Tânia Graça

Tânia Graça: "Uma sociedade deve construir-se em valores feministas, pois são valores de igualdade”

Em entrevista ao Setenta e Quatro, fala sobre educação sexual, de como milhões de mulheres não têm acesso aos cuidados de saúde mais básicos, de feminismo e de masculinidade tóxica. Aponta a necessidade de se combater os discursos antifeministas que disseminam preconceitos e a desinformação persistente sobre as mulheres e os seus direitos.

Entrevista
29 Setembro 2022

Falar-se de sexo, de orgasmos e da libertação sexual feminina nos espaços público ou privado é algo que ainda causa desconforto a muitas pessoas. Mas não a Tânia Graça. Com um à vontade que lhe é caraterístico, assim como a vontade de ajudar quem vê no sexo um bloqueio, a sexóloga de 30 anos defende que um orgasmo é um ato político. “Porque dar prazer e ter direito a ele quando e como quiser” é um grito de liberdade sexual feminina.

É-o quando, continua, as comunidades jovens se respeitam e autoconhecem, o que só se consegue com uma educação que “salva” e que permite “o respeito por uma maior diversidade de orientação sexual, relações sexuais e de identidade de género”. É neste sentido que Tânia Graça acredita só existir uma educação sexual: a feminista. 

Daí que identifique no conservadorismo uma forma de retrocesso na educação e nos direitos humanos ao querer controlar os corpos das mulheres. “Os conservadores querem controlar o corpo alheio. Têm medo do que a liberdade traz”, critica. Ainda assim, os direitos das mulheres avançaram muito nas últimas décadas, mas há muito por fazer, o patriarcado continua muito presente em Portugal. 

Dependemos de quem nos lê. Contribui aqui. 

“Estares ao serviço do homem, do teu corpo ser para o prazer de outra pessoa, foi algo que senti presente naquilo que via, nas conversas das mulheres mais velhas da minha família”, disse em entrevista ao Setenta e Quatro

Daí que argumente serem necessários “homens mais capazes de sentir e expressar emoções e que percebam que o sexo não é uma violência contra a mulheres”, sendo necessário refletir-se sobre a masculinidade tóxica, as responsabilidades no combate à violência de género e na luta pela igualdade. 

Antes do mestrado em Sexologia, estudou Psicologia Clínica e escreveu uma tese sobre as relações entre pais e crianças com paralisia cerebral. Como foi esta experiência?

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Tânia Graça
A sexóloga Tânia Graça diz que a visão de uma mulher sobre o feminismo depende sempre da sua vivência, classe social e pertença étnico-racial. 

Escolhi esse tema porque tudo o que envolvia relação de casal e satisfação conjugal me interessava muito. Tendo como contexto uma doença física, a amostra tornou-se ainda mais interessante pela escolha da paralisia cerebral, uma condição que pode afetar a parte cognitiva além da física. Foi difícil, tive de alterar a amostra muitas vezes. Inicialmente, pretendia só casais, pais de crianças com paralisia, mas rapidamente percebi que se tornaria improvável, porque há poucos casais juntos e disponíveis para responder a este tipo de questionários.

Então optei por abrir o leque. A partir daí fiz um estudo comparativo de satisfação relacional entre pais e mães de crianças com paralisia e pais e mães de crianças saudáveis. Descobri que os pais de crianças com paralisia, e que se mantinham em relação, reportavam níveis de proximidade mais altos do que os pais e mães de crianças saudáveis, o que é bastante curioso. Isto significa que os pais de crianças com paralisia tinham mais proximidade, mais intimidade. 

Este dado não tinha ainda sido encontrado e fazia muito sentido, na medida em que quando fazemos parte de um casal e temos um objetivo comum, uma sensação comum ou um propósito conjunto, isso pode unir-nos. 

Já aí tinha esse interesse em estudar relações entre pessoas. 

Sim, em especial as relações de casal. O amor, o sexo, tudo o que existe entre e à volta destes dois lugares, como as relações sexuais sem compromisso, os friends with benefits, o amor onde já não existe sexo. Todas estas dinâmicas me interessam. Sou fascinada, porque o amor é uma coisa que ainda ninguém soube explicar exatamente por A mais B. Ninguém sabe o que é que acontece para te sentires atraída ou atraído por uma pessoa e não por outra. Não há uma fórmula química e acho isso tão admirável que acredito que vou levar a minha vida toda à procura desse tipo de respostas. 

Estando também muito ligada ao movimento feminista e ao empoderamento feminino é importante olhar para o que está a acontecer no mundo. No Irão, assistimos, após a morte de Masha Amini, a manifestações que se transformaram em motins contra o regime. Neste sentido, qual é a força dos movimentos feministas para atuarem contra o sistema vigente? 

