moita saraiva

Fotografia: FG+SG

Tiago Mota Saraiva: Portugal tornou-se “um grande prestador de serviços para quem tem capital"

Para o arquiteto o processo de gentrificação em curso é "contrário à sustentabilidade da cidade" de Lisboa e o interesse público deve prevalecer sobre a acumulação de propriedade, para que deixemos de estar “constantemente a perder pessoas e espaços”.

Entrevista
9 Fevereiro 2023

Um incêndio num rés-do-chão da Mouraria, ao início da noite do passado dia 4, matou duas pessoas, feriu 14 e desalojou 22. As vítimas mortais eram de nacionalidade indiana e todos os desalojados são imigrantes. Noticiou-se que a tragédia que abalou os vizinhos da Rua do Terreirinho descobria, finalmente, as condições insalubres em que vivem as populações imigrantes que habitam o bairro.

Mais do que isso, afirmou num tweet Augusto Santos Silva, este incêndio e as suas consequências devem servir para “sacudir as consciências”. “A habitação digna é um direito de todos”, rematou o presidente da Assembleia da República. A jornalista Sofia Cristino, do Jornal de Notícias, descobriu que há quem pague €150 por mês, na Rua do Benformoso, por um colchão onde dormir.

Para Tiago Mota Saraiva, a indignidade das condições habitacionais por todo o país é clara como a água —  e há vários anos. “Sabemos que há perto de 70 mil fogos declarados como estando em carência habitacional”, lembra o arquiteto, mas “se começarmos a colocar nas contas as situações de grave carência térmica podemos subir para os 500 mil”. São números que nos levam até 1974 e ao rescaldo da queda do fascismo, em que as periferias das grandes cidades eram compostas por bairros de barracas.

Ao contrário desses anos, em que se realojaram milhares de famílias em habitações dignas, “hoje estamos a tentar não viver pior”. Entre a inflação nas rendas, o mercado negro do arrendamento, os despejos ilegais e o aumento das taxas de juro nos créditos à habitação, a crise parece só poder agravar-se. 

Ainda assim, Mota Saraiva acredita que há soluções. Entre a construção de habitação pública, habitação privada cooperativa e sem fins lucrativos, há, também, “maneiras de mobilizar habitação privada devoluta, ou sem utilização, para dar casa a quem precisa”. O que, descansa o também urbanista, não significa a perda do direito à propriedade privada. 

O arquiteto frisa a necessidade de repensar a maneira como se constrói habitação, privilegiando os espaços comuns, e como se planeia a cidade, reforçando as redes de vizinhança. Para Tiago Mota Saraiva, o “processo de gentrificação é contrário à sustentabilidade da cidade” e o interesse público deve prevalecer sobre a acumulação de propriedade, para que deixemos de estar “constantemente a perder pessoas e espaços”.

Dependemos de quem nos lê. Contribui aqui.

Tem insistido que é necessário um maior compromisso no combate à corrupção. Afirma, por exemplo, que há falta de transparência nos procedimentos urbanísticos, obras e construções da Câmara Municipal de Lisboa (CML). À luz dos recentes desenvolvimentos relacionados com a Jornada Mundial da Juventude (JMJ) e o já infame altar-palco, como é que devemos começar por abordar esta questão?

Confundimos processos concursais com transparência. É comum a CML dizer que contactou várias entidades para, entre elas, decidir as adjudicações. Isso não é, por si, um processo transparente. Seria transparente se nós, cidadãos, tivéssemos acesso à informação que existe sobre os processos.

No caso da JMJ, acho estranho que, havendo tantas questões, as informações sobre o projeto e o que está a ser adjudicado não estejam disponíveis publicamente. Das duas, uma: ou o processo está descontrolado ou alguém não quer que se saiba alguma coisa. 

Sabemos que o projeto é muito mais que aquelas imagens que nos foram apresentadas. Por outro lado, ainda não se percebe o que está a ser adjudicado. A adjudicação à Mota-Engil foi feita num dia e só passada uma semana foi feita a contratação do projeto de segurança. Ou seja, não estará incluído na obra da Mota-Engil o projeto de segurança, porque ainda está a ser feito.

Parece que acontece o mesmo em relação ao projeto de luminotecnia. Não é muito claro, se aquela cobertura em onda [do palco] estará já contratada pela Mota-Engil. Também se sabe que nesse contrato não estão as fundações indiretas, visto que estão noutra contratação. 

