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Xullaji: "Não fizemos nem estamos a fazer uma revolução para ocupar o lugar que o branco ocupava”

Xullaji é também Prétu com o seu novo projeto musical “de difusão de pensamento político pan-africanista". O rapper denuncia a degradação das condições de vida nos bairros na periferia de Lisboa e a sua invisibilização pelo poder político. “Não há interesse nos sítios onde moramos, senão para condicionar e preparar mão-de-obra.”

Entrevista
7 Setembro 2023

Xullaji, nome escolhido por Nuno Santos para o seu projeto artístico no rap, é um nome incontornável do hip-hop português ao ter uma expressão artística marcada por uma veia interventiva e cŕitica de questões como as desigualdades sociais e o racismo. Prétu é o seu novo projeto artístico com data de lançamento a 23 de setembro. Emergido do universo da cultura africana e da herança musical deixada por artistas como Os Tubarões, Princezito ou Bonga, Prétu é um "projeto de difusão de pensamento político pan-africanista".

Podemos ver e ouvir nos seus vídeos e músicas críticas e pensamento sobre as questões da escravatura, do comércio transatlântico, o colonialismo ou o racismo. Recusa, no entanto, uma visão que se cinge exclusivamente à cor da pele: "O discurso identitário desmembrado da questão de classe de quem nasce preto neste país é completamente estéril". Apesar de ver como algo positivo a maior visibilidade da cultura negra em Lisboa, Xullaji critica o "reaviver do lusotropicalismo" através de uma celebração da música de cultura africana que, diz, não foi acompanhada de um trabalho político que garanta os direitos desta população: "Não é por se estar a ouvir mais a música negra que se está a escutar mais a comunidade negra". 

Denuncia também o agravar das condições de vida nos bairros periféricos de Lisboa e a falta de respostas do poder político de garantir uma melhor habitação. "O importante é quando estamos a recolher tabuleiros no Dolce Vita, a encher placas de betão para construir o Colombo ou entreter milhares de pessoas em festivais", critica.

Dependemos de quem nos lê. Contribui aqui.

Como surgiu o projeto Prétu? 

No rap que eu fazia como Xullaji comecei a sentir que as pessoas encerravam-me numa gaveta. Xullaji é e foi uma expressão artística minha através da escrita e mais concretamente do rap, mas, sendo um jovem negro cabo-verdiano da periferia de Lisboa, tinha todo um outro universo à minha volta que não foi expresso. Cada vez que fazia uma coisa mais ao lado em Xullaji, as pessoas diziam “ah, mas tens que fazer rap”, então fui fazendo uma série de coisas que eram só para mim.

Nos anos 1980 e 1990, quem ouvia hip-hop neste país ouvia música eletrónica. O techno, o house, o hip-hop são os três descendentes do disco-funk nos Estados Unidos. Crescemos num país com maioria branca, então há músicas que depois são branqueadas e os próprios negros dizem que é música de brancos. Há o processo, que o hip hop está a passar em Portugal, de branquear uma música até que ela seja expropriada.

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Xullaji diz que se tem fortalecido o discurso de celebração do lusotropicalismo sobre a cidade de Lisboa. 

Fala-se de apropriação, mas eu falo de expropriação: um povo ser expropriado da sua cultura, o que é a nossa história. À parte do hip-hop, sempre ouvi uma série de outras coisas, principalmente música africana e cabo-verdiana. Sempre que fazia um beat saía muito mais uma coisa com influências africanas do que americanas.

Quando me comecei a sentir encerrado nessa caixa e quis não só expressar-me liricamente, mas também musicalmente, fui produzindo desde 2010 o que veio dar origem ao que hoje a gente ouve como Prétu. Não é só um projeto musical, é acima de tudo uma expressão que tem várias componentes artísticas: a visual e a musical como principais, mas acho que até tem escultórica e por aí adiante. O que se vai ouvir neste primeiro Prétu, que vai sair dia 23 de setembro, é o culminar de beats que fiz ao longo dos tempos e que têm essa matriz africana.

Diria que aquilo que tem feito diferente com o Prétu é uma declaração de orgulho das suas raízes africanas? 

O projeto Xullaji já era muito acusado de ser racista por eu sempre ter manifestado o meu orgulho nas raízes africanas. Não é só o orgulho nas raízes, porque esse discurso identitário desmembrado da questão de classe de quem cresce preto neste país é um discurso completamente estéril.

