Aprendeu a ler e a escrever com quatro anos. Nunca mais aprendeu nada. Já foi assistente editorial, agora recebe um bom salário.

As muitas e variadas consequências do confinamento

Em O Quarto do Bebé, Anabela Mota Ribeiro cria uma espécie de diário levemente autoficcionado em que os temas se sucedem consoante a atenção da sua narradora se vai dispersando, fruto das várias fases de isolamento. Nem todos os temas são tratados com a profundidade que mereciam e nem sempre consegue escapar às piores tentações solipsistas do formato. No final, o que se destaca do livro é como as marcas do confinamento cobrem tudo e como não sabemos a sua real extensão.

Recensão
20 Julho 2023

A pandemia de covid-19, assim como as medidas de saúde pública que a maioria das sociedades a nível global foram implementando, estão certamente ainda muito presentes na memória de todos nós. O desaparecimento das restrições foi tão súbito como o seu aparecimento e a reentrada na normalidade, para muitos de nós, quase fez com que os dois anos passados em casa parecessem um sonho febril. Um do qual acordamos para um mundo muito parecido ao que tínhamos deixado.

Apesar d’O Quarto de Bebé ter muito a dizer sobre (e cito o blurb de Hélia Correia na contracapa) “as profundezas da floresta humana, feminina, literária”, suspeito que leitores menos bondosos não encontrarão tamanha grandeza neste livro. Alguns dos temas sobre os quais se debruça são muito fortes: a doença, a maternidade (ou falta dela) e a solidão.

A forma como os pensa, no entanto, não é notável ou original. Esses leitores poderão encontrar, isso sim, um espelho para uma vida profundamente perturbada pelo confinamento e pela pandemia, criado com uma candura que a arte e a literatura têm evitado, talvez aproveitando também, como todos nós, para tentar avançar.

Dependemos de quem nos lê. Contribui aqui.

As consequências do confinamento

“NÃO SEI HÁ QUANTOS DIAS ESTOU CONFINADA.

Não tenho conseguido escrever. Nem subir e descer escadas.

Sexta, um dia mais tarde do que o devido, fiz grandes limpezas à casa.

Hoje é domingo e saímos para uma caminhada. Foi demasiado longo e acabei cansada. Vimos pessoas, mesmo que à distância e munidos dos paramentos deste tempo: luvas, máscara, gel desinfetante.

Tenho medo de estar infetada. Tenho tosse. Sinto uma dificuldade em respirar até ao fim. Deve ser ansiedade. Deve ser do ar condicionado. Também tenho dor de cabeça. Tudo ligeiro.”

Estas descrições são das mais pungentes do livro, porque o reconhecimento é imediato. A sensação de recordar uma vida passada, com a qual já não nos relacionamos, funciona. E talvez funcione porque os efeitos mais permanentes do confinamento (por muito que aceitemos que foi um mal necessário), se estão a começar a fazer sentir.

Nunca foi uma ideia particularmente controversa, mesmo à época, que os confinamentos e sustentáculos económicos artificiais inventados para manter a economia em suspenso durante dois anos teriam consequências. Agora que sabemos o que é inflação com dois dígitos, as discussões sobre as suas causas têm-se sucedido. É mais ou menos claro que as poupanças feitas nesse  período já foram absorvidas e que o tempo ganho graças a elas já se esgotou.

Há dramas sociais talvez igualmente graves a levantar a cabeça e a saúde mental é um deles. Pedopsiquiatras por todo o mundo (e em Portugal também) começam a chegar a conclusões sobre o crescimento dos diagnósticos de ansiedade, depressão e outros problemas de saúde mental. A Organização Mundial de Saúde fala de aumentos de até 25% na prevalência de alguns distúrbios.

Seria sempre inevitável que um dos grupos mais afetados pela junção destas questões fosse as crianças. Os fechamentos das escolas foram mais contínuos e apertados que nos locais de trabalho (muitos dos quais nunca chegaram a fechar). 70% dos jovens terão o seu aproveitamento escolar negativamente afetado em Portugal.

A acrescentar à gravidade: o impacto sobre os alunos de famílias mais pobres foram muito desproporcionais, e não só em Portugal.

Os efeitos, a todos os níveis, são extensos. Estudos como este da La Caixa (um banco, ironicamente) apontam para aumentos de até 9% nas desigualdades sociais e económicas.

Tem sido rara a literatura que tem procurado entender as motivações para as realidades que estas estatísticas demonstram. Durante o confinamento, chegou-se a temer que a indústria editorial inundasse o mercado de relatos do confinamento. A autoficção era, naquele momento, uma tendência literária forte e todos conhecemos a permeabilidade das chancelas de literatura comercial à espuma dos dias.

Aconteceu o contrário e livros como O Quarto do Bebé, que se preocupam com as consequências de um dos maiores choques à nossa forma de viver de que há memória, são raros.

Os excessos da autoficção

Enquanto a representação da vida na pandemia tem os seus momentos de grande efeito, quanto mais não seja porque Anabela Mota Ribeiro nos transmite com evidente sinceridade a sua vivência de um fenómeno partilhado, há outros momentos em que o livro se mostra talvez demasiado indulgente.

Um exemplo: a obsessão escatológica, que se tem tornado uma tendência particularmente irritante, pela sua inanidade, da literatura contemporânea. Eis algumas citações (apenas algumas) de diferentes partes do livro:

“O DE SEMPRE.
Estou um pouco presa — maneira de falar do meu intestino e de uma obstrução na minha capacidade de escrever. Qualquer coisa, que não sei onde está, mas que está num lugar inacessível, recusa-se a ser evacuado, obrado, a integrar um corpo, a ganhar forma.”

“Penso na comida que é transformada em caca, em gordura, em memória, no que é absorvido e expelido, no tempo de gestação e separação. Observo as minhas fezes como se pudesse ver nelas vestígios do que fui ou me aconteceu.”

“Quando não me sinto reconhecida nos meus movimentos intestinos, sinto-me merda, ouço os que intimamente me acusam de ser merda que não quer ser merda, que quer disfarçar a merda, incapazes de reconhecer o que fiz com o meu lixo orgânico, com a minha merda orgânica, merda viva (...)”

“Sempre penso, quando faço bem cocó, que estou a expelir um falo. Fiz hoje um assim. A carne que comi há dois dias não ficou muito tempo em mim. Sinto-me depois limpa. Sinto durante um prazer de orgasmo.”

Os autores contemporâneos deixaram-se fascinar pelas metáforas com cocó, talvez porque não foram usadas até se transformarem em clichés por gerações mais púdicas. No entanto, e por muito que possa haver algum potencial estético na ideia de o corpo gerar desperdício, o exagero e a repetição tornam estas descrições quase humorísticas. A tentativa de tentar criar alguma espécie de elevação espiritual no ato mais perfunctório da nossa existência torna-se transparentemente pretensiosa.

O mesmo se pode dizer de outras coisas, como cozinhar, limpar a casa, ou uma variedade de outras atividades do dia a dia que a autora não consegue revestir de nenhum significado superior além do óbvio desejo de encontrar esse significado.

O Quarto do Bebé, enfim, acaba por encaixar quase perfeitamente na mesma categoria que outros livros de autores estreantes célebres. São tendencialmente recebidos com uma grande enxurrada de elogios exagerados e precoces por parte dos seus pares, e com grande derrisão e escárnio por parte dos literatos excêntricos ao circuito comercial. O mais normal, e certamente o caso aqui, é estes livros não merecerem nem uma coisa nem outra.