Uma sociedade deve construir-se baseada em valores feministas, porque são valores de igualdade entre pessoas, inclusive o feminismo interseccional. Além de contemplar mulheres, é importante ter em conta todas as camadas que existem. Por exemplo, mulher negra, mulher negra e trans, mulher negra, trans e lésbica e mulher negra, trans, lésbica em situação de pobreza. 

Um governo que não tenha em conta estes valores da igualdade entre pessoas, de direitos e de oportunidades, não é um governo que vá ao encontro das necessidades do seu povo. Não havendo este encontro - aqui misturam-se também questões culturais e religiosas - é expectável que as pessoas se revoltem à procura daquilo a que têm direito. 

O empoderamento feminino, enquanto ferramenta do feminismo em que a mulher procura ter mais poder sobre a sua vida, está também ligado à possibilidade de escolha. E é exatamente isso que está a acontecer no Irão. A possibilidade de escolha destas mulheres [iranianas] sobre como se apresentam, como se vestem, como representam ou não a sua religião a partir da sua forma de vestir, se assim o quiserem. Como, enquanto mulheres, se comportam, que tipo de relacionamentos têm, se têm acesso a meios de saúde sexual e métodos contraceptivos e ao aborto, se têm a possibilidade de se relacionar com quem quiserem, e casar-se com quem quiserem. Tudo isto são valores feministas, ainda que se pense que não, porque o feminismo é um movimento político.

O que é, hoje, ser mulher? 

Diferentes mulheres responderiam de forma diferente em função do lugar onde vivem, da sua orientação sexual, da sua cor de pele ou da sua situação socioeconómica, porque tudo isso tem implicações nas suas realidades. Uma mulher branca, heterossexual, de classe média, não terá a mesma vivência enquanto mulher que uma mulher negra terá em situação de pobreza. Acumulam-se desigualdades nestas camadas. 

No entanto, tentando incluir muita gente no mesmo lugar e correndo o risco de deixar muitas questões de fora, ser mulher, hoje em dia, numa perspetiva mais ocidental, é viver com bastantes direitos conquistados que não tínhamos até há relativamente pouco tempo. 

Se olharmos para Portugal até ao 25 de Abril, para se sair do país, o marido tinha de o autorizar. O dinheiro não podia ser gerido pelas mulheres. Para tomar métodos contraceptivos, ele [marido] tinha de autorizar… Ou seja, uma série de regras que claramente ditavam que nós [mulheres] não éramos donas de nós mesmas. 

"O acesso que temos à informação permite perceber o que está a acontecer com outras mulheres e não só com aquelas que estão perto de nós. E isso é ótimo, são mais vozes que estão à nossa volta."

Ser mulher hoje é viver num momento de muito maior liberdade, autonomia e autodeterminação sexual, mas há muita coisa ainda por fazer no que toca à liberdade sexual, à liberdade de escolher o parceiro ou a parceira, sobre querer ou não querer ser mãe e não ser julgada por isso. Querer ou não querer casar. Ter uma relação monogâmica ou não. Tudo isto continua a ser julgado de uma forma muito diferente quando é apresentado por uma mulher ou um homem. 

Continua presente a violência doméstica, o assédio sexual que acontece desde sempre. O ter-se tornado “socialmente aceite” que esse assédio aconteça, chegando até a ser considerado "previsível" em determinadas realidades. Não termos uma Justiça que nem sempre vai ao encontro das necessidades de proteção destas mulheres é também um sintoma disso. Para não falar da desigualdade salarial que ainda existe. 

Perguntam-me muitas vezes porque falo constantemente de feminismo. É necessário. E é necessário porque ainda há muita coisa por fazer. Parece utópico. Sei que igualdade plena é algo que talvez já não venha a assistir em vida. Há cálculos sobre quando é que vamos ter igualdade salarial, o que será daqui a muitos anos. Há uma série de condicionantes, como a desigualdade na própria divisão do trabalho, mas estamos na luta. 

Ainda sobre o Irão, há uma movimentação e uma necessidade óbvia de libertação das mulheres. Mulheres de países de todo o mundo juntam-se a movimentos feministas, adaptando-os às suas realidades. Como podemos olhar para esta evolução? 

A Internet traz-nos uma perceção em larga escala do que acontece no mundo. Terá muitas coisas más, mas tem também muita coisa boa. Em especial a globalização, esta facilidade de ter acesso ao que está a acontecer nos outros lugares faz com que os movimentos sejam à escala mundial. Temos o Black Lives Matter como exemplo. De repente, uma coisa que aconteceu nos Estados Unidos movimentou o mundo. Foi um momento muito importante de sensibilização no que toca ao racismo e à necessidade de sermos antirracistas. Isto tem acontecido também no que toca a questões feministas, a questões das mulheres. Esta consciência de que a minha realidade é muito diferente de uma realidade de uma mulher no Irão… 

Lembro-me também de uma situação que aconteceu no Brasil. Uma rapariga que foi violada por uma celebridade e desvalorizada pelo juiz, que perguntou o que é que ela levava vestido e mostrou o seu Instagram para enfatizar que estava muito despida, justificando com isso que ela se tinha posto a jeito. Outro exemplo, que aconteceu muito recentemente também no Brasil: uma miúda com 11 anos foi violada e impedida de fazer um aborto. Enquanto não formos todas livres, nenhuma é. Enquanto faltar uma, faltam todas. 

