Aprendeu a ler e a escrever com quatro anos. Nunca mais aprendeu nada. Já foi assistente editorial, agora recebe um bom salário.

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A espiritualidade e a opressão política

Mariana Enríquez é uma autora literária ou comercial consoante o mercado em que se insere. A Nossa Parte da Noite foi um livro promovido como estando “na senda de "Cem Anos de Solidão ou 2666”, algo que provavelmente terá levantado muitos sobrolhos ao se adentrarem nesta obra gótica e sinistra, que deve tanto a Stephen King e aos slashers do cinema americano como a qualquer autor literário.

Recensão
19 Outubro 2023

A narrativa de A Nossa Parte da Noite conta-nos a história de Gaspar, filho de Juan, de quem herdou enormes poderes mediúnicos. Devido a essa capacidade extraordinária, tanto pai como filho estão a ser disputados por uma ordem (chamada A Ordem) que, através de um ritual (O Ritual) executado num lugar de poder (O Lugar de Poder), procura estabelecer e fortificar o seu domínio sobre a sociedade (argentina e não só), reforçando a sua capacidade para torturar e subverter. Existe um forte elemento de horror e gótico neste romance, que abraça de forma sincera muitos dos estratagemas deste género literário.

A Nossa Parte da Noite é um romance enorme, que vai roubando influências e referências um bocadinho por todo o cânone, mas ao contrário do que se poderia supôr perante a grandeza dos livros a que é comparado, não parece nem saber o que fazer com elas nem ter a inventividade linguística necessária para sustentar o edifício que vai construindo.

A mãe de Gaspar, Rosario, é uma herdeira da Ordem, figura central para o seu futuro (pelo menos até à sua morte). É também uma antropóloga especializada na tribo Guaraní. Enquanto o romance nos transporta por uma Argentina dos anos 80, ainda ligada à sua ditadura militar, a ideia de Enríquez torna-se talvez demasiado óbvia. Uma ordem de elites europeízadas e fascizantes que faz pessoas desaparecer, especialmente pobres e nativos. Espíritos sussurrantes que nunca abandonam a cercania de quem se relaciona com a ordem. Nada disto é propriamente desafiante para o leitor.

A espiritualidade e as ditaduras

Onde Enríquez tem mais sucesso com este romance, misturando elementos de muitas tradições religiosas e espirituais diferentes, trazendo misticismo cristão, tarot, religiões nativas da América do Sul e muitos piscares de olho a tradições de matriz africana é em criar uma espécie de panóptico espiritual, em que todas as fés existem num contínuo que a sociedade branca/cristã/colonizadora procura reprimir, catalogar ou, como é o caso aqui, instrumentalizar.

A ideia tem força.

Existe cada vez mais interesse académico não só na forma como os regimes autoritários reprimem a espiritualidade dos seus povos e as práticas religiosas e tradicionais, mas também na forma como os co-optam para avançar os seus interesses. Em Portugal, qualquer estudo perfunctório da política de propaganda do Estado Novo para a religião descobrirá rapidamente que António Ferro não só pretendia fortalecer a relação do estado com a Igreja Católica como também se propôs a inventar variadas “tradições” que, legitimadas pela igreja, pouco mais eram que uma promoção dos valores do regime.

Enríquez, ao trazer para o foro da sua Ordem e da sua narrativa uma Inglaterra e uma Londres dos anos 60, a saírem do Blitz, pouco habituadas ainda à ideia de se verem despojadas do seu império e da sua grandeza global, introduz outra dinâmica ainda: a do quanto a nossa ordem liberal permite a estas autocracias.

Por detrás da Ordem e das suas experiências com o oculto, da patine de sofisticação inglesa e liberal, estão vozes e sombras que Juan procura desesperadamente afastar de Gaspar. O pequeno ouve estas vozes, que o perseguem e o procuram. Os sacrifícios de Juan, físicos, espirituais, psicológicos, estão todos concentrados no filho: quer afastá-lo de todos estes males.

Mas será que podemos afastar-nos do nosso legado histórico? Será que podemos calar as vozes dos espíritos que as instituições que nos criaram foram semeando?

É essa a pergunta central do romance.

Uma nova tentativa de grande romance (?)

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Enríquez não está sozinha nesta tentativa, ainda algo atabalhoada, de construir um grande romance para o século XXI como se fosse um Lego. Várias personagens, várias linhas temporais, vários países, várias estéticas, mas uma só narrativa coesa e linear. Karl Ove Knausgaard, com Estrela da Manhã (outro canhenho de quase 700 páginas) tenta fazer algo muito similar, mesclando elementos de policial hardboiled, horror cósmico Lovecraftiano e romance religioso a la Flannery O’Connor.

É interessante verificar que ambos apresentam às suas editoras desafios similares: ao brincarem com tantos elementos de literatura comercial e cultura pop, como vender estes livros?

Recordo ao leitor desta crítica a forma como a Quetzal procurou colocar este livro de Enríquez em Portugal. Comparações com Bolaño, García Márquez e Cortázar. Literário, fragmentado, complexo. Escusado será dizer que a Relógio d’Água procurou fazer o mesmo com Knausgaard, cujos livros anteriores descreve na sua biografia como “proustianos”.

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Vejamos as capas. 

Capas sóbrias, literárias, dignas dos epítetos escolhidos. O contraste com as capas de mercado britânicas, onde os géneros comerciais são muito menos desprestigiados e desprestigiantes e onde a associação a esse mundo não causa suores frios às editoras (e poderá, isso sim, promover vendas), temos algo totalmente diferente.

Estas capas sugerem de forma muito mais clara um dos elementos fundamentais da natureza deste tipo de romance: um apego que não tem nada de irónico ou desconstrutivo pelos thrillers e romances de horror das últimas décadas. O desafio será agora, caso esta tendência continue, evitar as armadilhas em que Enríquez cai. A Nossa Parte da Noite nem desafia como Julio Cortázar nem assusta como Stephen King. Não temos a inventividade linguística nem a mestria técnica que se espera da literatura com que é comparada em Portugal nem a intensida de emocional e rasgo que esperamos do horror que a capa inglesa sugere.