Percebemos que existe um processo de adjudicações. Podemos sugerir que há, então, um desmembramento das contratações — talvez para que não se perceba que o altar-palco irá custar mais do que os 5,4 milhões de euros anunciados. Não deixa de ser curioso que tenha sido no mesmo dia em que é proposta a criação de um departamento anticorrupção, em reunião de câmara, que rebenta esta questão do altar-palco. Tem de haver uma lógica de total transparência: a imediata disponibilização da informação que existe ou é requerida. Ainda em relação ao palco, também não sabemos quem são os autores do projeto. É muito estranho esse desaparecimento da autoria, que deve estar estabelecida, segundo a lei. Alguém assinou um termo de responsabilidade perante aquele projeto.



"A falta de transparência está completamente normalizada. E cria os chamados pequenos poderes."

 

Quando passamos isto para os licenciamentos, que é uma escala mais fácil de entender, reparamos que os processos de corrupção estrutural, nos municípios, têm muito que ver com, simplesmente, colocar um licenciamento à frente de outro. É sabido que há arquitetos que têm capacidade de acelerar certos processos. Isto só se contraria disponibilizando — no imediato e não posteriormente — as informações que devem ser públicas.

A transparência, no urbanismo, não deve vir a montante, partindo de uma investigação sobre o que já sucedeu. Deve ser em tempo real, ao ponto de qualquer pessoa, quando o seu processo atrasa, poder telefonar para a Câmara e pedir informações. E não é preciso criar departamentos, basta usar os meios que temos. Tem de haver abertura e transparência. E temos de colocar as pessoas a fazer parte desse processo de fiscalização.

Essa falta de transparência foi-se normalizando?

Está completamente normalizada. E cria os chamados pequenos poderes. É um incentivo à prepotência e às decisões feitas na base do "achismo". Se a informação fosse pública, agir assim seria mais complicado. Haveria uma responsabilidade maior sobre os projetos que são assinados e mais bom-senso nos modos de agir. 

Às vezes vejo coisas pequenas — como alguém que quer demolir uma parede não estrutural — à espera de pareceres que demoram tempos e tempos, que acabam por ser extensíssimos e com deliberações quase filosóficas sobre a estruturalidade de uma parede. É importante que as pessoas tenham a ideia de que as informações sobre operações públicas devem ser públicas, para que todos possamos ver, investigar, encontrar paralelos. Em relação à JMJ, acontece o contrário. O grau de opacidade é tremendo.

Outra questão premente será encontrar alojamento para o milhão de pessoas que se espera que venha a Lisboa. Já há quem esteja a tentar arrendar quartos para aquela semana a centenas de euros por dia.

Preocupa-me esse processo inflacionário. É óbvio que esses preços não se irão manter, mas quando baixarem já não irão para o valor em que estavam no mês anterior. Vivi em Itália e cheguei lá pouco depois do Jubileu [do ano 2000, celebração da Igreja Católica que coincidiu com as JMJ, em Roma]. Lembro-me de me dizerem que, em 1999, os preços dos arrendamentos escalaram consideravelmente. Depois, nunca voltaram ao valores de antes. Temo que isso aconteça em Lisboa, porque continuamos sem um mercado de arrendamento regulado.

Há alguns anos, pelos menos cinco, que fala na crise no acesso à habitação como uma "bomba-relógio". Ao fim de tantos anos de turistificação, gentrificação, especulação e inflação das rendas, a bomba já explodiu? 

O sistema está a conseguir fazer com que a explosão seja controlada e segmentada, para que não se sintam os estilhaços. 

No pós-25 de Abril, por exemplo, era sabido que faltavam casas, entre 500 e 700 mil. Houve uma resposta pública associada a uma resposta cooperativa, numa lógica interessante em que o Estado se colocou como colaborador. Havia uma responsabilização das pessoas, no seu dever de organização. E os profissionais, que se colocariam ao lado dos moradores, dariam os seus serviços técnicos. No pós-25 de Abril, o Estado estava mergulhado com as pessoas a construir as coisas, e isso é uma diferença significativa.

