O projeto turístico em Benagil, no concelho de Lagoa, outrora de Luís Filipe Vieira, é situado numa zona extremamente sensível à beira de uma falésia. Quando foi aprovado, o Plano de Pormenor foi feito à medida e gosto do então presidente do Benfica. Hoje, está nas mãos do Novo Banco e foi parar a tribunal.
Há 22 anos que Daniel Santos tem um terreno em Lagoa, Algarve, à espera de poder construir uma casa. Longe da costa, rodeado de vivendas, com vista para o mar, o terreno ficou excluído do Plano de Urbanização, aprovado em 2007, mas pensado desde os anos 1990. Nestas últimas duas décadas, diz ter gastado cerca de um milhão de euros a tentar obter os direitos de construção.
“Vejo um terreno que é espetacular, que tem uma vista lindíssima, que tem um declive suave lindíssimo, onde tem vivendas muito bonitas todas à volta e que nós não conseguimos fazer lá nada”, conta-nos este empresário da construção, de Beja, que herdou o terreno do pai.
Benagil é uma pequena aldeia, em Lagoa, cuja costa marítima está recheada de falésias, onde abundam as arribas e as escarpas altas. É das poucas zonas na costa do concelho de Lagoa que ainda não se encontra ocupada por um empreendimento turístico.
Luís Filipe Vieira, então presidente do Benfica, adquiriu a Benagil – Realizações Turísticas em 2005, empresa que detinha os direitos do empreendimento turístico com o mesmo nome, hoje nas mãos do Novo Banco. Este é um dos empreendimentos do empresário do imobiliário que mais financiamentos obteve por parte do BES, como comprova a investigação do Setenta e Quatro e da SIC (aqui e aqui), que recebeu mais de 1000 documentos sobre a relação creditícia entre Vieira e o banco de Ricardo Salgado. Benagil é outro projeto de Luís Filipe Vieira no Algarve que, tal como Verdelago (ler sobre este empreendimento aqui), recebeu o selo de Projeto de Interesse Nacional.
Ao contrário de Daniel Santos, que é só um dos vários proprietários prejudicados no plano de urbanização, Luís Filipe Vieira garantiu todos os direitos de construção e foi autorizado a edificar um empreendimento turístico de luxo a escassos 300 metros da costa - com uma previsão de cerca de 1300 camas. Os dois núcleos de desenvolvimento turístico, incluídos no plano, são feitos à sua medida e gosto e absorvem todo o número de camas.
Na altura, o jornal algarvio Barlavento dava eco às queixas dos proprietários: nem um galinheiro podiam construir, reclamavam.
“O processo já vem quase como um dado acabado e adquirido”, conta-nos Hugo Silva, na época vereador socialista da Câmara de Lagoa e uma das vozes que se opôs ao plano de urbanização, contra a construção do empreendimento. “Todo o processo vem muito bem montado em termos de câmara para depois dar conhecimento na vereação, à oposição. Não fizemos parte nem fomos ouvidos na fase inicial do processo.”
Hugo Silva, que já não é vereador, é claro nas suas críticas à atuação da câmara. “A câmara começou antecipadamente a condicionar os direitos de construção com base num plano que ia entrar em vigor”, critica.
Quem elaborou o plano foi Paulo Correia, da empresa Suloura, engenheiro e professor no Instituto Superior Técnico de Lisboa. Quase simultaneamente à redação do plano de urbanização, Correia também foi o responsável pela revisão do PROTAL, que entrou em vigor em 2006. “Há ali uma pequena sobreposição [na elaboração dos planos], muito ligeira. Porque tenho sempre o cuidado de quando trabalho para particulares não trabalhar para o Estado e Câmaras da mesma região”, diz-nos.
Paulo Correia refere-se a privados porque, na altura, o presidente da Câmara de Lagoa, José Inácio, entregou o desenho do plano nas mãos de Luís Filipe Vieira. E foi ele quem pagou os serviços do engenheiro do Instituto Superior Técnico de Lisboa.
