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Fotografia de Tiago Costa | Unsplash 

Rezvan Zandieh: "As iranianas rapam as cabeças, tiram os véus, gritam na cara da polícia da moralidade"

A professora-investigadora, atriz e feminista iraniana diz que a Revolução Jîna intensificou uma reação de um “governo ditatorial” que oprime, tortura e persegue as mulheres. E, do lado do Ocidente, os jogos de poder internacionais aproveitam-se da desestabilização da República Islâmica nas ruas, abandonando-as a ondas alarmantes de execuções, de detenções e tortura.

Entrevista
26 Outubro 2023

Na madrugada de 18 de outubro, as ruas de Paris estavam vazias. Rezvan Zandieh pinta este cenário como se de alguma forma interferisse no que se seguiu: anunciou-se internacionalmente que Jîna (Masha) Amini e o movimento iraniano de libertação das mulheres tinha ganho o prémio europeu Sakharov de Liberdade de Pensamento. 

Não estremeceu, “porque as ruas estavam vazias”. Para a professora-investigadora, atriz e feminista iraniana  que vive em solo francês há mais de uma década e que é uma das representantes da Assemblee Feministe Transnationale, o prémio resumiu-se a isso, “a um vazio que o Ocidente tende a vislumbrar” para se “apropriar” de uma narrativa conveniente. 

Uma semana depois, as ruas de Paris continuavam vazias, não só porque o governo francês proibiu as manifestações em oposição aos bombardeamentos israelitas na Faixa de Gaza, mas porque Zandieh não se esquece de mais um detalhe: a noite cerrada em que soube que duas jornalistas iranianas tinham sido condenadas a pena de prisão por terem noticiado a morte de Jîna: Elaheh Mohammadi e Niloufar Hamedi. 

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Mohammadi foi condenada a seis anos de prisão por colaborar com os Estados Unidos, cinco anos por conspiração contra a segurança do país e um ano por propaganda contra a República Islâmica. A fotojornalista Niloufar Hamedi foi condenada a sete anos de prisão, cinco por conspiração contra a segurança do país e dois anos por propaganda contra a República Islâmica. “Isto é o Irão dos dias de hoje”, avança Zandieh. 

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Rezvan Zandieh, atriz e ativista do coletivo Assemblee Feministe Transnationale. 

Foi também para lutar e apoiar as mulheres iranianas que, a partir de outra localização, Zandieh e as suas camaradas decidiram criar o coletivo em 2022, porque queriam que o “feminismo francês reagisse”, que tomasse uma posição a favor do movimento iraniano contra a morte de Jîna. Decidiram criar uma rede de feministas com objetivos como a educação feminista e a autodefesa. 

Focando-se na realidade Iraniana, Rezvan Zandieh não deixa de considerar o impacto da Revolução Jîna, também conhecida como Movimento Mulher, Vida e Liberdade, e a forma como intensificou a repressão de um “governo ditatorial” que oprime, tortura e persegue. “As mulheres vivem assombradas. Mandam-nas para hospitais psiquiátricos, estamos a falar de métodos usados no século XVIII. E dão-lhes tarefas e trabalhos intoleráveis, como ir ao moinho para lavarem e limparem cadáveres, em cemitérios; castigos ideológicos onde ficam totalmente isoladas”, denuncia. 

Mas estas mulheres não param, afirma Zandieh ao Setenta e Quatro. “Com o passar dos meses e perante uma repressão sangrenta, a insurreição não parou de se transformar, dando origem a uma rede de formas concretas de solidariedade sem precedentes: manifestações espontâneas organizadas por bairro, vizinhos de portas abertas para permitir a fuga de manifestantes, manifestações noturnas diante das prisões contra as execuções, greves de comerciantes e um comunicado conjunto dos sindicatos.” 

As potências europeias têm-se apropriado de uma narrativa de “coragem das mulheres iranianas”? É uma narrativa conveniente? 