Esta abordagem é muito diferente daquela que temos hoje, em que o Estado simplesmente avalia as candidaturas. Estamos numa situação diferente e talvez até mais difícil. Vivemos um momento em que as pessoas estão, silenciosa e envergonhadamente, a perder qualidade de vida, inclusivamente nas casas que habitam. Sabemos que há perto de 70 mil fogos declarados como estando em carência habitacional. Não acho disparatado pensar num número mais perto dos 100 mil. Se começarmos a colocar nas contas as situações de grave carência térmica, por exemplo, podemos subir para os 500 mil, e chegar aos números do pós-25 de Abril em termos de pessoas a viver em condições indignas.

A partir daqui, também sabemos que não resolveremos este problema com habitação pública. Não há capacidade para construir ou reabilitar 500 mil casas. A nossa resposta tem de abordar vários níveis, seja ao nível da habitação pública, seja ao nível da habitação privada de carácter não especulativo.

"As pessoas estão, silenciosa e envergonhadamente, a perder qualidade de vida, inclusivamente nas casas que habitam."

Ao contrário de 1974-75, em que havia uma tentativa real de fazer com que as pessoas vivessem melhor, hoje estamos a tentar não viver pior. Depois, há outra coisa determinante e preocupante. Em Portugal, os jovens saem cada vez mais tarde de casa dos pais. Isto cria situações de tensão nos seios das próprias famílias. Cria problemas e tensões traumatizantes na sociedade que podem não ser imputados à habitação, mas que decorrem das condições habitacionais. Uma pessoa com dez  ou 15 anos de idade não ocupa o mesmo espaço — o espaço simbólico dentro de uma casa — que uma pessoa de 30. 

Estamos numa crise gravíssima, com uma bomba-relógio nas mãos que pode explodir a qualquer momento. Mas o capital tem conseguido limitar os efeitos dessa crise com paliativos. Não sei de que lado irá explodir, mas parece-me que, com a subida das taxas de juro, Portugal está particularmente exposto. 

Somos o país da Europa em que o crédito contratado está mais associado a taxas variáveis. O Euribor, em Portugal, tem um efeito maior que noutros países. Cerca de 90% do nosso crédito contratado está em taxas variáveis, portanto estamos a sentir primeiro as subidas nas taxas de juro. Há uma classe média urbana com alguma visibilidade que vai ser afetada antes das restantes, mas também acho que há pessoas que preferem deixar de comer todas as refeições do que deixar de pagar o crédito da casa. Daí dizer que é um processo silencioso. As pessoas sentem-se sozinhas e mantêm-se sozinhas porque têm vergonha.

Tem-se falado muito em, finalmente, regulamentar o mercado de arrendamento. De que maneiras se pode começar por fazê-lo?

Primeiro é preciso dizer que temos um mercado de arrendamento profundamente liberal. Imaginemos que eu tenho um apartamento T2 que arrendo, contratualmente, a €500. Acaba o contrato. No mês seguinte, posso pedir €3000 por mês pelo mesmo apartamento. Ninguém me impede de fazer isto, porque o mercado é liberal. Eu só fico dependente de ter quem me pague os €3000. 

No atual mercado imobiliário, essa minha casa vale mais se estiver vazia do que se estiver arrendada pelos tais €3000, um valor exorbitante onde quer que seja. Se a vender vazia, estou a vender um imóvel e um potencial especulativo sobre aquele imóvel. 

Sendo liberal o mercado, temos de nos interrogar se não haverá outros setores que são regulados. E há: os combustíveis, a eletricidade. Devemos ou não regular a habitação? O senso comum, neste momento, diz-nos que sim. A começar pelas rendas.

Temos uma legislação que revolve em torno do direito à propriedade, que prevalece sobre quase tudo. Defendo um tabelamento das rendas em que é instituído um valor máximo, definido por regiões, relacionado aos rendimentos das pessoas. Haveria total liberdade contratual entre senhorio e inquilino. Tudo o que o senhorio recebesse a mais seria tributado como um bem de luxo. 

Neste momento, temos carência habitacional declarada em grande parte do território nacional. Quem tem um imóvel a arrendar está a providenciar um direito básico. De acordo com a Constituição, o proprietário pode ter lucro sobre aquele bem, mas esse lucro deve ser regulado.

Todavia, não sejamos ingénuos. Já sabemos que temos um imenso mercado negro de arrendamento — coisa que parece não preocupar as associações de senhorios e deveria ser tratado como um crime. E, perante esta ideia de tributar os valores que excedam esse teto, alguém poderá afirmar que os senhorios não vão declarar esse valor. Bastaria haver uma campanha especial de fiscalização de impostos, para verificar o que as pessoas pagam ou não, com cruzamento de dados.