Não me identifico com burgueses que podem ser negros, mas que não viveram o mesmo que eu, porque enquanto a questão de pele nos une, outras questões nos separam. Muito desse discurso de “vamos ocupar um lugar” não põe em causa o capitalismo. Malcolm X chamava a isso a casa grande, Amílcar Cabral também falou disso. Não fizemos nem estamos a fazer uma revolução para ocupar o lugar que o branco ocupava, porque esse é um lugar de exploração, de expropriação, de imperialismo, de morte e de massacre. 

O Xullaji já expressava isso, mas expressava também o que era viver na Margem Sul vindo de um outro país, trabalhar nas obras, nas fábricas, nas limpezas… Prétu é diferente, pois, mantendo esse mesmo orgulho, explora esteticamente a cultura africana. O Prétu é isso, a maioria dos samples são de música de intervenção cabo-verdiana, guineense, angolana, e esse é o grande mote. Quando estás a ouvir “Bran Bran” há um sample d’Os Tubarões, quando estás a ouvir a “Luta Continua” há samples do Bonga e do David Zé, quando estás a ouvir “Uai Uai” tens samples do Tcheka, quando estás a ouvir “Waters” tens um sample do Princezito e do Vadú.

Apesar de ter essa densidade do hip hop, samples em cima de samples com sintetizadores, é inequívoco do ponto de vista estético, no sentido em que vai beber, aprender, observar e ressincronizar a atualidade com a cultura africana, seja contemporânea, seja a dos últimos anos.

Há aqui uma visão pan-africanista, na procura da consciência da negritude, mas também uma consciência política da pessoa negra? 

A cultura de um povo gera a sua política, essas coisas não estão separadas. Para mim, a estética é uma manifestação política, e nesse sentido estes projetos são como o “Black Arts Repertory” do Amiri Baraka ou os ballets da Guiné – a sincronização de um pensamento político. Prétu é um projeto de difusão de pensamento político pan-africanista e tem de o ser, porque não consigo fazer e pensar a arte de outra forma.

“Peles Negras Máscaras Negras” também é um objeto de estetização e de difusão de pensamento pan-africanista, e o nosso teatro é mesmo pensado assim. Todo ele é assim, não é só no discurso, é também na prática. A nossa estrutura é pan-africanista. Não é uma estrutura de um artista negro a querer pisar a maquinaria branca.

É em todo o seu processo uma tentativa de se libertar, de me libertar daquilo que as pessoas pensam ser Xullaji e dizer “não, eu sou várias outras coisas”. Isso é um pensamento pan-africanista. Quando ouves “Xei di Cor”, eu digo “vou matar o preto que há em mim e o branco que há em mim, e vou ser eu, Prétu”, isso é um princípio de libertação.

Quando Amílcar Cabral falava do ‘Novo Homem Africano’, estava a falar de uma nova entidade e identidade que tem de surgir de nós, homens e mulheres africanos, livre do preto e do branco que o branco construiu dentro da nossa cabeça.

"Crescemos num país com maioria branca, então há músicas que depois são branqueadas e os próprios negros dizem que é música de brancos. Há o processo, que o hip hop está a passar em Portugal, de branquear uma música até que ela seja expropriada."

Como diz o James Baldwin, para o branco se construir, teve de se construir como superior e criar uma imagem em oposição a si próprio como inferior: negros, asiáticos, indígenas, mulheres ou homossexuais. Ele construiu a ideia de “eu sou o guia e tudo o resto é o meu negativo e tenho que civilizar”. Enquanto não matar o homem branco, não conseguimos matar o homem preto. E matando esses dois, porque um e outro são construções do branco, nasce algo que nem sabemos o que é, uma identidade que vamos descobrir para a frente. O que vemos muitas vezes, até do ponto de vista de trabalho político, é que as contra-identidades que construímos são dependentes…

A oposição branco/preto.

Exato, portanto nesse sentido é raso, estamos a construir o nosso movimento em contra-afirmação aos movimentos brancos, às vezes até a querermos afirmar-nos dentro desses centros. Prétu não é isso, até porque não tenho um mapa de onde é que Prétu vai chegar. A cada música, concerto e trabalho que a gente faz vai encontrando um caminho, porque é uma espécie de guerrilha cultural em permanência.

Não sabemos onde isto vai parar nem sabemos quando acaba. Fizemos a primeira parte musical com os concertos, e há ainda duas partes: uma é só spoken word, a outra tem sonoridades, até do ponto de vista sónico não sei bem o que é, porque foi sempre uma procura. Começou desde 2010 até agora e há de brotar, porque a nossa identidade é uma coisa em movimento. O essencialismo preto é uma coisa que os brancos inventaram para nos congelar na história.

