Mariana Duarte Silva e Filipa Marinho

Mariana Duarte Silva e Filipa Marinho fazem parte de um grupo de mulheres que querem trazer um mundo mais justo e igualitário para a música | Foto de Rafael Medeiros

A sororidade na música: como uma comunidade quer quebrar discriminações nesta indústria

A shesaid.so chegou a Portugal em setembro. Em entrevista ao Setenta e Quatro, Mariana Duarte Silva e Filipa Marinho falam das barreiras com que as mulheres ainda se confrontam no mundo da música e como as querem derrubar.

Entrevista
28 Setembro 2021

O que começou como uma plataforma digital internacional de trabalho entre mulheres na indústria da música, cresceu para uma comunidade que se espalha por vários países e vai muito além do conceito de rede de contatos. Fundada em 2014, a shesaid.so ganhou uma nova força após o primeiro encontro físico realizado em Portugal em outubro de 2019. Até àquele momento, só se conheciam através da Internet, com muitas conversas por Skype e a troca de muitos e-mails

Cerca de 250 mulheres, e também alguns homens convidados para participar em palestras ou tocar, fizeram parte desse encontro que deu uma nova vida a esta comunidade. Partilharam-se histórias e fragilidades, abordaram-se temas como desigualdade salarial, assédio, saúde mental ou descriminação. Foram, sobretudo, dias em que prevaleceu a generosidade, facto que surpreendeu quem estava na assistência. Nas conversas, mulheres poderosas, com nome e carreira, ao invés de se exibirem, praticaram o que se pode chamar de radical kindness, muito raro em meios competitivos como a música. 

Mariana Duarte Silva foi uma das pontes entre a fundadora da plataforma, Andreea Magdalina, e Portugal. Conheceram-se em Ibiza, no International Music Summit, evento em que Andreea subiu ao palco, virou-se para uma plateia maioritariamente formada por elementos masculinos e começou o seu discurso com a frase: “O futuro do feminismo são os homens”. Criou efeito, claro, e criou também um laço entre Mariana e Andreea. A partir daí, o projeto cresceu, e com o encontro em Portugal desenvolveram-se focos, entre eles a mentoria, uma das mais importantes ferramentas de empoderamento de mulheres e minorias. 

Ao longo de dois anos, criou-se a equipa de trabalho da shesaid.so em Portugal o chapter, como chamam aos silos de cada país , apresentado recentemente no Festival MIL. Para nos explicar os contornos deste projeto, falámos com duas pessoas que fazem parte da shesaid.so, a Mariana Duarte Silva, fundadora do projecto Village Underground e a Filipa Marinho, cantora, compositora e radialista. A conversa decorreu no Village, em Lisboa, uma das casas da shesaid.so, numa tarde suave de setembro, mês do conforto e da rentrée

Este espaço em Alcântara, composto por um aglomerado colorido de contentores e uma sala de espectáculos (e um jardim a crescer) é também o local da Skoola, uma nova academia de música que recebe jovens de todos os contextos sociais e económicos, projeto que vai acabar por se cruzar com a shesaid.so. 

Antes de avançarmos para os assuntos do projeto, a Mariana referia dados lançados recentemente nos Estados Unidos. Mais de quatro milhões de mulheres ficaram sem emprego naquele país, em boa parte por estarem em casa a tomar conta dos filhos. Das que ficaram em casa, muitas perderam o foco e a energia, deixaram de ter poder económico e ficaram mais vulneráveis às desigualdades e a uma postura de submissão em relação aos maridos. 

“Perderam-se anos de avanço na igualdade de acesso a emprego e na independência das mulheres em casa, relativamente às tarefas domésticas, com consequências graves no futuro das próximas gerações”, diz a Mariana. Foi um bom ponto de partida para esta entrevista. 

A shesaid.so afirma-se como uma comunidade, mais do que uma plataforma de networking. De que maneira isto se reflete? 

Filipa: Acima de tudo acho que aquilo que diferencia é que todas as pessoas que fazem parte desta rede têm um objetivo em comum, temos todas uma visão de um mundo melhor e mais justo, mais igualitário. Pelo menos no mundo da música. Todos queremos um mundo melhor no geral, mas na parte que nos compete a todos nós que somos agentes da música de uma forma ou de outra, uns são artistas, outros são promotores, outros têm venues, outros trabalham na rádio… Há todo o tipo de agentes na indústria da música na comunidade e todas queremos  digo todas mas a nossa ideia não é ser só uma comunidade de mulheres, fechada aos homens e fechada a outras minorias de género , chegar a esse mundo mais justo, a uma indústria musical mais acessível.