Isso já não deveria acontecer?

Acontece, mas pouco. Não há muitos casos de senhorios que receberam rendas sem passar qualquer recibo e que tenham sido castigados. É importante começarmos a denunciar estes casos. Só no mercado virado para os estudantes e professores isso é mato. Não devemos condicionar as nossas políticas públicas pela ideia de que estas criarão mais práticas ilegais. Temos de fazer as nossas políticas públicas e garantir que sejam implementadas, inclusivamente do ponto vista fiscal. É preciso mobilizar as autoridades fiscais, cruzar dados e, pelo menos, perguntar.

Há quem defenda que a abordagem certa à crise habitacional é a construção de mais casas. Também sabemos que nos principais centros urbanos há milhares de casas vazias, muitas delas abandonadas. Qual é a sua opinião?

A lei de bases da habitação tem um conjunto de artigos que têm que ver com a declaração de carência habitacional municipal. Os municípios podem, nas suas assembleias, declarar carência habitacional. Aguarda-se que exista uma portaria que execute essa declaração. Em teoria, isso deveria dar instrumentos extra aos municípios para atuarem nessas situações. Essa portaria, que acabou por nunca decorrer da lei de bases, deveria, por exemplo, fazer com que os municípios pudessem mobilizar património privado para fins públicos.

Mobilizar?

O que não é o mesmo que dizer "perda dos direitos de propriedade". Não estamos a falar de alguém ter a sua propriedade vazia e, de um momento para o outro, o Estado ficar com ela.

Façamos o paralelo com as obras coercivas na cidade. Há uma fachada ou uma varanda que está a cair. Há um entendimento que existe uma emergência pública a que se tem de responder. O proprietário do imóvel é notificado e tem de fazer obras. Se as obras não forem feitas, a câmara municipal toma posse temporária do edifício, faz a obra e depois imputa os custos ao proprietário.

Poderia haver um esquema parecido para os imóveis que estão vazios. Primeiro, o município notifica o proprietário, informando-lhe que tem de ocupar o edifício com alguém em habitação permanente. O proprietário não o faz. O município toma posse administrativa, faz obras e arrenda o edifício. O ónus que decorre para o proprietário é o contrato de arrendamento.

Há muitos casos de fogos que estão abandonados por famílias que não se entendem, por causa de processos judiciais. Isto poderia ser uma forma de resolver essas disputas, e até deixar alguma receita a pessoas que têm processos judiciais e que não podem tocar nos bens. O Estado tomaria posse administrativa durante um determinado período de tempo, sem implicar perda da sacrossanta propriedade, e usava-se o edifício, afirmando a função social da habitação que está reconhecida na lei de bases.

"Temos de perceber como é que uma entidade tem 400 fogos para alojamento local. E é essa entidade que nós devemos atacar."

Há maneiras, mesmo no nosso quadro jurídico, de mobilizar habitação privada, devoluta ou sem utilização, para dar casa a quem precisa. E sem ir contra os interesses dos proprietários.

Falou há pouco em construção privada não especulativa. Pode aprofundar essa abordagem?

Um movimento cooperativo é privado, mas não é especulativo ou lucrativo. O fim é providenciar casas, não é ganhar dinheiro. Temos alguns casos de iniciativas criadas inclusivamente durante os tempos do fascismo, como a Caixa da Previdência do Ministério da Educação, que tem cerca de 30 prédios em Lisboa. E tem uma lógica de condicionamento de rendas, de não acompanhar os valores do mercado, havendo rendibilidade para os associados e garantindo preços acessíveis.

Há formulações que nos permitem construção própria para habitação permanente, construção cooperativa ou mutualista, que têm de ser incentivadas. O problema é que, entre 1987 e 2011, 75% do valor investido pelo Estado em habitação foi destinado para a bonificação de juros no crédito à habitação. O Programa Especial de Realojamento [PER], que tirou muita gente dos bairros de barracas, correspondeu a 3% do mesmo valor. 

