaram panfletos com a inscrição: “Hitler é o nosso líder”.
Nos anos 1960, foi nas imediações de Nuremberga que Karl-Heinze Hoffmann criou o Wehrsportsgruppe Hoffmann, uma milícia neonazi que dava treino paramilitar na floresta da região. Por lá passaram os autores do ataque à bomba ao Oktoberfest, em Munique, em 1980 (13 mortos e 200 feridos), e do assassinato no mesmo ano do casal judaico Shlomo e Frida Poeschke, na cidade vizinha de Erlangen.
“Nuremberga e outras cidades emblemáticas para o nazismo estiveram sempre entre os alvos prediletos dos terroristas de extrema-direita”, garante o psicólogo Andreas Zick. “A geografia e a história não se podem desassociar de alguns fenómenos ligados ao extremismo e à penetração de ideologias conspirativas”, argumenta E, como exemplo, refere a região de Baden-Württemberg, onde nasceu o movimento Querdenken. Lá existe, continua, “um legado de resistência ao Estado que vem do século XIX, coligado a uma forte predisposição para correntes holísticas ou esotéricas”, enquanto no leste da Alemanha “prevalece uma suspeita muito densa em relação ao governo em Berlim, resultante da descriminação que as pessoas sentiram aquando da reunificação do país”. Por isso, a conclusão a que se chega é a de, ao se analisar “o mapa do terror, constatar-se uma especial incidência nestes locais”.
Em nenhum outro local, a organização terrorista neonazi Nationalsozialistische Untergrund (NSU) matou tanto como em Nuremberga: três das suas dez vítimas, principalmente imigrantes de origem turca, foram assassinados na cidade bávara. As suas fotografias estão afixadas nos locais dos homicídios, acompanhadas por mensagens como “NSU nunca mais!”. Foram mortos a sangue-frio nos seus pequenos negócios ou à porta de casa.
Os assassinatos ocorreram entre 2000 e 2006. A polícia nunca encarou seriamente a possibilidade de se tratarem de crimes de ódio racial, preferindo investigar hipotéticas ligações das vítimas ao submundo do tráfico e do crime gerido pelas máfias turcas. Na imprensa, os casos foram infamemente designados como “os assassinatos do kebab”.
Só em 2011 foram conhecidos os terroristas: Uwe Mundlos, Uwe Böhnhardt e Beate Zcshäpe. Os dois primeiros suicidaram-se assim que foram apanhados pela polícia. Durante o julgamento de Zcshäpe, em 2013, os procuradores, certos de que o trio não podia ter estado tanto tempo escondido sem ajuda, procuraram encontrar cúmplices. Um dos interrogados foi Gerd Ittner, o extremista que acabara de ser extraditado de Portugal.
Nos anos 1990, Ittner foi orador no Thüringer Heimatschutz, a organização onde foram radicalizados os membros da NSU. Era amigo do líder, Ralf Wohlleben, posteriormente condenado como cúmplice dos terroristas e facilitador dos assassinatos. Em carta enviada da prisão a um jornal local, o neonazi que esteve escondido no Alentejo descreveu Wohlleben como “um camarada política e humanamente impecável” e “político inteligente e retoricamente talentoso”. A sua proximidade com o núcleo da NSU não se fica por aqui. Em 2001, distribuiu folhetos pela cidade com Mandy S., aka Mandy-Poder-Branco, que ajudou a terrorista Beate Zschäpe a obter documentos falsos.
Confrontado pelos procuradores, Ittner respondeu que nem sequer conhecia os nomes dos homicidas. Mas estes não ficaram satisfeitos com as respostas para uma coincidência perturbadora. A 26 de agosto de 2000, o extremista foi apanhado na posse de panfletos de propaganda em Nuremberga que continham a seguinte mensagem: “1 de setembro de 2000 – a partir de agora vamos atirar de volta”. O texto acabava com a frase: “Aguardar novas ordens (dossiê ou ataque de quarta-feira)”.
Pouco depois, a 9 de setembro, o imigrante turco Enver Simsek era assassinado com oito tiros à queima-roupa quando vendia flores à beira da estrada. Foi o primeiro ato de terror de uma década sangrenta. A acusação nunca conseguiu obter provas que incriminassem Ittner.
Anos mais tarde, no ataque ao parlamento, o extremista de Nuremberga voltou a aparecer publicamente, agora na companhia daqueles que se recusavam a ser vacinados contra a covid-19. Subiu a escadaria e foi dos que mais violentamente lutou contra a polícia. Os Querdenker chamaram-lhe o “Dia da Liberdade”.
Artigo corrigido às 11h30 de 28 de fevereiro de 2023 sobre a localização da detenção de Gerhard Ittner.
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