"Uma mulher branca, heterossexual, de classe média, não terá a mesma vivência enquanto mulher que uma mulher negra terá em situação de pobreza."

Inquieta-me o facto de viver relativamente livre, com a minha casa, a minha independência financeira, o meu trabalho e a minha autonomia, quando sei que há muitas de nós [mulheres] que não estão no mesmo lugar. E aquelas que estão no mesmo lugar, quantas coisas lhes faltam? Portanto, esta ideia é resultado precisamente disto. 

O acesso que temos à informação permite perceber o que está a acontecer com outras mulheres e não só com aquelas que estão perto de nós. E isso é ótimo, são mais vozes que estão à nossa volta. 

A jovem foi morta por estar a usar, alegadamente, o hijab de forma errada. Já em França, muitas mulheres são perseguidas por o quererem usar. Como se adapta o feminismo e como pode o “nosso” feminismo aprender e incluir essas experiências de mulheres subalternas de outras coordenadas? 

O feminismo e o empoderamento feminino são sobre capacidade de escolha. E a minha capacidade de escolha tem que ver com muitos fatores. Ou seja, não é só "eu posso escolher". Neste caso em particular, por exemplo, escolho não usar hijab. Mas se eu chegar à rua e me tentarem matar por isso, não tenho essa capacidade de escolha.

E a importância da adaptação cultural e das aprendizagens que descentrem o feminismo “ocidental”. 

Quando estive na Índia tive exatamente esse choque. Tinha 27 anos e ia com uma vontade imensa de falar de coisas. Sabia que não podia falar de tudo, mas acreditava que podia tratar de temas como a masturbação. Ia com aquele síndrome ocidental do "eu é que sei". Achava que sabia o que aquelas pessoas, aquelas mulheres, precisavam. 

"A última palavra é a do pai. As mulheres são muito interventivas, mas muitas vezes é o homem que tem a última palavra."

Quando lá cheguei, percebi que não precisavam de nada disso. Muito antes de se falar em masturbação, precisavam de saber por que razão o período acontecia e o que era. Ou precisavam, por exemplo, de perceber como poderiam evitar uma gravidez que não quisessem. Era necessário começar por um outro lado, porque não podes falar de prazer quando as necessidades básicas não estão asseguradas. E não estavam. Isso foi um banho de humildade muito importante que eu levei. Achava que sabia tudo, mas não sabia nada. 

A questão do relativismo cultural fez-me pensar até que ponto é que era eu que tinha de me adaptar àquela realidade. Não vale tudo em função daquela cultura o permitir. O que encontrei como divisor de águas foram os direitos humanos. Isto porque são universais e têm de ser universais. Se há algo que põe em risco a minha integridade física, a minha saúde, a minha liberdade nas relações sexuais, de ter ou não relações sexuais com alguém, de ter ou não o meu clitóris intacto - a mutilação genital feminina é uma prática comum na Índia -, tudo isto não se reconhece como direitos humanos. Até posso perceber porque razão aquelas pessoas fazem aquilo, mas não posso simplesmente agir em conformidade. 

O que tentei fazer enquanto lá estive, e acredito ser o lugar em que me encontro na vida, foi encontrar um lugar, respeitando a sua cultura, onde aquelas pessoas pudessem ter algum poder de escolha. Não sou eu sozinha que vou mudar o mundo, mas acho que cada um no seu metro quadrado, seja aqui ou mais longe, tem essa responsabilidade. Tudo aquilo que tiver em conta os direitos humanos das pessoas e possibilitar-lhes ter mais escolha, seja ela usar ou não usar hijab, é aquilo que empodera e que vai ao encontro do objetivo do feminismo. 

É o feminismo que se adapta às realidades. Aquilo que eu preciso enquanto mulher, aqui, não é o mesmo que precisa uma mulher na Índia, mas deve sempre ir ao encontro de dar o máximo de recursos possíveis para que aquela pessoa possa fazer uma escolha em segurança sobre a sua vida. Este é o lugar onde consigo me localizar entre aquilo que é o relativismo cultural e uma rigidez no que nós achamos que está certo. 

Há possíveis reflexões ou comparações que se possa fazer entre Índia e Portugal? Saímos de uma ditadura há 50 anos, mas ainda há coisas que se arrastam.

