Newsletter74

O preconceito fez esquecer os milhares de homossexuais assassinados no Holocausto

A memória coletiva dominante pode encontrar a sua razão de ser no desaparecimento de outras histórias e na negação de outras memórias. Foi o que aconteceu com as histórias dos homossexuais sobreviventes do Holocausto. As sociedades ocidentais apagaram-nas durante décadas dos registos da História, até serem forçadas pelos movimentos LGBT a olhar para elas.

Newsletter74
8 Fevereiro 2024

A vedação de arame farpado separava dois mundos: o dos vivos e os que se julgavam mortos, ainda que respirassem e andassem. Não se lhes conseguia perceber a idade e os seus esquálidos rostos não permitiam distinções. As roupas, cinzentas, esfarrapadas e repletas de piolhos, foram a sua única salvaguarda durante meses e anos contra o frio, o calor, a humidade e a chuva. O ar estava infestado por um cheiro a doença e a morte, caixas e caixas com cadáveres em decomposição jaziam a poucos metros de distância. “Não conheço palavras para descrever os homens que sobreviveram a este horror durante anos, três anos, cinco anos, dez anos”, escreveu a jornalista Martha Gellhorn depois de entrar no campo de concentração de Dachau.

Meses antes, a 27 de janeiro de 1945, o Exército Vermelho da União Soviética libertou o campo de concentração de Auschwitz-Birkenau, onde mais de 1,1 milhões de pessoas foram assassinadas, das quais 90% eram judias. Este dia passou a ser, a partir de 2005 e por decisão da Assembleia-Geral das Nações Unidas, o Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto. Não há números exatos sobre o total de vítimas, mas pelo menos oito milhões foram assassinadas nos campos, e seis milhões eram judias. Também foram assassinados civis soviéticos, prisioneiros de guerra soviéticos, civis polacos não-judeus, civis sérvios, pessoas portadoras de deficiências, ciganos, testemunhas de Jeová, comunistas e socialistas alemães, pessoas trans e homossexuais. Comemorou-se na semana passada o 79º aniversário da libertação do campo.

Subscreve a nossa newsletter.

A memória de Auschwitz tornou-se, como escreveu o historiador Enzo Traverso, a base da memória coletiva do mundo ocidental e, não poucas vezes, tem sido usada como justificação para intervenções imperialistas e crimes hediondos, como os que temos vistos na Faixa de Gaza por Israel. “Saddam Hussein, Arafat, Milosevic e George W. Bush foram comparados com Hitler nos cartazes, nos meios de comunicação e no discurso de alguns líderes políticos”, escreveu Traverso. O Holocausto foi transformado em arma de propaganda e de legitimação de guerras e formou-se na nossa memória coletiva como metáfora do século XX: “100 anos de guerras, de totalitarismos, de genocídios e de crimes contra a Humanidade”, acrescentou o historiador italiano.

A partir da década de 1990, com a desintegração da União Soviética e o fim do consenso antifascista que norteou a segunda metade do século XX (ainda que com tónicas diferentes dos dois lados do Muro de Berlim), o nazismo e o comunismo passaram a ser apresentados como farinha do mesmo saco, como duas faces da mesma moeda. Ou pelo menos é assim que o centro político (ou extremo centro neoliberal, como Tariq Ali lhe chama) tenta expurgar o que há de emancipador e de libertador na ideia de socialismo. Os sacrifícios de milhões de soldados do Exército Vermelho são relegados, e não é de agora, para segundo plano, como se não tivessem sido a chacina em Estalinegrado e a Batalha de Kursk a mudar o curso da guerra, mas a invasão da Normandia.

Mas a memória coletiva dominante, além de construída pelos vencedores, pode encontrar a sua razão de ser no desaparecimento de outras histórias e na negação de outras memórias. Foi precisamente isso que aconteceu com as histórias dos homossexuais sobreviventes do Holocausto. As sociedades ocidentais apagaram-nas durante décadas dos registos da História, até serem forçadas pelos movimentos LGBT a olhar para elas.

A homossexualidade sempre foi um crime no Império Alemão e na República de Weimar (Parágrafo 175 do Código Penal, sendo aplicado de formas diferentes), mas os nazis elevaram a perseguição a outro nível. Antes de tomarem o poder, Berlim era um verdadeiro epicentro europeu para as subculturas gays: havia jornais, revistas, bares, espetáculos. Havia uma comunidade estruturada, com grande participação de artistas (dando origem ao termo nazi “bolchevismo cultural”, a semelhança com o atual “marxismo cultural” não é por acaso), e uma liberdade que não se vivia noutras capitais europeias.

A partir de 1933, os nazis começaram a perseguir os homens homossexuais com o aparelho de Estado (a lei era omissa sobre as mulheres lésbicas) e, em 1935, alteraram o Parágrafo 175, endurecendo-o. Entre 1933 e 1945, a polícia alemã, as SS e a Gestapo prenderam quase 100 mil pessoas (nem todas se identificavam como gay) e metade cumpriu pena, com uma percentagem (cinco mil a 15 mil, os ditos “recorrentes”) a cumprirem-na em campos de concentração. Além disso, e já na II Guerra Mundial, muitos foram condenados a servir nas forças armadas alemãs por falta de efetivos. 