Isso não criou uma prerrogativa que, agora, me parece óbvia. Quem foi apoiado pelo Estado no seu crédito bonificado não deveria ter podido vender as suas casas no mercado livre. Podíamos ter criado um mercado regulado. Se as pessoas que compraram a sua casa pelo determinado valor, a tivessem vendido por esse mesmo valor adaptado à inflação, por exemplo, isso teria criado uma massa da habitação com preços regulados. Hoje, não a temos. Estamos há demasiados anos num mercado ultraliberalizado. Esse mercado regulado puxaria os preços para baixo.

Também há o mercado cooperativo. Mas chegamos aos territórios construídos por cooperativas nos anos 1980-1990, cuja propriedade foi toda individualizada, e temos as casas construídas por cooperativas a ser vendidas por uma pipa de massa. Deixaram-se sair essas casas do mercado regulado. Tudo passou para o mercado livre. Não havendo mercado regulado, estamos expostos a todos os ventos do oceano. 

Portugal é um país particularmente atrativo no contexto europeu. Temos uma guerra a decorrer do outro lado da Europa, o tempo cá é bom e — acho isto determinante, especialmente para os pensionista da Europa Central —, passou-se a ideia de que o SNS respondeu bem à pandemia. A tranquilidade que é viver em Portugal já está a criar pressão imobiliária. Não porque sejam estrangeiros, mas porque têm muito mais dinheiro.

Falando especificamente de Lisboa, disse que é "urgente criar condições para que as pessoas habitem onde querem viver, próximo dos seus locais de trabalho e áreas de convivialidade, diminuindo trajetos diários, criando redes de vizinhança e solidariedade e desmercantilizando os espaços públicos". Isto ainda é uma possibilidade?

Há um debate público que tem de se ganhar, primeiro. As pessoas têm de perceber que o direito à propriedade não deve prevalecer e que isso não lhes põe em risco a própria vida. Quando se fala do direito à propriedade, a ideia que se tenta passar é que é o pobre proprietário, trabalhador, que por acaso herdou uma casa dos pais, ficará sem essa casa. Não é disso que estamos a falar.

O referendo sobre habitação feito em Berlim, em 2021, coloca isso de uma forma muito central. O referendo perguntava se as pessoas estavam de acordo com a obrigatoriedade de municipalizar as propriedades de empresas imobiliárias privadas com mais de — e a partir  dos — 3 mil fogos. É uma questão dura, mas que coloca em causa a acumulação de propriedade.

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praça da figueira
Fotografia: António Cotrim

O [largo] do Intendente tem, hoje, três proprietários. Isto é acumulação de propriedade e de capital. E é perigosíssimo para todos nós. Esses três proprietários não competem entre si. Aliás, trabalham em cooperação, muito mais do que nós conseguimos perceber. E são proprietários por causa de um processo de redesenho do espaço público que foi pago por nós, pelo Estado. O investimento foi nosso, e as mais-valias são obtidas por esses proprietários.

Quando fazemos as nossas críticas temos de saber bem onde estabelecer os nossos limites. Neste momento, não me interessa tratar as questões de alguém que tem como única fonte de rendimento, além de um salário indecente, o arrendamento de um quarto. O que devemos fazer é tentar perceber como é que uma entidade tem 400 fogos para alojamento local. E é essa entidade que nós devemos atacar.

Porque desfazem os tecidos sociais das cidades?

Toda a gente percebe os problemas da privatização do espaço público. Cada vez mais se percebe a necessidade de discutirmos a convivialidade e o bem comum. Nos confinamentos notou-se a importância das redes de vizinhança. Não é possível mantê-las quando estamos constantemente a perder pessoas e espaços.

Haver quem não tinha casa ou condições para estar dentro da sua casa, durante os confinamentos, também nos mostrou que isso é um problema coletivo. Os escândalos dos albergues na zona de Arroios, das condições em que as pessoas viviam, a presença constante de gente na rua por não haver espaço para estar em casa, mostrou-nos que a questão da habitação é um problema de todos nós. Temos de compreender os problemas da maioria e definir bem onde é que queremos demarcar, do ponto vista político, contra quem estamos e a favor de quem estamos.

As demarcações sociais e económicas estão cada vez mais vincadas no centro da cidade de Lisboa, especialmente em zonas como Mouraria e Arroios. Como é que uma cidade que é definida como "o centro do mundo", e com os olhos postos no futuro, deixa crescer profundas desigualdades no seu centro, mercantilizando tudo o que é possível? Onde é que fica a ideia da "cidade dos 15 minutos"?

