Aprendeu a ler e a escrever com quatro anos. Nunca mais aprendeu nada. Já foi assistente editorial, agora recebe um bom salário.

Da culpa solteira

Todos os anos dezenas de mulheres morrem às mãos dos seus maridos e companheiros. Amor Estragado, da escritora Ana Bárbara Pedrosa, conta-nos a história de uma família e uma comunidade com essa violência no seu seio. Ema não lhe sobrevive.

Recensão
11 Maio 2023

Nem todos os romances em português falam a minha língua. Amor Estragado, de Ana Bárbara Pedrosa, atreve-se à dificuldade de fazer literatura com a oralidade como massa mãe, assumindo os seus cantos toscos como bonita decoração para o produto final.

O português de Manel é o português com que eu cresci nas ruas de Guimarães (os vizelenses que me perdoem, mas nenhuma autoridade municipal nos separa assim tanto no que toca ao vernáculo) e arrisco-me a dizer que nunca o tinha lido em literatura.

Não há muita literatura em Portugal (muito mais no Brasil e em África) a assumir de forma tão aberta e feliz a diversidade linguística, portanto, seria sempre digno de nota. Neste caso, no entanto, o registo de língua leva-nos diretamente ao âmago de uma história que não é sobre uma pessoa, mas sobre um grupo de pessoas, uma família, um sítio. O vernáculo minhoto é o particular que faz a ponte para o universal nesta narrativa sobre um fenómeno que nos rodeia a todos: a violência doméstica.

Dependemos de quem nos lê. Contribui aqui.

Um romance do real

Ana Bárbara Pedrosa vem-se afirmando na literatura portuguesa não somente pela qualidade mas também pela sua capacidade de reinvenção. O seu primeiro livro, Lisboa, Chão Sagrado, é um romance polifónico (termo tão maltratado), passado entre Portugal e o Brasil, uma história de amores e desamores, uma descoberta de como o género e a sexualidade se moldam para diferentes pessoas de diferentes contextos. O segundo, Palavra do Senhor, é uma reescrita de trechos seletos da Bíblia por parte de um deus personalizado e inseguro em jeito de narrativa confessional.

São dois romances amplos, ambiciosos, e de sucesso. É portanto com muito agrado que vejo pela terceira vez a autora a arriscar algo que nunca fez. Uma história passada numa pequena cidade (“Vizela cabe num bolso”, diz um dos narradores várias vezes), no âmbito de um pequeno núcleo familiar.

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Amor Estragado

Amor Estragado é a história do mais velho de quatro filhos, mas é também a história da família que o rodeia, absorvida pelo vórtex de caos, violência e incoerência que o alcoolismo de Manel vai lentamente alimentando e fortalecendo. A autora escolhe acrescentar um segundo narrador a Manel, o irmão mais novo Zé, e essa é uma das suas decisões mais felizes. Não só Zé acrescenta um contraponto de sanidade ao cada vez menos fiável relato de Manel como faz algo ainda mais importante: a versão de Zé demonstra, de forma muito convincente, como a violência doméstica não precisa de ser segredo. Cresce à vista de todos, ganhando confiança conforme vai ocupando espaço, acabando por dominar a vida familiar.

O caso de Ema, assassinada por Manel em dois passos, a abrir e a fechar o romance, é premente pelo seu realismo. Em 2022, 24 mulheres foram assassinadas pelos seus companheiros. Se notarem discrepância com a manchete, é porque as restantes quatro foram crianças. Ana Bárbara Pedrosa deu-nos um agressor estéril, ao menos a esse horror adicional fomos poupados.

Um mal que cresce à vista de todos

Ema é pobre, não é muito inteligente nem muito bonita, e aceita o seu papel de dona de casa desde a primeira hora. É isso, aliás, que Manel pretende dela. Alguém que limpe, cozinhe, providencie sexo gratuito e não o incomode demais. Da primeira vez que dormem juntos, acaba assim (p. 31):

“No fim, perguntei «Gostaste?» Ela respondeu, à inocente: «A única coisa que te vou pedir é que me trates bem.» Achei aquilo tão triste que a abracei sem responder.”

A falta de respeito de Manel por Ema existe desde o começo da sua relação e é reconhecida por todos à sua volta. Não só. É replicada. Vejamos como Zé, o irmão mais sereno e sensato, descreve o começo desta mesma relação (p. 128):

“Sabíamos, mas a vida era mais do que aquilo. E, mesmo que conseguíssemos ver que era horrível e injusto, o que mais pesava era a vergonha. Toda a gente sabia que ele era nosso irmão.”

Conforme vamos evoluindo na narrativa, torna-se evidente o que fica sugerido logo no primeiro capítulo: o abuso de Ema é feito em público. Conforme vai crescendo e evoluindo para as suas várias formas (emocional, verbal, físico, humilhação), Manel nunca envida grandes esforços para o esconder, nem da família nem sequer da Vizela em geral ou até das autoridades. Ao invés, justifica-o com o mesmo tipo de argumentário geralmente aplicado a qualquer mulher cuja submissão não seja vista como suficiente. Ema é chata, inconveniente, não cumpre com as suas obrigações, fala demais. Ema é feia, pouco inteligente, erra com a família de Manel, convive demasiado com a sua.