Há conexões, porque [na Índia] a sociedade é extremamente patriarcal. Mas aqui também é. Lá num nível mais extremo. Enquanto mulher, não escolhes com quem casas, casas com quem escolherem para ti e tens filhos com essa pessoa. As relações sexuais devem acontecer porque és mulher. 

Ainda que este seja um lugar diferente das marcas que temos da ditadura, acredito que há aqui pontos de encontro, porque nós também vivemos numa sociedade patriarcal. Esta questão de estares ao serviço do homem, do teu corpo ser para o prazer de outra pessoa, foi algo que senti presente naquilo que via, nas conversas das mulheres mais velhas da minha família. O "tem de ser", porque são as nossas obrigações conjugais. Ser mulher implica essa obrigação de partilhares o teu corpo, mesmo que não queiras, porque faz parte de ti. 

"Tudo aquilo que tiver em conta os direitos humanos das pessoas e possibilitar-lhes ter mais escolha, seja ela usar ou não usar hijab, é aquilo que empodera."

Outra coisa: a decisão. Na Índia, as decisões da casa e da família são do homem. Em Portugal também ainda se vive muito isso. A última palavra é a do pai. As mulheres são muito interventivas, mas muitas vezes é o homem que tem a última palavra. É ao homem que se pergunta pela última vez se se pode comprar qualquer coisa ou gastar determinado dinheiro. Ainda assim, lá é diferente, até porque nós aqui temos acesso a associações, a ajudas, caso estejamos numa situação de violência. 

Os movimentos feministas na Índia também estão a manifestar-se, mas ainda falta fazer muita coisa. É uma outra realidade, porque mistura a religião hindu com a muçulmana, religiões que, difundindo-se com questões culturais, acabam por reforçar o sistema patriarcal. Não digo que as religiões muçulmana e hindu são per se patriarcais, mas a mulher ocupa um ser secundário. 

Na Índia, a pobreza menstrual também é um tema relevante. As mulheres com quem trabalhou tinham acesso a métodos anticontracetivos e a produtos de higiene íntima ou menstrual? 

A pobreza menstrual é uma questão muito visível na Índia e mais ainda nos grupos de mulheres com que trabalhava, designadas como as intocáveis [dalit, o nível mais baixo do sistema de castas]. Pertenciam à classe económica mais baixa. Lá nunca consegues ascender de uma casta para outra. Se nasceste numa, tens de morrer nela. É muito difícil ascender economicamente, porque não são dadas oportunidades às pessoas de uma classe, ou casta, mais baixa. E, portanto, não terão acesso a cuidados que aparentam ser tão básicos, como pensos higiénicos. 

Há também muitos preconceitos em torno da menstruação. A questão da impureza é uma delas. É-lhes proibido ir ao templo durante esse período. Muitas miúdas não iam ao projeto e à escola quando estavam menstruadas, porque não tinham nada para usar que lhes permitisse absorver o fluxo e não se sujarem. Percebemos rapidamente que as mulheres saem muito prejudicadas na sua vida também por estas questões de dignidade menstrual. Foi uma coisa de que tomei muito mais consciência. Nunca tinha pensado nisso. Vivemos num contexto de tanto privilégio que nunca tinha pensado o que é estar com o período e não ter um penso. Como é que se faz? Nem papel higiénico! 

"Aquilo que sustenta a violência contra a mulher é a misoginia e esta supremacia de poder masculina."

Lembro-me de pensar “como é possível eu nunca me ter questionado como era viver sem isto?". Mas também existe aqui [em Portugal]. Há muitas pessoas que acabam por não falar sobre isso, porque têm vergonha, mas não têm meios económicos para aceder a produtos de higiene menstrual. Eles continuam a não ser propriamente acessíveis. Já se estudou a questão de serem oferecidos [nas escolas], há muitos países em que já o são. A verdade é que tem de ser, porque é uma necessidade básica. 

Eu não escolho menstruar, assim como não escolho ter sede nem fome. Se eu não escolho, tem de haver uma resposta para isso, para que a minha vida não saia prejudicada de forma nenhuma por eu menstruar. Até porque é a partir do facto de menstruar que poderei, se quiser, engravidar e trazer pessoas ao mundo. É necessária uma ajuda nesse sentido e, portanto, sim, a Índia está claramente atrasada nesse avanço necessário, mas em Portugal também existe esse atraso e é preciso olhar para isso. 

Foi recentemente publicada uma reportagem sobre a pobreza menstrual em Portugal e a falta de acesso à higiene menstrual por mulheres em situação de sem-abrigo. Socialmente, seriam as nossas intocáveis, que se veem obrigadas a fazer coisas improvisadas com papel de jornal…

Coisas essas que podem causar infeções, problemas de saúde ginecológica, que depois, provavelmente, não vão tratar porque não têm esses meios. É interessante nós percebemos o quanto todas essas "pequenas grandes" coisas fazem com que toda a gente comece a corrida da vida em lugares tão diferentes. 

