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A solidariedade é uma arma contagiante

A sociedade não existe, apenas indivíduos e famílias, disse em tempos a neoliberal Margaret Thatcher. Quem defende os poderosos e os seus interesses sabe que a solidariedade é uma arma que deve ser contida. Quando se torna contagiante, dez dias chegam para mudar o mundo.

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22 Fevereiro 2024

Não sabemos o que as eleições legislativas de 10 de março nos reservam. As sondagens apontam para possíveis desfechos e cenários de governação, seja à esquerda ou à direita. Duas coisas são certas: a política de blocos político-parlamentares entrou definitivamente na política portuguesa e a extrema-direita deve conquistar bastantes assentos parlamentares. Nas semanas que se seguirão às eleições, assistiremos às movimentações da aritmética parlamentar, mas como poderemos reforçar o combate à extrema-direita nos bairros, nas escolas, nas universidades, nas empresas e nos movimentos sociais?

Não me refiro a programas políticos ou estratégias, mas a uma reflexão mais elementar: o reforço da política do cuidado, da empatia. Da criação de laços de amor humanista, de solidariedade e camaradagem, de se aceitar que dependemos uns dos outros na nossa vida coletiva e de que partilhamos os mesmos flagelos. Todos os grandes movimentos por justiça social enfatizam fortemente uma ética do amor, escreveu bell hooks.

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A prática democrática de base, aconteça onde acontecer, depende desta política do cuidado e do amor, do debate democrático fraterno, sem investidas de egos e sectarismos à mistura. Depende de conseguirmos pôr-nos no lugar do outro, de sairmos da nossa zona de conforto. É um enorme desafio num mundo marcado pela indiferença e por sentidos de identidade partilhada baseados na exclusão e no ódio ao Outro.

Décadas de neoliberalismo fraturaram os laços nas nossas comunidades, e não é por acaso que os partidos de massas, pilar organizativo da esquerda desde sempre, estão a definhar ou já definharam, sendo substituídos por estratégias de marketing político. Temos cada vez menos espaços de partilha e convivência (centros comunitários e espaços associativos, por exemplo) – a gentrificação das grandes cidades foram essenciais neste processo – e as redes sociais substituíram os cafés, as praças, o contacto humano. Na prática, estamos a desaprender a debater e a aceitar a diferença de ideias e argumentos, muito por causa de algoritmos que dão biliões de dólares de lucro a gigantes multinacionais.

Mas esta indiferença coletiva tem outras consequências. O governo francês de Emmanuel Macron, o político que disse ser o candidato que enfrentaria a extrema-direita, congratulou-se com a decisão europeia de permitir a detenção de crianças imigrantes com menos de 12 anos e suas famílias. A França e os Países Baixos, revelou uma investigação de Paulo Pena no Público, pressionaram para que o Pacto de Migração e Asilo incluísse o poder de se deter crianças de qualquer idade e as suas famílias. Desde quando se tornou aceitável? É uma violação clara dos direitos humanos mais elementares. Gritos de indignação? Poucos, muito poucos.

Hoje, quando as narrativas neoliberais se transformaram em senso comum, fala-se mais em crescimento da economia, de lucros das empresas, de contas certas, de como a dívida está a descer, mas pouco de como as políticas neoliberais afetam a vida de quem trabalha. “A vida das pessoas não está melhor, mas a do país está muito melhor”, disse em 2014 o hoje líder do PSD. Luís Montenegro personifica a política da indiferença dos tempos da troika. Quer agora fazê-la regressar.

“Não admira que o populismo de direita e autoritário se tenha revelado mais uma vez sedutor. Foi facilmente alimentado, dadas as profundas dificuldades e as insuportáveis angústias coletivas de se viver num mundo indiferente”, escreveram os autores do livro The Care Manifesto – The Politics of Interdepence, de 2020. O interesse próprio defensivo, continuam, prospera em sociedades dominadas por baixos salários, precariedade, grandes desigualdades sociais, quebra de laços sociais e, quando a nossa própria sensação de segurança e conforto é tão frágil, torna-se mais difícil cuidar de nós próprios, quanto mais dos outros. A indiferença passou a dominar: o objetivo é sobreviver, chegar ao fim do mês. E as baterias são apontadas para os mais vulneráveis: para os trabalhadores imigrantes.

Daí que a extrema-direita use as narrativas da corrupção (descrédito do sistema que nos trouxe até aqui, protegendo sempre os grandes grupos económicos) e da lei da ordem, fomentando o medo, sempre o medo. Comunidades com laços sociais frágeis são mais vulneráveis a apelos de investimento em vigilância e policiamento em detrimento de o serem em infraestruturas de apoio e desenvolvimento social. E essa desconfiança para com todos, até para com os vizinhos, resulta na retração à unidade social familiar, outro pilar essencial do programa da extrema-direita.

A sociedade não existe, apenas indivíduos e famílias, disse em tempos a neoliberal Margaret Thatcher. Quem defende os poderosos e os seus interesses sabe que a solidariedade é uma arma que deve ser contida. Quando se torna contagiante, dez dias chegam para mudar o mundo.

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