É especialmente difícil quando não tens um agente que te respeita, quando és um artista independente sem uma agência de booking de concertos ou um manager para ajudar a gerir propostas. Estás sempre a partir de um sítio de negociação mais difícil, disse Filipa Marinho.

Assim que se abre o site lê-se logo que são uma comunidade de mulheres e minorias. Que minorias são essas? 

Mariana: As mulheres, independentemente da cor, de onde vêm, do país, da crença, da religião, e pessoas que se identificam como mulheres. No mundo da música e das artes, sabemos que são essas que depois têm menos espaço e menos visibilidade. O mundo em geral é dominado pelos homens e o mundo da música também. Ao longo do tempo viemos a perceber esta necessidade. Não estamos a falar só de mulheres brancas na música, estamos a falar de todas as cores, todas as crenças e todos os sítios do mundo que queiram trabalhar em música, no lado de backstage ou de palco.

Filipa: Quando a shesaid.so começou era muito com um foco nas mulheres e hoje em dia, desde há dois ou três anos, houve um shift no discurso da própria fundadora da comunidade, a Andreea, que se apercebeu que falar de melhorias para o trabalho das mulheres na música era exclusivo, porque não estávamos a abranger pessoas por exemplo não binárias, mulheres trans, que têm lutas às vezes um pouco diferentes de mulheres cis, e mesmo homens simpatizantes e aliados, como nós dizemos, que fazem parte da luta.

Excluí-los do discurso não fazia sentido, por isso é que nós preferimos dizer que é uma comunidade de pessoas, com foco sim na luta pela igualdade nas mulheres e minorias de género, porque sabemos que é aí que há menor acesso a oportunidades, mas não queremos de todo excluir os homens.

Não excluí-los é também uma forma de quebrar barreiras?

Mariana: É aquela velha história de que eu falei na apresentação de que fazer eventos só para mulheres, com mulheres DJs, mulheres artistas e com público mulheres óbvio que vai excluir. A sua própria definição está a excluir os homens. Para mim isso foi notório , físico, real e constrangedor. Não é isso que quero fazer. Quero é trazê-los. E em Ibiza, quando a Andreea faz o discurso The future of feminism is men é sobre isso, não esquecendo que está a falar para uma plateia com 99% de homens. Ela abriu-lhes um pouco os olhos.

Depois, em Portimão, entre os poucos homens que estavam lá, eram três ou quatro, um deles, o Ben Turner, foi o homem que deu a mão à Andreea em Ibiza e a fez subir ao palco. Às vezes tem de partir dos homens, trazer-nos para o palco. Não é uma luta só nossa, é uma luta de todos. 

"Se a maior parte dos festivais são ocupados por artistas masculinos, é normal que eu, mesmo de uma forma indireta, veja que não tenho tanto espaço ali", disse Filipa. 

Em termos salariais, essa desigualdade ainda é enorme. Vai ser uma das lutas da shesaid.so?

Filipa: Quando és mulher, na música, em Portugal, tens menos acesso a oportunidades. Não falo especificamente de mim, porque quando comecei o meu projeto “Marinho”, há cerca de dois anos eu já tinha para trás mais de dez anos de trabalho na indústria da música de outras formas que não como artista projeto a solo, já sabia como funcionava, tinha essa experiência, tinha alguns contatos, portanto não vejo como uma coisa que me afete diretamente, mas eu conheço pessoas que são talvez mais afetadas. 

Mesmo como mulher quando estou a lidar com um promotor, com uma pessoa que está a programar um festival ou seja o que for, os chamados gatekeepers, sinto às vezes um tratamento diferente. Aquela atitude meio tu-cá-tu-lá que os homens têm entre si, meio boys club, a maneira como lidam com as coisas e o fácil acesso, com as mulheres é sempre tudo um bocadinho mais difícil. Isso também acontece a negociar cachês, como é óbvio. 

É especialmente difícil quando não tens um agente que te respeita, quando és um artista independente que não tem uma agência de booking de concertos ou não tens um manager para te ajudar a gerir propostas financeiras, estás sempre a partir de um sítio de negociação mais difícil. Estás a partir com desvantagem, tratam-te de uma maneira mais fria e levam-te menos a sério. 