Conforme Manel se vai adentrando no alcoolismo, a situação vai-se tornando tanto pior quanto mais pública. O papel do alcoolismo na violência doméstica, que Ana Bárbara Pedrosa explora em detalhe neste romance, é conhecido e amplamente estudado. Cada vez menos inibido, Manel começa a gritar com Ema à frente dos irmãos (e dos sobrinhos, inclusive).

Eis uma passagem narrada por Zé, refletindo sobre isso mesmo:

“Naquela altura, já era difícil refazer os passos, encontrar um momento crítico a que pudéssemos voltar para resolver tudo. Mesmo depois da quinta ou sexta vez, ainda achávamos que havia limites, que nunca ia dar para o torto, apesar de já ter dado, e agora habituávamo-nos àquilo como traços gerais da vida, ninguém tinha ideias de como pôr um travão. Nos primeiros anos, eu via-o irascível com a Ema e mesmo assim julgava que ela mentia porque o meu irmão não era homem para bater. Ela sim, toda bêbeda, meia tola, parecia ser mulher para mentir. E eu percebia-lhe o ódio, e até o entendia, mas irritava-me. A vida não podia ser apenas raiva.”

“Porque não se vai ela embora?”

Em Portugal, milhares de mulheres têm consigo um dispositivo de teleassistência, vulgo “botão de pânico”. Para muitas mulheres, como é o caso de Ema, sair de uma relação conhecida como violenta não é uma opção. As motivações para isso são diversas, e a autora poderia ter recorrido a uma das mais típicas: dependência financeira. Não é o caso, e é uma das decisões mais autoritativas do romance.

Ema é uma mulher trabalhadora e não só poderia sustentar a sua própria casa como sustenta os vícios de Manel. Num passo particularmente emocional do romance, a própria matriarca da família, que vai tentando proteger Ema aproximando-a de sua casa, lhe pede que abandone o filho.

Eis a resposta, o narrador é Zé (p. 183):

“— Tu não deixes, Ema. Não deixes. Deixa-o ficar. Porque é que não o deixas ficar? Podes sair de casa, vir para aqui.

— É o meu homem, Miquinhas.

Dizia-o e aquilo sabia a sentença final. O elo fora criado, era impensável rompê-lo. Desatá-lo seria uma desonra.

— É, mas pode deixar de ser.

A minha mãe, que tanto insistira no casamento, que achava que aquilo era na saúde e na doença até à morte, já nem queria saber de beatices. Ia à luta:

— Mete-o cá para fora.

E a Ema amassava sem levar aquilo a sério.

— Já pensou no que as pessoas iam dizer? É o meu homem. E ultimamente nem tem estado tão mal. Toda a gente ia achar que eu era má mulher.”

Uma das frases marcantes do romance: “Toda a gente ia achar que eu era má mulher”. A escolha de palavras é determinante, tanto ao identificar a pressão social quase absoluta (toda a gente) sobre as mulheres como responsáveis últimas pelo casamento, como também ao brincar com a polissemia de “mulher”. Uma má esposa, que desfaz o seu casamento, é uma má mulher no sentido estrito do termo. Independentemente do que o marido faça.

A pressão transcende o casal, transcende a família, transcende inclusive as “beatices”. É geral, societal. Ema tem essa opção e é confrontada com ela de forma explícita neste passo do romance, mas para ela não é realista. Se o fizesse, deixaria de ser mulher. Ou, pelo menos, de ser uma boa mulher.

Em nenhum momento Amor Estragado desresponsabiliza Manel dos seus crimes. Pelo contrário, ao vê-los narrados por ele, a sua vileza, o seu desrespeito, a sua desonestidade e a sua maldade chegam a roçar o obsceno. Afundado no álcool, o seu discurso vai regredindo até se tornar uma massa amorfa de insultos e bílis, uma confusão de emoções negativas e agressividade.

O que Amor Estragado faz é exibir o quanto Manel não é criado apenas por Manel. Manel existe porque lhe é permitido existir. Todos somos e conhecemos pessoas como Zé, preocupados com as nossas próprias vidas, como o guarda da GNR que de vez em quando lá olha Manel pelo canto do olho mas pouco mais faz. É assim com todas as personagens que rodeiam este casal, com todo o sistema judicial e com o Estado social onde se inserem: mesmo depois de Ema ter estado internada depois de um espancamento pouco mais fazem que chamar nomes a Manel e ostracizá-lo ainda mais, isolando Ema.

É essa a justificação para a desconfortável realidade da violência doméstica em Portugal: entre 2004 e 2019, pelo menos 500 mulheres foram assassinadas pelos seus maridos e companheiros. Mais recentemente, entre 2020 e 2022, foram não menos de 70, a que se juntam mais oito crianças. É um flagelo que não para.