Como é que alguém que não tem sequer forma de absorver o fluxo menstrual quando está com período, que não tem acesso a água potável, a uma casa para viver, pode pensar em estudar mais? Ou formar-se para eventualmente ganhar mais dinheiro? Não dá. Começou dez passos atrás. Assusta-me pensar “como é que nunca ninguém me disse isso antes?”. O que está a acontecer na Educação que não traz esta consciência da diferença de classes, da diferença do lugar em que cada pessoa está em função de coisas que não deveriam ser fraturantes como a cor da pele, o género ou a situação socioeconómica?

E em casos de aborto? Falamos também de realidades clandestinas? 

Sim, sendo que apesar de tudo o acesso ao aborto existe no Serviço Nacional de Saúde. Não temos de pagar para fazer um. A questão é: alguém neste lugar da sua vida dirige-se a um centro de saúde para fazer um aborto? Será que não vai arranjar outro método qualquer, mais perigoso para a sua saúde? O acesso existe, ou seja, supostamente não é negado a ninguém pelo seu estado socioeconómico. Isso ainda é a vantagem de vivermos num Estado Social e de termos um Serviço Nacional de Saúde. 

"Vivemos num contexto de tanto privilégio que nunca tinha pensado o que é estar com o período e não ter um penso."

Agora, se essa procura existe da parte de alguém que já se sente tão segregada socialmente, tenho as minhas dúvidas. O aborto é daqueles direitos que uma mulher só vai tomando consciência da importância dele com o tempo. E não só para si. Tu seres a favor ou contra o aborto não é só sobre ti. É precisamente e até mais sobre aquelas que não têm a possibilidade de o fazer. 

Quem diz ser contra justificando a sua posição com “pró-vida” está a ser hipócrita. A sua decisão é apenas pelo seu corpo, não pelos dos outros. Quando te declaras pró-vida só o és durante nove meses. Onde é que estás quando a criança nasce e ela precisa de uma série de apoios que não tem? Onde estás quando aquela mãe não tem condições socioeconómicas, emocionais ou de estrutura familiar para dar bem-estar àquele ser humano? 

Temi muito quando a lei anti-aborto foi declarada em alguns estados dos Estados Unidos. Sabemos que estas realidades depois parecem surgir em catadupa. Há pouco tempo, o presidente Jair Bolsonaro, ao lado do nosso Marcelo Rebelo de Sousa, segurou uma bandeiraa que dizia "Brasil sem drogas e sem aborto". Não podemos dormir sobre essas coisas. A Simone de Beauvoir bem o dizia: não podemos descansar porque basta qualquer alteração política, religiosa e económica para que todos os direitos das mulheres que foram alcançados retrocedam. Portanto, a mulher não tem descanso. 

Por que razão crês que o antifeminismo tem ganho tração na direita conservadora? 

O feminismo é um movimento pela liberdade, pela liberdade sexual, liberdade de escolha e autonomia. Tudo o que a direita ultraconservadora não quer. Quer manter tudo como manda a Igreja, como mandam a moral e os bons costumes ou aquilo que vai ao encontro de ser uma mulher de bem, um homem de bem. Portanto, não admira que isto seja uma bandeira. 

Os conservadores querem controlar o corpo alheio. Têm medo do que a liberdade traz. O pensamento deles [conservadores] é muito simples: “não quero que faças isso, porque eu é que sei o que tu precisas e o que uma sociedade precisa para se organizar devidamente”. Continuam a achar que o papel da mulher é secundário. Obviamente que isso não lhes interessa. 

O que leva uma jovem mulher, como a deputada Rita Matias, do Chega, a ser persuadida com um discurso antifeminista?

Quando a ouvi percebi que existe uma grande falta de informação. Foi-lhe feita uma lavagem cerebral que vem também de um discurso populista, porque é isso que os discursos populistas fazem: trazer duas ou três deixas que agarram as pessoas. Há falta de informação sobre o que é o feminismo e isso gera muitos preconceitos. Acredito que quem sabe de facto o que é o feminismo, dificilmente não será feminista. Claro que para os mais privilegiados - homens, brancos, heterossexuais, cisgénero - pode ser difícil abdicar de alguns privilégios, muitos ligados à ideia daquilo que “a mulher deve ou tem de fazer”. 

A transfobia e a perseguição a mulheres trans é cada vez maior e até por parte de algumas mulheres ditas ativistas feministas. 