Na conferência, quando se falou das mulheres terem mais dificuldade em negociar ordenados, não é um problema da mulher, que não tem problemas a fazer contas e a saber o seu valor. O problema é a credibilidade que é dada à mulher nesse momento de negociação.

Em relação a esta questão de desvantagem financeira, como artista, uma explicação que consigo dar no que acontece, é que começa sempre na representatividade e no que eu vejo que são as oportunidades. Por exemplo, se a maior parte dos festivais são ocupados por artistas masculinos, é normal que eu, mesmo de uma forma indireta, veja que não tenho tanto espaço ali. Por isso, se tu tiveres um festival e tiveres a negociar cachê comigo, vou negociar de um ponto de partida muito mais a medo de perder a oportunidade, porque já sei que ali há menos lugares para mim.

Mariana: É de onde começa essa relação, ‘quero tanto estar ali que vou aceitar o que eles me vão dar’. Já parte de um pé de desigualdade desde o início. Essa pessoa já lutou muito mais para chegar ali. Quando chega à mesa já vai muito mais submissa. E é nisso que temos de trabalhar. Antes de trabalhar nos cachês, temos de trabalhar neste sentido da mulher deixar de ter receio de subir ao palco ou abraçar uma carreira de promotora, de compositora ou de técnica de luzes. Por isso acho desde o início que é tão importante a história da mentoria. E até a lista que a shesaid.so faz das mulheres na música, as “alternative power list”

O que é?

Mariana: É a lista alternativa ao que é considerado mulheres de topo. Todos os anos se faz. 

Filipa: Isto tem por base a lista da Billboard, que sai todos os anos, a lista de “Power 100”, que são as 100 pessoas mais influentes do mundo da música, que é maioritariamente homens, e mesmo as mulheres que aparecem é conforme o contexto. 

A shesaid.so fez uma lista alternativa que subverte o que é a noção de influência. Por exemplo, em vez de escolherem as pessoas que são head of whatever no Spotify, que se calhar até fazem um bom trabalho, mas não fazem muito pelas comunidades mais afetadas ou menos vistas, mais invisíveis, vão pôr as pessoas que trabalham com essas comunidades e que não são tão cool, não são tão conhecidas, mas que estão a fazer muito pelo mundo da música nesse sentido. 

Na questão da desigualdade de oportunidades e de poder de negociação, a mentoria vai ajudar?

Mariana: É importante no sentido em que te dá acesso a uma rede, dá confiança e acompanhamento de uma pessoa com mais experiência. Não é que te vá metendo cunhas pelo mundo mundo da música, mas vai abrindo portas. 

Filipa, tu tiveste a experiência de receber mentoria no encontro em Portimão. Como foi?

Filipa: Sim, participei no programa de mentoria a acontecer na conferência do MEETSSS e não sabia para o que é que ia, não fazia ideia do que é que significava. Neste caso recebi mentoria de uma pessoa com um trabalho muito interessante. O que recebi não foi esta coisa da cunha, do “conheço alguém que te pode ajudar”. Nada disso. E eu nem sequer tinha interesse nisso, porque o que eu estava a precisar no momento era de orientação e de alguém que passava por certas coisas que eu passava e que eu nunca tinha considerado.

Eu, sendo uma pessoa queer, nunca tinha considerado que havia certas coisas que eu passava e a maneira como eu percepcionava a indústria à minha volta também estava impactada com isso, com o facto de fazer parte de uma comunidade que sofre descriminação. Não que eu sofra descriminação diretamente na pele em ocasiões específicas, mas isso tudo forma a tua identidade e a maneira que tu sentes que tens permissão ou não para te mover pelo mundo.

Essa pessoa abriu-me muitos os olhos nesse sentido, uma pessoa muito diferente de mim no sentido em que era mais da área da música eletrónica, não binária, que me abriu as portas com muita generosidade para o mundo dela, de coisas muito diferentes das minhas, e isso é sempre bom, cresce-se sempre com isso. 

Por outro lado, essa pessoa passou pela mesma coisa que eu estava a passar, ou seja, queria tornar-me freelancer, sentia que andava presa há anos a trabalhar em equipas cuja chefia, homens sempre, era abusiva, maltratavam as pessoas à sua volta. 

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Mariana Silva Duarte, Filipa Marinho e Isabel Lindim
O chapter português da shesaid.so foi apresentado recentemente no Festival MIL | Foto de Rafael Medeiros

Estava presa neste sítio de saber que sou uma boa profissional, tanto como artista como noutras áreas em que trabalho na música, neste loop, nas teias destas pessoas, e estava a ter dificuldade em arranjar a coragem para me libertar disso. Quando saí de Portimão fiz duas coisas, despedi-me do meu emprego em full-time numa agência de booking e fui bater à porta da Antena 3 a dizer "eu tenho um conteúdo de podcast que vocês têm que agarrar". 