Quanto à contestação dos pequenos proprietários, Paulo Correia vê com naturalidade que o plano defenda os interesses de quem o custeou. “O plano continua a ser municipal. É só um problema de a Câmara poupar dinheiro”, nota, vendo com trivialidade o facto de o plano ter sido feito à medida de quem o pagou: “Isso seria sempre. Ele [Luís Filipe Vieira] vai sempre tentar influenciar o plano no sentido de defender os seus interesses”.
Não é difícil defender os seus interesses quando se paga o plano. E ficar com todas as camas previstas no projeto. “Prejudica sempre quem fica de fora”, diz Paulo Correia. “Ele comprou aquilo que lhe faltava”, concluiu, defendendo ser o necessário para “fazer um empreendimento turístico viável”. Quanto a entregar a raridade paisagística dos terrenos de Benagil a uma só pessoa, Correia concorda que isso agiliza a especulação imobiliária: “Facilita, claro. É um monopólio de localização. É como, por exemplo, um bairro só ter uma farmácia e a farmácia faz o preço que quiser.”
“O processo está todo inquinado logo à partida”, afirma Hugo Silva. “É algo que não faz sentido: um plano de urbanização, que vai ter a chancela do município de Lagoa, que a partir do momento em que entra em vigor é um plano municipal de que estamos a falar, estar a ser custeado por alguém que, obviamente, tem interesses porque tem lá terrenos para desenvolver numa determinada maneira…”
José Inácio, social-democrata que comandou os destinos da Câmara de Lagoa entre 2002 e 2013, não entregou apenas o plano nas mãos de Vieira – acelerou a sua aprovação. Em dois anos, o então presidente do Benfica obteve o monopólio dos direitos de construção.
“Nunca teve a honra e dignidade de falar connosco depois de 20 pedidos de reunião", disse Daniel Santos referindo-se a José Inácio, antigo presidente da CM Lagoa.
“O tratamento de celeridade e de silêncio também foi dado em virtude de quem estava envolvido no negócio. Uma das questões que nos saltou logo à vista foi precisamente a zona de apetência para que as quase 1300 camas previstas para esta zona se cingissem a dois ou três terrenos, ignorando todos os outros proprietários que existem dentro da incidência do plano de urbanização”, nota o antigo vereador socialista, Hugo Silva.
Daniel Santos, o proprietário excluído, tentou por múltiplas vezes reunir-se com José Inácio. “Nunca teve a honra e dignidade de falar connosco depois de 20 pedidos de reunião. Quando marcávamos era sempre uma dificuldade. Quando se marcava, em vez do presidente, aparecia o arquiteto”, queixa-se.
Luís Filipe Vieira foi comprando os terrenos dos pequenos proprietários através de duas sociedades, a Imoascay e a Sumaric, offshores redomiciliadas (empresas sediadas em paraísos fiscais relocalizadas para Portugal). O projeto recebe a aprovação do Plano de Pormenor em 2011, dois anos antes de José Inácio deixar a Câmara de Lagoa – já só bastava o licenciamento. “Ainda me recordo que em muitos momentos de discussão, o presidente da altura fazia questão de não estar presente nas reuniões de câmara quando alguns assuntos mais melindrosos relacionados com estas unidades de planeamento eram discutidos”, conta-nos Hugo Silva.
Faltava às reuniões de câmara, mas não faltava a um jogo do Benfica. José Inácio, segundo os vários emails a que tivemos acesso, aparecia nas listas de habituais convidados para ir assistir os jogos dos encarnados na tribuna de honra do Estádio da Luz. O antigo presidente da Câmara de Lagoa, depois de várias insistências, não quis falar connosco.
“Nunca deixou de se falar nas visualizações dos jogos de futebol nos camarotes presidenciais do Estádio da Luz”, afirma Hugo Silva. “Tornou-se logo, desde o início, evidente que havia uma vontade férrea de fazer aprovar o plano.”
Passado apenas um ano da aprovação do seu empreendimento turístico, Luís Filipe Vieira já tinha 48,9 milhões de euros de dívida com o BES, associado a este projeto, sem nada construir. Estava na hora de se livrar dela. E do terreno.
