Newsletter74

A crise do jornalismo também é isto

Mais de 100 jornalistas já foram assassinados por Israel na Faixa de Gaza e no Sul do Líbano. Mais de 50 edifícios de meios de comunicação social foram parcial ou totalmente destruídos pelas forças israelitas. Desde 1990 que não morriam tantos jornalistas numa única guerra, se assim lhe podemos chamar. O Estado colonial sionista matou mais de um jornalista por dia nos últimos quatro meses.

Newsletter74
25 Janeiro 2024

O V Congresso de Jornalistas é esta semana e no centro do debate estará, como não poderia deixar de ser, a crise do jornalismo e dos seus modelos de negócios. O jornalismo está em crise ou é apenas o seu modelo de negócio preponderante? Ou serão os dois numa relação dialética? Há várias propostas sobre modelos de financiamento público, direto ou indireto, mas o certo é que não há consenso. É uma boa oportunidade para se avançar no debate e para que propostas brotem dele. A ver vamos se assim será, o certo é que muita água ainda vai correr debaixo da ponte. Mas não temos tempo a perder.

Escrevo-vos, pegando na minha intervenção na manifestação em apoio à Palestina do passado domingo, sobre uma outra crise do jornalismo, uma que acontece a milhares de quilómetros e que se depara com um muro de silêncio internacional: mais de 100 jornalistas já foram assassinados por Israel na Faixa de Gaza e no Sul do Líbano nos últimos quatro meses. Mais de 50 edifícios de meios de comunicação social foram parcial ou totalmente destruídos pelas forças israelitas. Desde 1990 que não morriam tantos jornalistas numa única guerra, se assim lhe podemos chamar. O Estado colonial sionista matou mais de um jornalista por dia nos últimos quatro meses. Onde está a indignação internacional? É um muro de silêncio.

Subscreve a nossa newsletter.

O Comité de Proteção de Jornalistas é claro: a escala e as circunstâncias das mortes, incluindo ameaças diretas a jornalistas e às suas famílias, são provas de que estão a ser intencionalmente visados. Resumindo, estão a ser assassinados. E os líderes do dito Ocidente, que enchem a boca com democracia e liberdade de imprensa sempre que podem, mantêm-se num gritante silêncio apoiando um genocídio. Quando dizemos “nunca mais”, é mesmo nunca mais. Quando a verdade é substituída pelo silêncio, o silêncio é uma mentira.

Somos inundados pela propaganda de Israel e dos seus ferrenhos aliados, e a crise do jornalismo também é isto. As redações deixaram de ter correspondentes estrangeiros e as secções de Internacional, muitas delas desfalcadas de jornalistas, passaram a depender quase sempre das mesmas fontes, não conseguindo fugir (mesmo que tentem) da propaganda saída dos gabinetes de comunicação israelitas, criando uma narrativa única. O contexto desapareceu das notícias, principalmente das televisivas, substituído por imagens de extrema violência, para se dar enorme destaque a sucessivas intervenções de (uma grande maioria) especialistas que alinham com a narrativa única - e a crise do jornalismo também é isto.

Estes comentadores simplificam a análise política à dicotomia bons contra maus, e quanto mais se pegarem melhor para as audiências, o telespectador é que sai a perder. É o permanente imediatismo e atração pelo espetáculo – e a crise do jornalismo também é isto. E, pelo meio, a vingança contra um povo inteiro é justificada com mentiras e soundbites – como o já gasto ‘direito à autodefesa’ de Israel. Quem as denuncia e desmascara pode sempre contar com a clássica acusação de antissemitismo. E esses comentadores de sempre, que até há bem pouco tempo gritavam genocídio sobre a Ucrânia, têm medo de usar essa palavra sobre o que Israel está a fazer ao povo palestiniano. Eles representam a falência moral do dito Ocidente, resta-nos a coragem do Sul global para o denunciar. Sabemos a quem esses comentadores servem.

Quando os jornalistas se recusam a replicar a propaganda de Israel, são pressionados e ameaçados com despedimentos. Se não se vergam, são despedidos. Dezenas de jornalistas já foram despedidos por todo o mundo por defenderem os direitos humanos nas suas redes sociais. Isto é um ataque aberto à liberdade individual que não deixa de ter grande impacto na liberdade de imprensa, instigando o medo e a autocensura, mas o silêncio domina. Israel apenas tem mentiras para tentar justificar o injustificável, os seus crimes de guerra e contra a humanidade.

O genocídio na Faixa de Gaza é o primeiro a ser transmitido em direto na televisão e nas redes sociais. Se hoje sabemos o que verdadeiramente está a acontecer, pondo em causa a narrativa única, é por causa dos jornalistas palestinianos. Continuam a fazê-lo mesmo depois de perderem as suas famílias, de verem os seus camaradas de profissão serem impunemente assassinados, de verem os seus compatriotas despedaçados por bombas de fabrico norte-americano. Fazem-no sem saberem se estarão vivos no dia seguinte — e a crise do jornalismo também é isto. Resistem heroicamente e rompem com o silêncio que lhes tentam impor.

Os jornalistas palestinianos têm sido o verdadeiro contraponto ao consenso fabricado que nos tentam impor. Por isso são assassinados por um Estado de apartheid que há décadas age à margem da lei internacional – e a crise do jornalismo também é isto. Os políticos israelitas nem o tentam esconder, chegam até a dizer publicamente que os jornalistas são alvos legítimos. Houve até jornalistas portugueses a replicar cá esse discurso, uma vergonha, até se lhes poderia chamar traidores de classe. Mas as suas mentiras têm sido desmascaradas e o mundo está com os olhos bem abertos por causa dos jornalistas palestinianos.

Os jornalistas palestinianos incorporam o verdadeiro espírito do jornalismo: contam as verdades, que são sempre subversivas. Fazem-no sob um custo individual e coletivo atroz. Por isso, muito obrigado pela vossa coragem.

Jornalismo independente e de confiança. É isso que o Setenta e Quatro quer levar até ao teu e-mail. Inscreve-te já! 

O Setenta e Quatro assegura a total confidencialidade e segurança dos teus dados, em estrito cumprimento do Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (RGPD). Garantimos que os mesmos não serão transmitidos a terceiros e que só serão mantidos enquanto o desejares. Podes solicitar a alteração dos teus dados ou a sua remoção integral a qualquer momento através do email geral@setentaequatro.pt