Aquilo que é muito diferente da norma, e digo-o no sentido de diverso e daquilo que a biologia definiu, é algo que causa ‘comichão’. O assumir-se, não no sentido de assumir algo, mas apresentar-se ao mundo exatamente como se é, incomoda. A identidade de género diferente do sexo biológico é algo muito incompreendido. Voltamos à questão da falta de informação. As pessoas ainda não percebem bem o que é ser uma pessoa trans. Falta muita Educação Sexual em Portugal, e não só. Não sabem bem o que significa ser uma pessoa trans ou não-binária. 

Se pensarem na questão da orientação sexual, as pessoas geralmente irritam-se muito mais com um homem homossexual que tem um comportamento considerado feminino, isto dentro dos nossos preconceitos.

Tudo o que é uma expressão que afirme que “esta pessoa sou eu e eu não sou aquilo que esperas”, ou “eu não correspondo ao padrão, à norma”, incomoda. E incomoda quem não está de acordo com essa liberdade. As mulheres trans enquadram-se muito bem aqui. Temos o caso da Gisberta, assassinada em Portugal. É arrepiante pensar que uma pessoa é assassinada daquela forma, cheia de ódio, por ela ser quem é. 

Em que medida é que a transgeneridade de outra pessoa afeta a minha existência? Vejam o quão longe pode ir a vontade de controlar o corpo do outro e a vivência do outro, que dá direito a que esse outro fique em risco, que o assassinem ou que o maltratem. É uma coisa que me ultrapassa. Ao mesmo tempo que trabalho nestas realidades, continuo a chocar-me diariamente com o quão perversa pode ser a mente humana. 

"Como é que alguém que não tem sequer forma de absorver o fluxo menstrual quando está com período, que não tem acesso a água potável, a uma casa para viver, pode pensar em estudar mais?"

Esta violência continua a acontecer, não só de outras pessoas contra pessoas trans ou da comunidade LGBTQIA+, mas das próprias pessoas trans contra si mesmas. Temos muitos casos de suicídio de jovens gays e lésbicas, porque o preconceito da sociedade e até o seu, já internalizado é tão forte que os leva ao suicídio e isso é muito preocupante. Aquilo que realmente pode ajudar, além destas conversas e de ser publicitado conteúdo deste género, é a preocupação de uma educação sexual nas escolas que traga estas temáticas para que, desde a infância, haja uma educação para a diversidade. Mas tudo isso não acontece porque há um medo inexplicável da “ideologia de género”. 

Já se provou que jovens que têm acesso à Educação Sexual iniciam a sua vida sexual mais tarde do que jovens que não têm acesso à Educação Sexual. Portanto, acho que isto só mostra o quão a Educação salva. Salva vidas e salva gerações que vêm depois desta. 

Pegando no caso da Gisberta, que aconteceu em 2006, e fazendo uma ponte com a realidade atual, são cada vez mais os casos de mulheres assassinadas. Atualmente registam-se mais mortes por violência doméstica em comparação aos últimos dois anos. 

Diria que continua a haver uma falta de sensibilização para essas questões. Faz falta falar mais sobre estes temas, faz falta falar sobre estes números, faz falta perceber as causas, porque aquilo que sustenta a violência contra a mulher é a misoginia e esta supremacia de poder masculina. É este machismo que ainda diz que o homem pode fazer isso. 

Olhar para essas coisas, olhar para essas causas, estabelecer também leis que punam devidamente as pessoas que fazem isto são os passos primordiais que vêm sendo ignorados. Há uma impunidade muito grande. Violência doméstica é um crime público. Nós temos a responsabilidade de denunciar, temos a responsabilidade de intervir. Não é uma brincadeira. É a vida e a integridade física de alguém em risco. 

Passando à importância da Educação Sexual, que tipo de educação é que devemos promover? 

A Educação Sexual escolar está legislada desde 2009. No entanto, não está a ser aplicada. Seja por falta de recursos ou porque os professores não se sentem à vontade ou porque não são chamados outros profissionais para fazê-lo. O facto é que está em falta.

A educação sexual é essencial, porque é muito mais do que ensinar a colocar um preservativo numa banana. É sobre educar para muitas das coisas que falámos: a diversidade de orientação sexual e de relações sexuais, de identidade de género e para o respeito por toda essa diversidade. 

"Tu seres a favor ou contra o aborto não é só sobre ti. É precisamente e até mais sobre aquelas que não têm a possibilidade de o fazer."

É também sobre limites, consentimento, sobre sinais de relações abusivas, sobre a autoestima. E é, obviamente, sobre saúde sexual, sobre métodos contraceptivos. E muito mais, como o feminismo, a igualdade de género, tudo o que é essencial para construir seres humanos preparados para construir um mundo melhor, mais justo. Enquanto isto não acontecer e ficarmos à espera que sejam as famílias a trazer essa educação, vai ser complicado. Os pais não estão preparados para o fazer. Se tivermos filhos, já seremos talvez mães e pais mais sensibilizados para todas estas causas. E teremos também uma sensibilidade para educar para isso. Mas até agora não foi assim que aconteceu e sei que nem toda a gente estará sensibilizada para estas questões. 