A “cidade dos 15 minutos” tem um princípio básico que implica uma diferente forma de planeamento urbano. Se autorizamos um supermercado numa determinada área, por exemplo, sabemos que, ali, não teremos necessidade de mais qualquer supermercado. Isto contraria a lógica do capitalismo — porque o grande capital é cooperativo, ao contrário do que se diz. Temos o exemplo da Rua da Palma, como quem vai para o Martim Moniz, em que há uns quantos supermercados que já rebentaram com o comércio local e funcionam numa lógica cooperativa.

Na cidade dos 15 minutos isso não pode acontecer, porque não há interesse público em ter esses supermercados tão próximos uns dos outros. O interesse público pede outras coisas. Uma pessoa que viva naquela zona deve ter acesso a um supermercado, a uma sede da sua junta de freguesia, a uma biblioteca, a uma escola — tudo a 15 minutos. Isto implica um planeamento adaptado àquilo que é autorizado. E implica também uma discussão mais pública, com procedimentos mais abertos, mais transparentes.

Há anos que o geógrafo marxista David Harvey diz que a cidade é o principal palco da luta de classes. Não é surpreendente o caso recente, por exemplo, dos cidadãos timorenses que acabaram a dormir na praça do Martim Moniz. Estamos a falar de um operariado mal pago e precarizado que vem para o centro da cidade pela necessidade de trabalho. E nós, hoje, temos praças de jorna no centro de Lisboa. Uma prática ilegal, paralela à escravatura, que simplesmente acontece.

Quando não se estabelece a presença dessas pessoas como um problema de segurança (porque, aí, seriam varridas pelas forças policiais), é natural que no centro da cidade das grandes marcas e das classes altas também apareça esse subproletariado que vai a todas as sobras de trabalho. Essa é a cidade da luta de classes, onde as diferenças sociais se extremam ainda mais. Não é absurdo que no Martim Moniz se cruzem imigrantes que dormem na relva e pessoas que vão em direção à Avenida da Liberdade comprar sapatos de milhares de euros.

E a "cidade sustentável" é algo possível de alcançar?

Viver numa cidade sustentável implica viver próximo de uma escola, do local de trabalho. Essa vontade de proximidade é importante. Não é isso que acontece. Em Lisboa e no Porto, estamos a pôr as pessoas fora das cidades. Isso sobrecarrega os transportes públicos e a infraestruturas de transporte individual, causando maiores gastos energéticos. O processo de gentrificação é contrário também à sustentabilidade da cidade.

E estamos condenados a reagir? O processo de gentrificação mais recente já vai com mais de uma década de descontrolo.

Quem desenhou as grandes políticas que estruturaram o país nos últimos anos foi a troika. E Portugal foi tido como uma grande oportunidade para se testarem coisas, tal como testaram no Chile, há muitos anos. A crise deu a Portugal a oportunidade de se tornar um grande prestador de serviços para quem tiver capital para o vir habitar. Nessa medida, houve um momento em que essa linha foi revertida, mas ainda estamos no balão-de-ensaio.

A nossa luta, aqui em Portugal, também é um ensaio para o que pode acontecer noutros países, nos próximos anos. É óbvio que já há casos mais interessantes de respostas públicas, cooperativas e sem fins lucrativos, como em Barcelona, por exemplo. Ou como em Zurique, onde 40% da habitação é cooperativa, privada mas com apoios públicos. Estamos a falar da ultraliberal Suíça. Aqui, aproveitaram-se os 98% de habitação privada e uma série de indeterminações na área da construção, dos direitos sobre o solo. Nessa medida, somos um laboratório para o capital internacional.

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beco sao marçal
Fotografia: Mário Cruz

Há uns anos conversei com alguém que faz parte de um dos maiores fundos imobiliários franceses, que não opera cá, e que me disse que ainda não havia vontade de investir em Lisboa. Eu perguntei-lhe porquê e ele respondeu-me que as casas ainda são muito grandes. Aquilo ficou-me na cabeça.

O processo de transformação das habitações em alojamento local está, realmente, a partir as casas. Conheço vários T3 que passaram a ser dois T1. Isso é o capital a fragmentar a habitação. No centro de Londres as casas são muito mais pequenas e isso faz com que o seu valor seja muito maior. Nós somos, enfim, como uns ratinhos a ser testados: "deixa lá ver quanto é que eles aguentam". Depois, às vezes, dão-se uns alívios, para isto não explodir.