No vídeo 'A Luta Continua', há um cenário da luta da libertação das ex-colónias, os discursos de Amílcar Cabral e a Rádio Libertação com a Amélia Araújo e vê-se um paralelo com a luta desses guerrilheiros, só que depois estão a ser remetidos para o presente. Isto foi uma forma de afirmar que a luta contra o colonialismo ainda precisa de ser feita? 

Claro, isso é nítido. Essa biblioteca colonial que fala em pós-colonialismo é uma ilusão, porque neste momento a corrida em África é tão ou mais intensiva do que foi no virar do século XIX para o XX, depois do Mapa de Berlim, ou do que foi a meio do século XX.

Neste momento, para termos telemóveis a gravar as nossas entrevistas, há pessoas a morrer brutalmente nas minas do Congo pelo cobalto que faz estas baterias, as baterias dos carrinhos do suposto milagre verde. Da mesma forma, a Revolução Industrial das fábricas e da classe trabalhadora não foi possível sem a expropriação de corpos pretos e de mulheres, muitos deles a recolher o algodão que fez essas fábricas têxteis nascer. Também esta revolução verde que estamos a viver é impossível sem os corpos a recolher estes minérios.

Há sempre uma parte invisível que não está na história. Estas pessoas não ganham pelo que tiram, morrem. Se não morrem do trabalho morrem das doenças, de tudo o que implica do ponto de vista de saúde colher isto. Estas pessoas têm que ser expropriadas das suas terras para poderem não ter mais nada e acabar nas minas. Não há diferença nenhuma entre o colonialismo antes dos anos 1960 e 1970 e o de agora, senão que hoje há uns bonecos que o administram, e por serem pretos não representam menos os interesses europeus, chineses e americanos em África. Portanto, a luta obviamente continua. E esse samples diz "Enquanto não acabar a opressão, a Luta Continua". É nítido, não estou a inventar nada.

Muitas das coisas que eu faço com os samples acontecem a pensar “Ele disse isto, isto está desatualizado? É que ainda está super atual”. Portanto, colo o que alguém disse naquele tempo e que ainda continua. O colonialismo manifesta-se agora de uma maneira ainda mais brutal, porque a fronteirização em África reflete a fronteirização na Europa. A forma como se fronteiriza em África não é para defender interesses nacionalistas de países africanos, que ainda por cima refletem fronteiras que não criaram, mas para defender interesses de circulação militar e de minerais em África.

Depois, há necessidades demográficas. O povo africano é um povo que, apesar da interrupção com o comércio transatlântico demográfico, vive outra vez uma explosão demográfica e uma necessidade de contenção em que as pessoas não conseguem encontrar condições nas suas aldeias e movem-se como o mundo sempre se moveu. São manifestações deste colonialismo ainda mais desenvolvido e mortal que agora tem drones, robôs militares, fronteiras eletrificadas, biometria, tudo isso.

A discussão sobre o pós-colonialismo está desfasada da realidade da forma como o colonialismo ainda está presente?

Não sei como se discute isso na academia e como se emprega a palavra pós-colonial. Há um livro muito interessante sobre descolonização da Linda Twain. Ela estava com o povo Maori e na conversa os iluminados da academia começaram a falar sobre pós-colonialismo. Um homem maiori perguntou: "Post-colonialism? When did they left?" [Pós-colonialismo? Quando é que eles partiram], e isso marcou a minha vida. “Cause they didn't left yet.” [Porque ainda não partiram].

O que aconteceu foi que se substituiu a administração e durante um tempo houve alguma ilusão de que ia haver liberdade, mas a Europa percebeu que seria até mais fácil corromper interesses, exacerbar diferenças étnicas, para continuar a explorar aquele lugar. Do ponto de vista de aquíferos, de terra arável não explorada, de minérios, com toda a exploração que tem, diz-se que ainda não se explorou sequer 10% dos recursos daquele lugar.

Há espaço no panorama musical português para música que toque nestas questões de racismo, da exclusão social, do colonialismo? 

Não há nem nunca houve. Há espaço para falar de questões de racismo, porque estão na moda. Questões de racismo são isso mesmo, racismo. Só que ele não vive sem classismo, imperialismo, machismo.