Fui ter com o Nuno Reis, falámos sobre o podcast que queria fazer sobre compositoras mulheres, não só para ter mulheres, mas os conteúdos em si sobre mulheres, e disse ‘se não forem vocês, é outra pessoa, mas acho que tem de ser a estação pública a fazer isto’. E assim foi. 

Até me sinto esquisita de me estar a gabar disto, porque vai contra aquela coisa que as mulheres às vezes não se gabarem e terem dificuldades em mostrar orgulho, mas foi um motivo de orgulho muito grande para mim. Vim muito empoderada de Portimão por causa da mentoria, mas também por causa das palestras.

Mariana: Imagina se pudermos fazer isso vezes vinte em diferentes local chapters ao longo do ano. Cada mentoria recebe cinco ou seis pessoas, aos poucos e poucos vão aparecendo mais Marinhos, e é este sentimento de entreajuda que queremos promover. 

Em Portimão esse sentido de partilha foi o mais surpreendente?

Mariana: Sim, até das mais velhas. A Alisson, que explicou o que é ser mentora e mentorada…

Filipa: Sim, que até partilhou coisas muito pessoais do trajeto dela, de descobrir que era bipolar. A partilha foi mesmo ao nível pessoal, que tem impacto no teu dia-a-dia profissional. Por isso é que é uma comunidade. Para mim é muito mais o poder sentar-me convosco e dizer que dificuldade estou a ter e partilhar experiências umas com as outras de forma a sairmos mais fortes juntas. Isso é muito mais do que uma rede de contatos. 

Mariana: A Alisson dizia que era isto que lhe faltava em 40 anos de carreira.

Logisticamente como é que funciona a mentoria cá em Portugal?

Mariana: Ainda só temos uma mentora, a Rafaela Ribas. Há mais uns nomes para fazermos o convite.

É pago?

Mariana: É gratuito. As mentoras cedem uma hora ou duas do seu tempo por mês para estarem com as mentoradas ao longo de seis meses. 

Vocês é que organizam o espaço? Vai ser aqui no Village

Mariana: Os pares é que organizam onde é que se encontram. Nós só temos que encontrar os pares, temos de fazer essa semi-curadoria. Definimos um tempo e ao fim desse tempo vamos perceber quais foram os objetivos alcançados, se é para continuar, se é para parar... 

"Por vezes acho que ainda somos muito brandas a reivindicar os nossos direitos e que se decidíssemos todas globalmente deixar de nos sujeitar aos cânones tradicionais de formas de vida e saíssemos para a rua, talvez nos ouvissem", disse Mariana Duarte Silva.

Vão fazer outros pequenos eventos?

Mariana: Queremos fazer. O nosso headquarter é aqui. A ideia é que o programa passe por mentoria, workshops e encontros mais ou menos informais. Não foi possível até agora por causa da pandemia, mas queremos ter um calendário. Entretanto, o grupo de WhatsApp está fortíssimo, até mesmo com estrangeiras que agora moram cá. Por exemplo, quando estava à procura de um booker para aqui, surgiu na rede. Funciona muito bem para quem está à procura de trabalho. 

Há também parcerias que a Andreea vai fazendo a nível mais global, que depois permitem oferecer workshops localmente, formação gratuita, cursos. 

Acham que isto vai ajudar pessoas que não teriam acesso a essa informação?

Mariana: Acho que democratiza e disponibiliza ferramentas essenciais à criação da música, não só as ferramentas técnicas como as emocionais. 

E em termos de comunicação do vosso projeto também querem ter uma mensagem mais disruptiva, ou radical? Que fale mais abertamente das questões das minorias e das questões do feminismo. 

Filipa: Neste momento a comunicação está mais focada em procurar as pessoas certas, que têm os mesmos valores e que querem fazer parte de uma comunidade local em Portugal que partilhe destes mesmos valores, e estamos em fase de angariação de pessoas. É mais em portas fechadas, embora com portas abertas para qualquer pessoa entrar no grupo, mas é mais dentro do grupo que comunicamos entre nós sobre estas questões. 

