Aprendeu a ler e a escrever com quatro anos. Nunca mais aprendeu nada. Já foi assistente editorial, agora recebe um bom salário.

Via Ápia - A violência policial e as feridas abertas da favela

O autor brasileiro Geovani Martins apresenta-nos um romance que serve como janela para um momento da história da Rocinha, visto pelos olhos de quem lá vivia. Herdeiro de uma tradição robusta de realismo social na literatura brasileira, debruça-se sobre a violência inapelável que o estado do Rio de Janeiro exerceu sobre os mais pobres durante a ocupação das favelas pelas UPP.

Recensão
22 Junho 2023

“É um Estado que mata a sua população e depois mata de novo, matando o direito à memória. O livro é algo que a polícia não acessa, não consegue destruir.”

Esta citação não é do romance, mas sim de uma entrevista dada pelo autor, Geovani Martins, à Agência Lusa. Uma citação forte, que acaba por resumir de uma forma elegante a missão deste livro, herdeiro de um realismo social com grande tradição no Brasil ao longo do século XX.

O livro narra um momento particularmente determinante da história recente da pobreza no Brasil: a instalação das UPP, ou Unidades de Polícia Pacificadora, nas favelas do Rio de Janeiro. A história passa-se entre 2011 e 2013, período durante o qual o estado instalou 19 unidades diferentes da UPP nas favelas da sua capital. Os seus poderes eram amplos, chegando a controlar inclusive a capacidade das populações locais para organizar convívios.

O sangue que flui nas veias de Via Ápia não é tanto a narrativa relativa às suas personagens, visto que o romance não tem uma história particularmente forte em termos de enredo, mas sim uma espécie de diário da opressão. Conforme a violência e a repressão da polícia vão crescendo e perturbando a vida dos habitantes da Rocinha, também a vida diária destas personagens se vai revestindo de uma intensidade dramática própria.

A UPP em números

As criíticas à ocupação das favelas por parte das UPP não são de todo diferentes do que tende a acontecer em qualquer área do globo que se vê nas mãos de uma força paramilitar armada até aos dentes. Violência, tortura, mortes, perseguição a minorias racializadas, opressão em toda a linha, e a consequente radicalização da população, inevitavelmente forçada a organizar-se e armar-se, promovendo o mesmo tipo de organização criminal que se pretendia controlar.

Uma das estatísticas que imediatamente emerge é o das mortes dentro das fileiras da própria polícia. Conforme a instalação das UPP estabilizou, o clima de confronto nas favelas escalou. Entre 2009 e 2011 não houve mortes de agentes do estado. Entre 2012 e 2014, o número atingiu os 15. De 2014 a 2018, a situação extremou-se: 66 policiais mortos e 387 feridos.

Se as baixas do lado da polícia parecem um número assustador, junto da população o clima de guerra aberta roça a catástrofe humanitária. Se é verdade que a letalidade da ação policial baixou substancialmente enquanto as UPP estavam a ser instaladas, a partir do período narrado no romance (2011-2013), voltou a disparar. A partir de 2014, já em clima de guerra com a população, a letalidade da polícia atingiu o triplo do estado do RJ como um todo.

Em 2018, enquanto noutros lugares, a taxa de homicídio doloso era cinco vezes superior às mortes pela polícia, em áreas com UPP o rácio era de 1 para 1.

Isto, claro, sem falar da tortura, das violações, dos abusos de direitos humanos, e da ausência total de um objetivo a cumprir por esta ocupação paramilitar sine die. 

Preservar a memória

Via Ápia é um diário. Não no sentido convencional da palavra, porque não se trata de uma obra de não-ficção, mas no sentido mais importante: o da preservação da memória. Geovani Martins, mais do que se preocupar com contar uma grande história ou apresentar-nos personagens memoráveis e únicas, procura precisamente o contrário, capturar vidas normais. Via Ápia tem um elenco de personagens jovens, habitantes de diferentes lugares da favela da Rocinha, e que vivenciam os dramas sociais da favela antes e depois da ocupação por parte das UPP. O autor tem experiência em primeira mão dessa vivência: foi a dele.

Viver na favela não tem nem teve nunca nada de fácil. O romance começa com uma cena marcante, quando um dos protagonistas se despede do seu trabalho como servente numa casa de festas depois de ser fortemente criticado pela chefe por estar a servir-se de alguma da comida.