Sim, é preciso sabermos isso. O  Movimento Femmes Liberté é e foi bem instrumentalizado e recuperado por diferentes canais. Percebo-o muito bem quando falamos de narrativas. É verdade que é uma das linguagens dos nossos dias e o movimento libertário precisou de se recuperar e de pensar em formas de fazer diferente. Mas esta recuperação foi feita pelas feministas neoliberais e pelos imperialistas que se alinharam com os grandes imperialistas americanos pró-guerra. Particularmente, em França, o discurso em torno do movimento foi muito instrumentalizado contra as políticas de migração, não nos esqueçamos disso. 

Esta realidade foi mais uma vez posta em evidência em França, em junho deste ano, com o assassinato de Nahel Merzouk [jovem francês de 17 anos de ascendência argelina e marroquina] e a repressão sangrenta dos movimentos de revolta que se seguiram. Não deixamos de encontrar estas narrativas disfarçadas, como as encontramos em contexto muito convenientes a si, realidades de opressão em todas as escalas, desde a costa mediterrânica, transformada em valas comuns pelas práticas de repulsão, aos bairros populares da Europa, Mayotte e Guiana, mas também do Brasil, do Sudão, da Palestina, do Líbano, do Afeganistão e do Irão.

"Metade da população iraniana vive abaixo do limiar da pobreza, as famílias ficam sem carne e pão por causa do custo de vida e as crianças não têm leite para beber de manhã."

O cerne do feminismo que defendemos é a luta contra este ataque contínuo de violência e desumanização que opera no capitalismo que, obviamente, toca nas narrativas de coação. Enquanto não fizermos valer a nossa voz, o feminismo continuará a ser monopolizado em prol de um discurso que legitima esta ordem. Prova disso foi o que aconteceu no ano passado: as potências ocidentais não tardaram a admirar a "coragem das mulheres iranianas" ao mesmo tempo que estenderam o tapete vermelho a um feminismo liberal, islamófobico e transfóbico, com o cuidado de separar a luta pelos direitos das mulheres da luta contra as opressões contestadas pelos movimentos revolucionários no Irão.

Nos seus jogos de poder internacionais, os mesmos governos ocidentais aproveitam-se hoje da desestabilização da República Islâmica nas ruas iranianas, abandonando-as simultaneamente a ondas alarmantes de execuções, de detenções e tortura. Nunca foi tão claro que a emancipação dos povos é um não assunto na agenda internacional. É por isso que o silêncio feminista não é uma opção. 

De que se trata esta emancipação dos povos enquanto não assunto na agenda internacional?  

Estamos a falar da emancipação do quê? Esta é a pergunta que temos de colocar logo a priori. Falo da emancipação dos outros e de outros domínios que não única e exclusivamente a emancipação feminina. E isso é algo um pouco especial e que deve estar em todas as agendas políticas de qualquer país. Falamos de direitos humanos, de valores de sobrevivência. Não é universal. Por isso, nunca poderemos falar da emancipação de uma forma generalizada. 

No Irão, há uma separação de lutas pelos direitos das mulheres das lutas contra as opressões contestadas pelos movimentos revolucionários? 

É preciso compreender os movimentos no seu contexto histórico, social e político. É por isso que digo que há uma grande diferença entre o que se passa no Irão e o que se passa em França. A porta de entrada para a Revolução Iraniana [1979] não tem nada que ver com as políticas islamofóbicas e discriminatórias contra as mulheres muçulmanas na Europa em geral. E, em todo o caso, com o movimento.

No que diz respeito às lutas feministas no Irão, posso dizer que temos de fazer uma ligação entre os movimentos que pedem mudanças nos direitos das mulheres, na lei e os movimentos trabalhistas. A primeira coisa que se diz sobre os direitos é que estes são movimentos originalmente reformistas, ou seja, são a favor de melhorias na lei e nos direitos das mulheres. Digamos, são pelos mínimos. 

Como dizia, depois da Revolução Iraniana, a lei adotada passou a ser a Sharia, e Ruhollah Khomeini [ex-líder] instituiu uma série de restrições morais, proibindo tudo o que remetesse ao Ocidente. Apesar de todas as barreiras estabelecidas, as mulheres iranianas nunca deixaram de participar ativamente da vida pública e de reivindicar igualdade de direitos. Neste cenário, podemos observar o surgimento de duas principais vertentes feministas: as feministas islâmicas, que acreditam em mudanças a partir de uma nova interpretação das leis islâmicas, e as feministas seculares, que acreditam que as mulheres só podem possuir igualdade de direitos num Estado secular. 