Não precisamos de estar com uma mensagem, até porque se tu trabalhas no mundo da música e te disser que faço parte de um grupo de mulheres e de minorias de género do mundo da música que trata de algumas questões que estás neste momento a debater, não preciso de dizer muito mais além disso para tu saberes que é um grupo feminista, anti-racista e pelos direitos humanos. Há certas coisas que ficam implícitas e não temos que andar com um megafone a dizer. O trabalho verdadeiro está entre nós e na partilha entre nós, daí é que vem a força. 

Mariana: E esse trabalho é importante, porque quando começámos a falar com mulheres aqui em Portugal, muitas diziam ‘nunca senti discriminação’, e se dissermos ‘vê lá bem’, lembram-se de uma ocasião… Eu própria, enquanto manager, no início também demorei um bocado a pensar em que situações é que fui discriminada ou que me chatearam, mas claro que houve momentos em que isso aconteceu. 

Quando começámos a falar disto aqui, até havia mulheres que tinham algum receio de estar a entrar para um clube feminista, se calhar com medo de ter repercurssões ou porque achavam que nunca tinham sentido descriminação. Tudo bem com isso, se não sentiram não têm de fazer parte, mas isto não é um clube fechado, é mais uma comunidade para pessoas que sentem esta necessidade de estarem com outras pessoas com as mesmas necessidades.

Recentemente estive a ler sobre o conceito do anarquismo feminista e acabei por me identificar. É uma filosofia de anti-autoridade e anti-opressão, sugere a liberdade social das mulheres sem dependerem de grupos ou partidos.

Por vezes acho que ainda somos muito brandas a reivindicar os nossos direitos e que se decidíssemos todas globalmente deixar de nos sujeitar aos cânones tradicionais de formas de vida e saíssemos para a rua a queimar soutiens do século XXI talvez nos ouvissem. Ou melhor até, se deixássemos de fazer por um dia aquilo que nos exigem, talvez o mundo ficasse em tal desordem que nos começavam a ouvir com mais atenção.

É no fundo o que a Elena Ferrante dizia há pouco tempo numa das cartas abertas que troca com a artista Marina Abramovic: “we have to fight so that the greatest, longest, stupidest waste ever seen on this planet will end: the waste of female intelligence and creativity” [“temos de lutar para que o mais longo, maior e estúpido desperdício do planeta acabe: o desperdício da inteligência e criatividade feminina”].

"Quando começámos a falar disto aqui, até havia mulheres que tinham algum receio de estar a entrar para um clube feminista, se calhar com medo de ter repercurssões ou porque achavam que nunca tinham sentido descriminação", afirmou Mariana Duarte Silva. 

Mariana, tu aqui no Village tens muito contato com novos talentos, que são muitas vezes jovens que vivem na malha urbana mais marginalizada. Também vai chegar a essas pessoas a shesaid.so? 

Mariana: Claro! Já está a chegar. Através da Skoola, de conversas que vamos tendo com os skoolers e através do exemplo que nós vamos dando aqui enquanto programadores. Se forem olhar para a programação do Village Underground, acho que vão ver um grande equilíbrio entre género de quem nós pomos em cima do palco. 

É esse exemplo que nós damos, que já teve de ser mais trabalhoso, mas que é contínuo e diário. Quando vêem uma DJ ali, ou uma artista no palco, pensam que também podem chegar ali. E depois é tudo o que se vive aqui no Village, que são acho eu exemplos de diversidade e de interseccionalidade que vamos passando uns aos outros. 

Os próprios facilitadores têm diferentes experiências de vida e trabalham com contextos diferentes. Eles são um exemplo. A shesaid.so quer criar estes exemplos de que é possível fazer-se, mesmo partindo de um lugar de desnível.

Filipa: Se tudo o que fizermos já tiver este olhar e esta preocupação, seja a programar uma sala de espetáculos seja a programar um encontro shesaid.so para falar disto ou daquilo, se tudo já tiver essa preocupação, já estamos a fazer alguma coisa. 

Mariana: Outro problema das mulheres ficarem mais em casa e terem menos poder económico, por causa da pandemia, é que as crianças que são educadas por mulheres trabalhadoras têm mais probabilidades de lhes correr melhor a vida. Isto vai-se repercutir no futuro. Daí esta preocupação da Skoola de tirar estas crianças de casa e dar mais oportunidades de terem acesso a um mundo da música, da cultura, das artes em geral. No fundo, porque é estamos a fazer isto tudo através da música? Porque acreditamos que através da música e da cultura podemos ter um mundo melhor.