A educação sexual deve ser feminista? 

A educação sexual nunca pode não ser feminista, porque ela tem de ser promotora de igualdade entre pessoas e de uma sexualidade saudável e com prazer para todas as pessoas envolvidas, sejam homens ou mulheres, ou pessoas que não sejam nem homens nem mulheres. Uma educação sexual completa será sempre feminista, inerentemente. 

Porque há medo da educação sexual? 

Os conservadores têm medo que um jovem que descubra que pode ser gay, o vá ser. Ou que se souber que pode ter sexo, o vá ter. O medo é que essa liberdade traga descontrolo. É uma visão negativa da sexualidade: “se tiveres liberdade para a viver, vai ser o caos”. E não o contrário, porque não é a liberdade que os conservadores querem, é o controlo do corpo alheio. 

Como dizia há pouco, há o medo de que a informação desvie as pessoas, mas isso não é verdade. A informação traz a capacidade de viver mais a minha verdade, de escolher a forma como me faz sentido viver, de perceber que "olha, eu sou gay e não há problema nenhum com isso". Poder viver isso. Ninguém se torna gay porque sabe que pode. Quem não é, vai aprender a respeitar quem é. Quem é, vai ter a possibilidade de viver livremente. E isso é gigante. 

Também ajuda a prevenir abuso sexual de menores, ao saber identificar comportamentos abusivos ou nomear as partes do corpo. Por exemplo, uma menina a quem ensinam a dizer "pombinha" ao invés de vulva ou vagina e alguém a toca, ao contar, ela será alvo de descredibilidade, porque pode passar completamente despercebido a quem ouve. E mais: o facto da criança saber os termos - “estás a tocar na minha vulva” - vai dissuadir a pessoa que o está a fazer. A pessoa que abusa ao perceber que a criança sabe dizer "vulva", entenderá que ela [criança] também saberá denunciar isso de outra forma.

Falamos de uma educação sexual escolar, mas é também importante pensar numa educação sexual familiar. Quais são as diretrizes a seguir? Isto é, esperar que a criança questione ou os pais introduzirem o tema a partir de certa altura? 

Podemos ir trazendo conteúdo que normalize uma série de coisas sem estar a especificar. Ou seja: "agora vamos falar de sexo". Assim não, mas: ”eu vou-te mostrar como é que os bebés se fazem", ou "as famílias podem ser duas mães e dois pais". Isto são exemplos de como ensiná-la sem lhes dar uma aula. 

"Há falta de informação sobre o que é o feminismo e isso gera muitos preconceitos."

Na infância, é muito mais sobre normalizar essas realidades, falando sobre elas, com a mesma naturalidade que falamos noutras. Se apanharmos, por exemplo, a criança a masturbar-se, a mexer nos genitais, o que acontece muito, é bom não impor uma proibição sobre isso. Os pais ficam chocados, não sabem o que fazer, acham que a criança está a masturbar-se como nós o fazemos. Na verdade, ela está a explorar a sua sexualidade, mas não é sexual. É melhor enquadrar com: "está tudo ok fazeres isso, faz só na tua privacidade, porque é uma coisa só para ti", ou seja, naturalizar estes comportamentos, dando a entender que são privados e íntimos. 

Na adolescência, a coisa já muda um bocadinho. É preciso deixar o tema em cima da mesa para quando o jovem o quiser agarrar. Não precisamos de entrar no "agora vamos falar sobre masturbação, porque eu quero falar sobre estas coisas". Não tem que ser isso. Pode ser só: "o preservativo é importante", "faz sexo com pessoas com quem estejas à vontade, porque é uma coisa boa, e qualquer dúvida que tenhas eu estou aqui". 

Forçar o conteúdo pode ser invasivo para um jovem. Nunca falar sobre isso dá a entender que não é um tema, o que também não é bom. Portanto, deixar essa possibilidade ao dar tópicos básicos como a proteção, o respeito, o consentimento e a ideia de que é uma coisa prazerosa é o essencial. Não faz sentido estar a explicar a um jovem de 15 anos o que é sexo anal se ele não tiver interesse em sexo anal. É preciso deixar em aberto, para que seja confortável tirar dúvidas.

Nos últimos anos tem sido notória a radicalização de jovens rapazes, online, através da misoginia, sempre muito ligada a uma baixa auto-estima que emana da inadequação sexual ou do rancor em relação a mulheres. O consumo de pornografia em idade formativa também já foi relacionado, em vários estudos, com os jovens rapazes acabarem por esperar e desejar uma prática sexual mais violenta, abusiva e degradante. Qual seria a abordagem de uma educação sexual feminista perante esta realidade? 