Quando se diz "Não, mas a classe trabalhadora portuguesa usufrui da exploração por parte de empresas como CUF, J Pimenta, desde os minérios e de outras coisas africanas”, começas a criar uma cisão. Este país não discutiu racismo algum, e nem tem apetência de o fazer se não for de uma forma altamente controlada e doseada, na academia ou fora dela. Quando se vai para além disso, é-se ostracizado. Eu senti sempre isso com o Xullaji.

Quando cantava uma música como “Já não dá”, isso representava um sentimento coletivo das pessoas pobres do país, pretas, brancas, ciganas. Aí havia algum clamor, mas quando falava de questões raciais não havia esse espaço. Há vários projetos negros que falam de racismo, mas falam à superfície, falam do helicóptero. Muitos deles falam mais para os brancos do que como princípio de mobilização das pessoas negras contra esse fenómeno. Então, quando cantas lá de helicóptero e dás uma ou duas ou três dicas até se é aceite, porque está na moda.

Depois do George Floyd, falar de racismo foi tão instrumentalizado e mercantilizado como foram as sementes de caju. É uma mercadoria. Ao mesmo tempo foi importantíssimo para visibilizar, mas depois do George Floyd já morreram uma série de outros homens e mulheres negras nos Estados Unidos, e já tinham morrido vários antes. Aquilo foi só um fenómeno que se tornou mainstream.

Então toda a gente: “pronto, temos que meter um negro ou uma negra na nossa empresa, uma pessoa LGBTQIA+ aqui no nosso museu, aqui para afirmar que nós não somos racistas”. Mas o racismo estrutural não existe sem toda a exploração das pessoas, e esse não acabou. Quando vais mais a fundo, não há lugar e eu sinto que o projeto Prétu não tem lugar aqui em Portugal.


"Não me identifico com burgueses que podem ser negros, mas que não viveram o mesmo que eu, porque enquanto a questão de pele nos une, outras questões nos separam."

Não está a querer falar só para Portugal.

Sim, enquanto o Xullaji é um projeto de rap circunscrito a Portugal, até pela maneira como uso a língua portuguesa, ou o cabo-verdiano da periferia de Lisboa, Prétu nunca foi um projeto para ficar limitado a Portugal.

Comecei a fazer este projeto quando vivia em Londres. Não eramos só nós negros, havia toda uma amálgama de coisas. Estar com os filhos do Windrush Generation, Jamaicanos em Londres, ver as discussões e entender que vou sempre querer falar disto, esta é a minha luta, o meu dever, o meu serviço. Portugal não tem essa abertura, mas não faço o projeto Prétu para Portugal.

Na música “Xei di Cor”, há uma parte em que diz "de Lisboa nova tens um toque de midas, tudo o que pegas era meu agora é nosso, e pelo meio roubas vidas". Esta ideia e o movimento que se tem criado da Nova Lisboa, africana, multicultural, está desconectada com a realidade material do racismo e da exclusão?

Sim, não tenho dúvida nenhuma disso. Essa Lisboa preta não é nova, tem 800 anos de presença árabe. A primeira Lisboa, antes sequer de D. Afonso Henriques, sempre teve negros. Às duas por três, 10% da população de Lisboa era negra. O que há é períodos de visibilização e invisibilização dessa comunidade. 

Períodos em que o Marquês de Pombal pega nos negros: "o pessoal está a dizer que Lisboa tem muitos negros" e manda-os para os arrozais de Alcácer e para o Alentejo. A nossa população é uma constante nesta cidade há pelo menos 500 anos, com mais ou menos flutuações. Ter atingido 10% da população lisboeta em alguns períodos não é brincadeira. Neste momento estima-se que sejamos 5%, já fomos até se calhar mais.

O que há é um aproveitamento regimental da população negra. Neste caso, há uma Lisboa que se tem construído agarrada ao turismo e que tem de atrair públicos. Em Londres cheguei a ler numa revista que Lisboa era “a porta dos trópicos na Europa". Para te venderes como porta dos trópicos tens que ter todo esse exotismo montado. Quem mais vende isso é o concelho de Lisboa, mas os negros não moram lá, e com a gentrificação muito menos. A maioria das pessoas pretas sempre viveu e vive à volta de Lisboa. Isso é um movimento de vaivém. Neste momento, há um movimento em que se celebra esse tropicalismo de Lisboa, o mesmo país que já celebrou ser o 'bom colono'.

É um manter do lusotropicalismo?