Em junho de 2012, numa das maiores reestruturações de dívida do grupo Promovalor, Luís Filipe Vieira vende as suas unidades de participação do Fimes Oriente, um fundo imobiliário fechado em parceria com o Grupo Espírito Santo, à seguradora BES Vida. Nesta reestruturação, Benagil entra no saco do BES Vida por 70 milhões, desembaraçando-se da sua dívida (49 milhões), que nunca fora paga por Luís Filipe Vieira. Ao todo, nesta reestruturação, o empresário encaixou 156 milhões de euros e reduziu o seu passivo em 256,4 milhões.
Com a queda do BES, em agosto de 2014, Benagil ficou nas mãos do Novo Banco. Depois de dois anos no baú, em 2016 o projeto recebe novamente licenciamento da câmara. Mas a Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Algarve intervém em 2017, adotando uma política menos permissiva em relação à construção deste tipo de projetos na região e pede que seja realizado um estudo de impacte ambiental.
O terreno onde Luís Filipe Vieira estava a projetar dois hotéis de luxo e um aldeamento turístico fica num troço sensível, de solo calcário, na linha de costa entre a praia do Carvalho e Senhora da Rocha, onde se incluem as praias de Benagil e da Marinha. Está situado numa zona imediatamente antes da crista da falésia.
O estudo de impacte ambiental, de dezembro de 2018, conclui que a edificação do projeto terá impactos muito negativos, “irreversíveis”, não “minimizáveis”, “decorrentes da forte intrusão visual permanente que o empreendimento provocará numa das raras partes do território do Algarve que preserva alguns dos traços de paisagem característicos da originalidade do sistema costeiro regional”. É um não redondo para travar a edificação do projeto.
“Trata-se de um troço da costa do Algarve central, das poucas zonas que ainda está livre. É uma questão pertinente porque é uma área com uma enorme pressão urbanística, o que faz com que estes espaços que ainda existem sejam altamente cobiçados quando se trata de zonas únicas no Algarve”, diz-nos Luís Brás, membro da associação ambiental Almargem
O Novo Banco, ávido para fazer negócio, já tinha um comprador para os terrenos. António Ramalho, presidente do Novo Banco, falou na Comissão Parlamentar de Inquérito sobre um comprador russo que estava disposto a pagar “um valor emocional pela frente de mar”. “O Novo Banco não estava à espera deste revés, não concordou com ele”, diz-nos Carlos Brandão, porta-voz do banco.
Guardando a consciência ambiental na prateleira, a instituição financeira coloca a decisão da CCDR Algarve em tribunal. “Em 2018, a posição da CCDR foi de um parecer desfavorável ao projeto. Contudo, o proponente [o Novo Banco] entendeu que essa decisão tinha de ser tomada em determinado prazo – havia um deferimento tácito. Não era essa a posição da CCDR. A CDDR considerava que o projeto deveria ser sujeito a outros estudos”, afirma o presidente da CCDR Algarve, José Apolinário.
Em julho de 2021, o tribunal decide a favor da instituição de António Ramalho por causa de três dias. “Por ser um projeto PIN, o prazo de prenuncia devia ser de 90 dias e foi pronunciado ao nonagésimo terceiro dia. Se fosse um regime geral era de 100 dias, um projeto PIN é de 90”, diz-nos Apolinário.
O Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé considerou, ainda, que a CCDR deveria ter promovido a “articulação” com o Novo Banco para “evitar ou reduzir os efeitos significativos no ambiente” e que o parecer desfavorável devia ter sido mais concreto quanto a conceitos como “forte intrusão visual” e “densidade construtiva”. “Não basta, pois, que o projecto [sic] tenha impactes ambientais negativos e irreversíveis”, lê-se na decisão. “Que os tem, quase sempre.”
Luís Brás, da associação ambiental Almargem, não quis acreditar quando lhe revelámos a decisão do tribunal: “Deixa-me perplexo que isso tenha acontecido porque todos os fundamentos apresentados pela CCDR eram claríssimos e mais que evidentes.”
Com Pedro Coelho, grande repórter SIC. Esta reportagem teve a colaboração de Rita Murtinho, Maria Rodrigues e Diana Matias (SIC).