Partindo dessa ideia, de que estamos a ser testados, qual é a pertinência de conceitos como “segregação” ou “colonialismo urbano”, que costuma usar, para entender o que está a acontecer nas principais cidades portuguesas? 

Primeiro, não temos soberania para decidir sobre uma série de coisas. Ouvimos, por exemplo, a notícia de que no Canadá se limitará a compra de imóveis por cidadãos estrangeiros. Sou contra isso, porque o problema não é a nacionalidade, mas a classe económica. Não acho que seja um problema as pessoas circularem em Portugal, comprarem ou arrendarem casa. 

O meu problema tem que ver com a gentrificação, no sentido em que pessoas com maior poder económico não me deixam viver nos sítios em que eu quero viver. Este é o problema central, vindo de uma lógica imperialista. Temos muita dificuldade em assumir que não podemos inserir estas limitações em Portugal. Porquê? Estamos dentro do Espaço Schengen. 

Podemos, quando muito, limitar quem está fora do Espaço Schengen, o que não é um bom critério. Podemos estar a impedir que um cidadão cabo-verdiano adquira uma casa no Vale Amoreira, na Moita, onde já vive, e a deixar que o pensionista francês, que vem passar os seus dias a Portugal, usufrua de grandes isenções de impostos. O problema é sempre de classe.

Em Portugal, o sentido da palavra “gentrificação” parece perder-se na tradução. Muitas vezes ridiculariza-se o conceito, dizendo que acontece quando pessoas jovens vão viver para a Mouraria, por exemplo, ocupar a casa de uma "velhota" que morreu ou que saiu dali e foi para um lar. Isso não é gentrificação, é um processo normal.

“Gentrificação” tem, na sua tradução, outro sentido. A recomposição social, ou seja, a substituição de uma classe por outra, sendo que a classe que lá está é empurrada para fora. Esse é o problema central, desde sempre. Temos sempre muita dificuldade em abordar a questão de classe, sobretudo na cidade. Mas temos de o fazer, não para guetizar, mas para criar contextos urbanos onde todas as pessoas possam estar. Isso é a cidade contemporânea, sustentável, democrática, dos 15 minutos.


"Na área metropolitana de Lisboa são as famílias monoparentais, lideradas por mulheres, que mais pedem casa. São 70%."

Dizia há pouco que esse tal fundo francês diz que as casas são muito grandes. De facto, as gerações mais jovens estão a atomizar-se, nas cidades. Ou seja, vivem com pessoas desconhecidas ou com amigos, criam outros tipos de agregados familiares pouco sólidos, enquanto parece que todos os tipos de apoio e medidas atenuantes são viradas para agregados familiares mais tradicionais. Reconhece aqui um problema social?

Há cerca de um mês estava a fazer um concurso para as habitações do Instituto da Habilitação e da Reabilitzação Urbana (IHRU). Estive a olhar para os cadernos de encargos. Os problemas são iguais aos dos anos 1990, sem perceber que temos outras realidades sociais. 

Por exemplo, vê-se com muitos maus olhos os espaços comunitários. Na habitação a custos controlados isso poderia ser uma coisa determinante. Poderíamos fazer cozinhas mais pequenas, mas criar grandes espaços comuns onde as pessoas pudessem partilhar as refeições. A casa não serve para um grande jantar, mas o espaço comum sim.

A ideia desses espaços comuns —  a lavandaria comum, o terraço comum —  permite uma socialização do prédio, além do elevador. Isso cria outras linhas de relação de vizinhança que, neste momento, não acontecem aqui. Ainda estamos na “cidade-máquina” e repetimos os programas dos concursos dos anos 1990.

Nas estratégias locais de habitação da área metropolitana de Lisboa são as famílias monoparentais, lideradas por mulheres, que mais pedem casa. São 70%. Então, talvez 70% dos edifícios públicos que se constroem deveriam ser equipados com espaços comuns geridos comunalmente, onde pudessem estar as crianças, depois da escola, permitindo a essas mulheres ter outra independência.

Isto deveria ser considerado, mas essa capacidade de reposicionamento perante o que é o habitar é ignorada. “Depois quem é que gere aquilo?” Isso cria uma perceção errada sobre os territórios e sobre o que se está a construir. E, depois, tudo o que se constrói torna-se pouco útil.