Há um reavivar do lusotropicalismo, que não é acompanhado sequer do ponto de vista político. O racismo está a crescer em tudo. Há uma celebração cultural e há um lado disso importante e que cria uma visibilização do género “nós somos negros, vivemos nesta cidade, somos dessa cidade, Lisboa”.

Mas depois muito disso é para vender aos turistas. Quando vais ao concelho da Amadora, Seixal, entre outros, o número de eleitos do Chega, as pessoas descontentes com a presença de negros e ciganos, é grande. Isso está desfasado, porque não é um discurso para realmente implementar a noção de que Lisboa é uma cidade pluricultural, o que é, e que se devia ter assumido sempre assim.

Mas assumir isso implica também assumir politicamente a criação de acesso às pessoas, e a não usar só os negros e negras para limpar e construir este país. E alguns para colorir a academia e outros lugares. Quando sai o afro-house, ou o funaná, ou o hip-hop procura-se isso como mercadoria, porque essas mercadorias geram muito. A mercantilização da cultura negra é altamente rentável.

O sucesso e visibilidade de géneros musicais como a kizomba ou o funaná tem criado uma falsa sensação de inclusão das pessoas negras em Portugal?

A visibilidade da cultura negra em Lisboa ou no país é importantíssima, porque estamos cá e temos essa cultura. Nesse aspecto é importante que jovens que doutra maneira estariam na rua vejam a sua música crescer, vivendo dela. 

Uma cultura como a kizomba faz parte de Lisboa há muito tempo, mas explodiu apenas há uns anos. Nós sempre crescemos com isso. O mesmo com o funaná ou com a morna. Agora é que está a ser aproveitada, e está-se a criar uma ilusão. Mas isso é em Lisboa, é no centro, é para branco ver. Aqui a polícia continua a fazer como sempre fez, as escolas continuam a ser desmanteladas como sempre foram, as pessoas estão a ser escorraçadas, a pobreza agrava-se. Isso não tem sido, e devia ser, acompanhado de uma aceitação e de uma maior escuta entre todas as comunidades.

"Depois do George Floyd, falar de racismo foi tão instrumentalizado e mercantilizado como foram as sementes de caju. É uma mercadoria. Ao mesmo tempo foi importantíssimo para visibilizar."

Neste momento tens o Nininho Vaz Maia, importantíssimo para a comunidade cigana começar a ter os seus artistas no mainstream, mas estamos num momento de ódio muito grande à comunidade cigana. Não é porque se está a escutar a música cigana que se está a escutar mais os ciganos. Não é porque se está a escutar mais a música negra que se está a escutar mais as pessoas negras. Está-se a escutar meia dúzia deles em lugares chave, mas isso não implica escutar as populações das periferias de Lisboa.

Existe um apagamento das condições de vida precárias nos bairros periféricos, onde a maior parte desta população vive, no discurso público dominante e nos media?

Claro. Todo este discurso de 'temos que ocupar o lugar'. Para já, é um discurso de legitimação do capitalismo, é meritocrático, e invisibiliza um enorme número de pessoas. Já fui a sítios e ouvi certas mulheres falar com desdém da limpeza: "Ah, porque nós já não somos trabalhadoras da limpeza", mas não se deve falar com desdém do trabalho que nos sustenta.

Não é que a gente tenha que ser o resto das nossas vidas trabalhadoras da limpeza, mas um movimento político tem que ter essas várias frentes unidas e não dizer "agora somos melhores, porque agora somos académicas, somos melhores porque agora somos rappers e estamos em hotéis em vez de lá no bairro“.

Devíamos usar esse espaço e visibilidade para abrir mais portas, abrir o espectro de visibilidade do resto da comunidade, porque a maneira como eu sinto que os portugueses nos veem é: se fores uma pessoa que está a bater na música então és um máximo, senão és um preto bandido, uma mulher da limpeza. Eu trabalho nos bairros, estou nos cafés, oiço muita coisa, e do ponto de vista do discurso sinto que não há grande mudança.

Mesmo Dino D'Santiago, que é uma pessoa conhecida, teve um episódio de racismo quando ia apanhar um táxi. Mesmo assim há uma dualidade nestas pessoas mais conhecidas do público.

Mesmo essas pessoas não são totalmente conhecidas. Quando continuamos a ficar surpreendidos com esses episódios, é como se não vivêssemos na realidade. Esses episódios acontecem a toda a hora, tornam-se notícia quando acontecem com uma pessoa conhecida. Nesse sentido, há um apagamento das condições. O grave é haver um agravamento dessas condições e não se falar muito disso. Fala-se muito dos lugares que temos de ocupar e não dos lugares que ainda ocupamos. Estas duas conversas têm que se retroalimentar e não se alimentam, estamos a esquecer-nos de uma. 