Eram denunciados aos nazis por vizinhos, conhecidos, colegas, amigos e até por familiares, incentivados por uma massiva campanha pública de ódio. Por exemplo, o líder das SA, o nazi convicto Ernst Röhm, conhecido homossexual, foi vilipendiado pelos nazis com base na sua orientação sexual depois da Noite das Facas Longas, em 1934, quando o nazismo evoluiu de movimento para regime, expurgando a sua ala dita “revolucionária” e popular.

A repressão foi aumentando de ano para ano e, a partir de 1938, o regime nazi estava em guerra aberta contra a homossexualidade. “Nós devemos exterminar as raízes e ramificações dessas pessoas, o homossexual precisa de ser completamente eliminado”, disse o facínora Heinrich Himmler, comandante das SS. A homossexualidade era vista pelos nazis como “bolchevismo sexual” (as origens do que hoje a extrema-direita apelida de “ideologia de género”). Ou seja, era uma “degeneração” que punha em causa os valores e a estrutura da família tradicional. E, por isso, todos os seus “agentes” eram encarados como ameaça (e inimigos) não apenas pelo Estado, que controlava todas as vertentes da vida dos seus cidadãos, mas para a visão (e reprodução orgânica) da sociedade racialmente pura. 

Assim, os homens gays considerados “recorrentes” que não eram assassinados nas sessões de tortura nas caves das sedes das SS e da Gestapo, eram sumariamente condenados e enviados para campos de concentração, onde passavam a usar um triângulo rosa. Os prisioneiros que usavam este símbolo estavam (a par com os judeus) no fim da hierarquia, sendo sucessivamente abusados pelos guardas e marginalizados pelos outros prisioneiros – no fim extremo da hierarquia estava o judeu homossexual. Não havia solidariedade que superasse o preconceito.

Os prisioneiros homossexuais foram sujeitos a torturas bárbaras, incluindo abusos sexuais, castração e experiências médicas, sem esquecer fome e doenças. Pierre Seel, homem gay francês que esteve nos campos de concentração, contou nas suas memórias como foi ordenado pelos guardas nazis a ver Jo, o seu parceiro de 18 anos, ser despedaçado por cães pastores alemães incitados pelos guardas. Dos cinco mil a 15 mil prisioneiros homossexuais, cerca de 65% foram assassinados, dos quais três quartos antes de fazerem um ano nos campos de concentração.

Ao libertar os campos, os Estados Unidos (e a União Soviética) optaram por relegar as vítimas homossexuais ao esquecimento quando se referiam à desumanidade nazi. Só a partir da década de 1970, quando o movimento LGBT ganhou força (e surgiram testemunhos, como o de Seel), se começou a falar destas vítimas. Mas ainda hoje são comumente esquecidas, ou as suas histórias pouco conhecidas.

É que também há responsabilidades no pós-guerra. O Exército dos Estados Unidos libertou campos de concentração, mas houve prisioneiros homossexuais novamente encarcerados, obrigados a cumprir o resto das suas penas. Além disso, os Estados Unidos aceitaram que o Parágrafo 175, com emenda nazi, se mantivesse em vigor na nova Alemanha Federal, enquanto a República Democrática da Alemanha optou pela versão imperial e de Weimar. A perseguição aos homossexuais manteve-se nos dois blocos antagónicos. Entre 1949 e 1969, mais de 100 mil homens foram presos na Alemanha Ocidental, com 59 mil a serem condenados.

Em 1969, o regime democrático-liberal alemão desincentivou a aplicação da lei que criminalizava a homossexualidade, mas manteve-a no Código Penal por mais 25 anos, até 1994, já depois da reunificação da Alemanha. E o primeiro reconhecimento de Estado das vítimas homossexuais dos nazis só aconteceu 40 anos depois da libertação do primeiro campo de concentração: a 8 de maio de 1985 pelo então presidente da Alemanha Ocidental, Richard von Weizsäcker. 

A perseguição judicial e a marginalização social forçaram a ocultação das memórias dos sobreviventes homossexuais por mais de três décadas, e o tempo juntou-se à tarefa: erodiu-as até as apagar definitivamente. Perdemos um património coletivo inestimável, mas, aos poucos, há quem lute para que as vítimas saiam do esquecimento, com memoriais a brotarem aqui e ali na Alemanha.

Jornalismo independente e de confiança. É isso que o Setenta e Quatro quer levar até ao teu e-mail. Inscreve-te já! 

O Setenta e Quatro assegura a total confidencialidade e segurança dos teus dados, em estrito cumprimento do Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (RGPD). Garantimos que os mesmos não serão transmitidos a terceiros e que só serão mantidos enquanto o desejares. Podes solicitar a alteração dos teus dados ou a sua remoção integral a qualquer momento através do email geral@setentaequatro.pt