Os homens também sofrem com o machismo e com a masculinidade tóxica que lhes é incutida. O número de suicídios é mais alto nos homens porque não há uma aprendizagem de gestão e expressão emocional. É tudo muito contido. Não pedem ajuda por poder ser visto como fraqueza. E há as questões sexuais, também. 

Há um receio de que o pénis falhe de alguma forma, porque lhes foi incutido que têm que durar muito tempo, estar sempre eretos e demorar imenso tempo a ter orgasmo. A virilidade acaba por ditar o quão homem se é. E tudo isso é extremamente preocupante. Esta é uma das principais consequências do sistema patriarcal que acaba por cair sobre os homens. 

A educação sexual, mais uma vez, tem um papel importante a desempenhar. A pornografia não representa a realidade. Está filmada do ponto de vista do homem, com a mulher no papel mais submisso. Os jovens, quando têm acesso a este tipo de conteúdos, não têm um enquadramento sobre o que eles significam. Não sejamos inocentes. A pornografia não vai acabar e não vai passar a ser menos machista. É uma pena que assim seja, mas é verdade. 

O que pode ser feito é o enquadramento por parte dos pais, da sociedade e das escolas em relação a isto. Como? Sabendo uma mãe ou um pai que o filho vai ver pornografia, porque eventualmente verá, explicar que o que está ali representado é, exatamente, uma representação, e que ter sexo não é aquilo. Até pode ser se as pessoas quiserem, mas não é. É uma coisa que implica respeito pelo outro, pelo querer do outro, pelo querer da mulher. É preocupante o que aparece na pornografia, mas é importante também que nós não nos demitamos do nosso papel sobre isto. As coisas que nos entram pelos olhos adentro influenciam-nos mais do que pensamos. E ainda mais numa fase em que o cérebro é uma esponja e o sentido crítico é tão baixo. 

"O feminismo é um movimento pela liberdade, pela liberdade sexual, liberdade de escolha e autonomia. Tudo o que a direita ultraconservadora não quer."

Os adultos, a comunidade escolar, os pais, não se podem alhear de educar em relação a estas coisas incluindo sobre a masculinidade tóxica. Claro que a educação sexual nas escolas teria um papel muito importante sobre isto. Não havendo, os pais têm que se chegar à frente. Precisamos de homens mais capazes de sentir e expressar emoções e que percebem que o sexo não é é uma violência contra a mulher. É assim que se constroem homens melhores, mais em contato com as suas emoções, mais empáticos e que têm também mais prazer nas suas relações e na sua sexualidade. Porque estar ali só em performance, como viu no porno, não vai ser bom para ele nem para a parceira ou o parceiro. 

O sexo na terceira idade ou [entre pessoas com] algum tipo de incapacidade física parece ainda ser um tabu. A educação sexual também pode trazer esta abertura? 

Sim. Quando estudei Sexologia havia um módulo sobre educação sexual comunitária, precisamente sobre como se implementaria uma educação sexual em todas as frentes. Sendo a sexualidade algo que atravessa a nossa vida inteira e que se manifesta de formas diferentes e se vive de forma diferente em cada fase, seria um projeto que abrangeria todas as faixas etárias. Tendemos a achar que sexo é coisa de gente jovem, bonita e com um corpo sem qualquer tipo de incapacidade motora ou cognitiva, ou problema de saúde mental. E não é verdade. Pessoas com deficiências podem querer ter sexo e têm desejo sexual. Idosos e idosas têm muitas vezes uma vida sexual ativa. Nós esquecemos-nos disso.

A vivência do sexo nessa fase é diferente. Não há tanto sexo penetrativo, porque a ereção já não é como foi noutros tempos, mas o sexo não é só penetração em idade nenhuma. Infelizmente dessexualizamos tudo o que não são pessoas entre os 15 e os 45. Fora disso e sem um corpo absolutamente saudável, não são seres sexuais? São.

Um orgasmo é um ato político? 

Sim! Sem dúvida. Não precisamos trazer isso para a cama dessa forma, pode tornar-se aborrecido, mas é. Especialmente quando ele acontece às minhas mãos, pela minha vontade, quando eu decido. Quando me apetece, decido masturbar-me e me dou um orgasmo, estou a gritar - literalmente, talvez - que este corpo é meu, ao contrário daquilo que me disseram. Eu posso dar-lhe prazer e tenho direito a esse prazer, quando eu o quiser ter. Isto é sem dúvida um grito. 

Não preciso da autorização de ninguém e não preciso que seja outra pessoa a dar-mo. É meu, posso e tenho esse direito. Mereço este orgasmo, grito por mim e grito por todas. Mesmo que seja uma coisa íntima, gera-se uma libertação. És mais dona do teu corpo e do teu prazer. És mais dona da tua vida, portanto é um ato político. Masturbem-se, tenham muitos orgasmos.