Recentemente, com Xullaji lançou sons que abordam estas questões, como a gentrificação no 'O que é que fica' com A Garota Não e o 'Sonhei que no meu bairro', na qual critica a falta de políticas para garantir melhores condições de vida e a marginalização social a que o bairro está submetida. Porque tem faltado respostas adequadas do poder político para garantir melhores condições de vida aos bairros periféricos?

Não é suposto haver. Quando tu chegas a Almeria ou a Odemira e vês quem são as pessoas que plantam aquele tomatinho, as condições em que trabalham e onde vivem, percebes que só estão ali para isso. São biostock para produzir aquela mercadoria, como dizia Achille Mbembe. Não se tem em conta as suas condições de trabalho, quanto mais de vida.

Desde que fomos raptados, colocados nos bairros, nunca houve atenção a isso. Quando estavas na senzala, o importante era o momento em que estavas na plantação, depois a senzala era o que fosse. Para estas pessoas o importante é quando estamos a recolher tabuleiros no Dolce Vita, a encher placas de betão para construir o Colombo ou a entreter umas quantas milhares de pessoas num festival.

Não interessa onde vivemos, porque são campos de concentração. São não lugares que devem ser invisibilizados. Por isso é que nesses não lugares falta saúde, escolas em condições, que os bombeiros e os polícias levam uma hora a chegar (ou vêm para bater), que a recolha de lixo não é feita com a mesma frequência do que noutras zonas, os autocarros não passam com a mesma frequência, a relva não é cortada com a frequência que é cortada nas outras zonas. E a lista pode continuar.

Estes lugares foram sempre não lugares. Desde a Revolução Industrial: há fábricas e há os sítios onde essas pessoas moram. O que importa é a fábrica. O sítio onde tu moras é só para te pôr aquelas horas para dormires e descansares para voltares para a fábrica.

Se fosse possível dormirmos atados à máquina, dormíamos. Isto do ponto de vista figurativo. Olhando bem, para lá da primeira e segunda camada, é isso que acontece às pessoas que trabalham, vêm aqui só recuperar o fôlego para voltar a trabalhar, com os seus direitos e condições de vida cada vez mais atacadas, com um salário que  dá para cada vez menos.

As pessoas que moram aqui neste bairro, há uma parte que é habitação pública do IHRU, outra eram casas de baixa renda onde se pagava 200 e tal euros e agora paga-se 500, 600, 700. Só está a subir porque as pessoas escorraçadas de Lisboa vêm para aqui e as pessoas daqui são escorraçadas para outros sítios.

Não há interesse nos sítios onde moramos, senão para condicionar e preparar mão-de-obra. As pessoas que importam a esta sociedade não vivem aqui. Nós temos que lutar para melhorar este lugar, não é esperar que o poder vigente, que é cada vez mais dependente da alta finança, o faça.

"Não é porque se está a escutar mais a música negra que se está a escutar mais as pessoas negras. Está-se a escutar meia dúzia deles em lugares chave, mas isso não implica escutar as populações das periferias de Lisboa."

É um dos dinamizadores no movimento Vida Justa, cuja base organizadora são pessoas vindas dos bairros periféricos de Lisboa. Este movimento pode trazer para o centro do debate político as reivindicações das periferias que têm sido esquecidas?

Sim, acho que pelo menos está a fazer uma coisa muito importante: a partir da periferia, escutar a periferia, ser a periferia a falar de si própria. Só isso já é uma grande conquista. Não sei se vamos conseguir levá-lo para o centro do debate político, mas o importante neste movimento é existir e fomentar essa discussão na nossa comunidade, e a partir das suas necessidades.

As mobilizações que se fizeram por a estação [de comboio] abrir para a zona da Damaia e não para a zona da Buraca para cima são importantíssimas, porque essas pessoas vêm de madrugada, vão de madrugada, vão dar uma volta enorme só porque quem mora por cima não interessa. Temos que levar estes assuntos para o centro do debate político, mas com a força de trazer a comunidade para essa discussão, como foi aquela mobilização, e como esperamos que sejam as próximas. 

Só o facto de se estar a pôr o centro da discussão na comunidade, nos encontros, nas assembleias, mais do que na política das redes, é louvável. O facto de se estar a tentar criar mecanismos de solidariedade política, económica e social dentro da comunidade é importante.