Aprendeu a ler e a escrever com quatro anos. Nunca mais aprendeu nada. Já foi assistente editorial, agora recebe um bom salário.

A sobrexposição das crianças na era da realidade aumentada

Paul Tremblay é um dos mais importantes escritores de literatura de horror da atualidade. Fantasmas da Mente, traduzido de forma infeliz, é o seu romance mais conhecido. Esta história torna-se incontornável numa altura de devassa da privacidade na Internet.

Recensão
28 Setembro 2023

A relação da edição portuguesa com os chamados “géneros do corpo” é bastante difícil. Em todo o mundo, a literatura de comédia, a erótica e o horror são tratados como parentes pobres de uma forma de arte que não pode abdicar da sua elevação para poder continuar a justificar a sua primazia. É-lhes, apesar de tudo, permitido existir. 

Em Portugal, se a ficção científica e a fantasia foram conseguindo espreitar de debaixo da sobranceria de um mundo editorial muito averso ao risco, a relação destes três subgéneros com a boçalidade malcheirosa que é a nossa carne reduziu-os à quase inexistência na nossa cena literária e livreira.

Até há bem pouco tempo, o próprio Stephen King, cujos livros venderam mais de 400 milhões de exemplares em todo o mundo, não via as suas novidades publicadas cá. Lentamente, isto está a mudar.

Um dos grandes orgulhos da minha (curta) carreira no mundo editorial foi ter dado o meu pequeno contributo para que as duas chancelas com que mais trabalhei (Topseller e Cavalo de Ferro) abrissem um espacinho para o horror nos seus catálogos. Agora, recupero este livro muito especial para a crítica porque os temas de que trata se tornaram incontornáveis.

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O que significa a privacidade para nativos do digital?

O enredo de Fantasmas da Mente centra-se numa pequena família nuclear nos Estados Unidos e parte de um mote muito familiar para quem conhece bem o cânone do género: uma menina, Marjorie, começa a ter comportamentos incompreensíveis e problemáticos. Entra no quarto da irmã, Merry, de noite. Conta histórias macabras que não tem como conhecer. Comporta-se de forma errática. É violenta. O Exorcista (William Peter Blatty) ou Sempre Vivemos no Castelo (Shirley Jackson) são referências óbvias e o próprio Tremblay assim o reconhece, dedicando o romance à sua grande referência, Jackson.

Há, no entanto uma diferença. No período em que decorre este romance, já existem reality shows. Apesar de o pai de família ser profundamente religioso, a mãe não o é, e ambos decidem que, quer seja para exorcizar a criança quer não, quer tenha doença mental quer não, o mais importante é não se perder a oportunidade de monetizar esta oportunidade.

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O tema não podia ser mais da ordem do dia (apesar de o livro já ter quase dez anos). Com a eclosão do TikTok, a viralidade, ou o desejo dela, tornou-se cada vez mais uma das linhas mestras do nosso comportamento online. Conforme a primeira geração de nativos do digital começa a ter filhos, eles veem-se envolvidos nestas práticas que não podem (nem conseguem) controlar.

Não fazemos ideia de qual poderá ser o impacto a longo termo desta sobreexposição, apesar de o tema já vir a ser discutido há algum tempo. Conforme os primeiros dados vão chegando, o prognóstico não é ótimo. Tremblay pensa de forma bastante profunda esta questão. O que podem estas crianças fazer? A história de Merry depois do fim do reality show, que não quero estragar nesta crítica, oferece várias hipóteses e sugestões.

Na vida real, essas sugestões são úteis, porque em termos legais isso não é claro

Muito do que Tremblay explora em Fantasmas da Mente foi-se materializando na década posterior à saída do livro. Pais a forçarem performances por parte dos filhos para criar melhores “conteúdos”. Questões de saúde mental expostas perante públicos de milhões, agudizando-se. E, mais grave ainda, o desenvolvimento de toda uma indústria de pais gestores de “influencers infantis”.

O literário e o comercial

Quase tão interessante como o horror contemporâneo, que na anglosfera se vai rapidamente transformando numa das formas literárias mais interessantes e vitais, é observar a receção a esse mesmo horror, particularmente em Portugal.

Este livro de Tremblay, além de pressagiar de forma brilhante como a comodificação da nossa privacidade viria a desafiar as estruturas das nossas relações familiares, tem ainda muito que dizer sobre temas de religiosidade num ocidente secular, a nebulosidade da verdade mesmo perante múltiplas fontes supostamente credíveis e inclusive um dos temas fetiche da literatura contemporânea: o isolamento e a solidão dos homens adultos. 

Tecnicamente, também é interessantíssimo. A história é contada 15 anos depois dos feitos, tendo como pretexto a escrita de um livro de não-ficção sobre o tema. A autora desse livro, dentro do livro, durante a sua investigação, entrelaça várias versões da mesma narrativa. Tem acesso ao reality show, claro. 

Entrevista ainda a irmã da menina (supostamente) possuída, testemunha em primeira mão de tudo. Existe ainda um blog, crítico do programa, que o vem investigando há anos. A forma como todas estas versões da mesma história se vão confirmando e contradizendo configura uma plasticidade e incerteza sobre o que de facto aconteceu que inspiraria qualquer autor literário pós-moderno. É, aliás, por isso que o título português (Fantasmas da Mente) me parece tão infeliz. O título original (A Head Full of Ghosts) joga o mesmo jogo que o romance em si: será que aconteceu alguma coisa de sobrenatural de todo, ou passar-se-á tudo apenas na cabeça das personagens? Essa resposta nunca é dada e o título português sugere que sim.

Trata-se de uma obra subtil, literária, densa e, talvez o mais importante, aterrorizadora. Independentemente da possibilidade do sobrenatural, o drama humano de Marjorie é exposto ao mundo numa devassa hedionda que não poderia nunca existir sem deixar mácula. Merry, público e personagem secundária ao mesmo tempo, vai assistindo ao vampirismo emocional e financeiro dos pais, agarrados ao sofrimento da irmã como se fosse a sua balsa de salvação, orquestrando-o.

Num momento literário algo liminar, em que grande parte da produção ou é demasiado temerosa ou demasiado básica, o horror continua a não temer agarrar os grandes temas pelo colarinho. É difícil imaginar Literatura com L grande a tratar a religiosidade num ocidente secular, a superstição na era dos media de massas e a reformulação da privacidade para a idade da informação com tanta coragem como Tremblay faz neste livro, sem nunca se perder em anticlericalismos básicos ou mensagens politicamente corretas de aceitação de tudo e de todos.É um livro duro, brilhante e vital.

O leitor poder-se-á, portanto, perguntar: como é que este livro ficou quatro anos à espera de ser editado em Portugal? Como é que acabou no catálogo da Topseller, uma chancela do mais comercial que existe no nosso mercado?

Mistérios do mundo editorial. Ainda há muita mata para desbravar no que diz respeito aos “géneros do corpo”. Saúdo, no entanto, a Topseller, por nos ter trazido esta pequena pérola.

É um dos meus livros favoritos dos últimos dez anos.