Geovani Martins não esconde nem maquilha que a convivência com a droga, o barulho, a confusão e o crime da favela eram um tremendo desafio, com ou sem a polícia. Vejamos a reação de um senhor de idade que decidiu arriscar arrendar uma casa por pouco dinheiro aos jovens que protagonizam o romance:

“— Aqui eu alugo prum casal que veio me procurar, sem filho, sem bicho, sem nada. A mulher que também trabalha fora. Gente que não faz zoada, bagaceira igual vocês, sabe não? Todo dia essa maconha veia, fedida, de vocês, a barulhada. Tem quem guente não. A minha mulher tem problemas no pulmão. Tem dia que chega ficar sufocada, ela. Pior! Eu já falava de botar vocês na rua, ela inda defendia! Pra ver como é que é: ela defendia, ela. Que maconha no diabo desse morro não tem pra onde fugir, se não vem do vizinho, vem da rua, vem do bar, que o pessoal gosta demais, ela falava comigo. Mas agora acabou essa palhaçada, que prédio meu não é teatro. Isso aqui é lugar de família, sabe não? Gente que trabalha tem que descansar. Eu dei foi chance, viu? Agora tem conversa não. Não tem conversa e nem remorso. Acabou.”

A tese do romance, e sim, vou arriscar que este romance tem uma tese, não é que a vida nas favelas fosse um mar de rosas antes da aparição das UPP. Não é, também, que todas as pessoas da favela fossem santos, desprovidos de mácula, gente trabalhadora e humilde, sem pecados. É um livro cru, sem ilusões, ciente da violência que a própria droga exerce sobre estas comunidades e também da ausência total de alguém com idoneidade para substituir o estado dentro das próprias favelas.

A tese do romance, isso sim, é que a introdução de mais violência, mais armas, mais opressão, mais controlo, mais morte, mais agressividade, mais confronto, mais choque, não só não é solução nenhuma para nada como agrava seriamente os problemas que já existiam.

A desumanização da polícia

Uma das decisões mais interessantes de Geovani Martins ao construir as personagens do romance foi colocar uma delas dentro da polícia militarizada. A realidade das pessoas que servem nas forças da ordem está frequentemente ausente dos debates sobre violência policial. A forma como pessoas de classe trabalhadora, exatamente iguais àquelas que vão policiar, são transformadas em armas do estado para controlar as suas próprias comunidades.

Murilo, a personagem em questão, faz parte de um dos grupos de amigos de roda dos quais o romance se constrói, e eis o que vê:

“Eles já iam virar no beco pra chegar na pracinha, quando bateram de frente com um moleque sem camisa. No susto, ele largou o chinelo e saiu voado. O sargento então sinalizou pro grupo ir atrás. (...)

Murilo corria junto com o bonde, sem entender muito bem o que acontecia. Era pra aplicar no moleque? Levar preso? Por que ele saiu correndo daquele jeito? Ele imaginava o momento de apertar o gatilho e seu corpo todo estremecia, o coração acelerava cada vez mais. Um moleque novo daqueles. Talvez mais novo que os soldados do batalhão. (...)

Foi aí que a vista pesou de verdade e Murilo sentiu as pernas falharem. Ele se escorou na parede, tentando se comunicar com os outros soldados, mas a voz não saía. O fuzil jogava seu corpo contra o chão. Aqueles becos todos pareciam mais um labirinto. Pra onde ir?, se perguntava bem na hora que ouviu cantar o "12 x 1: PÁ. PÁ PÁ PÁ PÁ. PÁ.”

A literatura como testemunha

As UPP sofreram, em teoria, um golpe mortal em 2018. Raul Jungmann, à época Ministro Extraordinário da Segurança Pública do Brasil, anunciou o fim do programa, declarando que não estaria a dar resposta às suas funções. É um facto que algumas UPP foram extintas, mas o programa nunca chegou a acabar. Já em tempos de Bolsonaro, o governo estadual do Rio fez uma operação de maquilhagem às UPP, criando um pretenso novo programa chamado Cidade Integrada menos de um ano depois da operação mais letal da história do estado.

Independentemente do marketing associado à Cidade Integrada, com grandes promessas de investimento na ação social e nas infraestruturas das zonas mais pobres, o que tem acontecido na prática é mais do mesmo: quase ação social nenhuma e policiamento militarizado a violentar a população.

Geovani Martins não quer deixar que o estado brasileiro se esqueça do que aconteceu no Rio de Janeiro, nem quer que a história desta ocupação seja escrita apenas pelos vencedores.

Traz-nos um livro tirado diretamente desta realidade, num registo linguístico que poderá apresentar alguns desafios para o leitor português (daí que a Companhia das Letras tenha incluído um útil glossário na edição nacional), mas que vale a pena o investimento. A literatura cumpre muitas funções e desmistificar a nossa tendência para universalizar o específico é uma delas. As dores das personagens de Geovani Martins não são universais, são específicas. Não são iguais às nossas, são únicas. Não pertencem a ninguém senão a elas mesmas. E graças a Via Ápia, nunca serão esquecidas.