"O cerne do feminismo que defendemos é a luta contra este ataque contínuo de violência e desumanização que opera no capitalismo, que obviamente, toca nas narrativas de coação."

Comecemos por “One Million Signatures”, uma campanha criada em 2006, com o propósito de reunir um milhão de assinaturas em prol da alteração de todas as leis que discriminavam e aboliam as mulheres de um papel fundamental. Essa campanha é notável pelo apoio e divulgação que recebeu, assim como é curiosa a sua estrutura única, propositalmente sem uma liderança definida. Esta campanha esperava um número exato, mas parou quando chegou ao meio milhão de assinaturas. Isto proporcionou-se a partir de mulheres da classe média, no centro da capital, Teerão. Mas como podemos perceber, foi um movimento reformista que foi rapidamente reprimido. 

Depois deste movimento, houve outros movimentos com naturezas diferentes que reuniam as condições necessárias para chegar a um movimento revolucionário como o movimento da Femmes Liberté e o movimento das mulheres. O Femmes Liberté ultrapassou todas estas etapas. É revolucionário. Vale completamente a pena esta mudança de regime. Podemos dizer que isto aconteceu porque as figuras importantes do movimento de hoje se juntaram ao movimento em liberdade e a sua reivindicação foi completamente alterada. Mas, para compreender o contexto histórico de um movimento revolucionário, precisamos de voltar atrás e ver também a evolução dos movimentos reformistas. 

Houve outras formas de resistência civil e política das mulheres. No final de 2017, surgiu uma nova forma de expressão política e social entre as mulheres, ou seja, o ato público de retirar o lenço de cabeça por aquelas que “ousavam” fazê-lo na rua, à  vista de todos, enfrentando a repressão e denunciando frontalmente o regime teocrático. 

Em dezembro de 2017, no auge dos movimentos de protesto em muitas cidades iranianas contra o alto custo de vida, Vida Movahed, de 37 anos, mãe de uma criança de dois anos, retirou o seu lenço branco de cabeça numa avenida central de Teerão, Enghelab (que significa revolução), que foi o cenário da Revolução de 1979 e dos protestos do Movimento Verde pela Democracia, em 2009. Ela pendurou o lenço num bastão para torná-lo visível e subiu a um poste elétrico com a cabeça descoberta. O evento ecoou e outras jovens mulheres seguiram o seu exemplo. Isto levou à prisão de trinta delas pela polícia da moralidade. 

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Fotografia de Rezvan Zandieh. 

Este gesto foi adotado por várias mulheres e tornou-se um movimento espalhado por mais de cem cidades iranianas contra o regime teocrático, acusado de repressão, corrupção e altos custos de vida. Logo a seguir, seguiram-se as suas ligações aos protestos de 2019, também provocados por  aumentos do preço dos combustíveis. Mas a verdade é que desde o seu início, há quase meio século, a Revolução Iraniana de 1978-1979 gerou mitos que influenciaram poderosamente a forma como compreendemos a realidade política feminista contemporânea. 

Neste momento, as mulheres estão a rapar a cabeça, a retirar os véus, a gritar na cara dos Guardas Revolucionários e da polícia da moralidade. Estão diante de tanques, de mangueiras de incêndio, de metralhadoras e de gás lacrimogêneo.

Isto não é uma revolta, mas uma revolução. Estão diante do exército a dizer: “Morte ao Ditador, Morte a Khamenei, Morte à República Islâmica”, destroem e queimam imagens de Khomeini, de Rahbar [Líder Supremo Khamenei] e de Qasem Soleimani [comandante da divisão Quds do IRGC, assassinado pelos Estados Unidos em 2020]. 

Como sabemos, as pessoas cantam canções antifascistas ou de esquerda desde os primeiros dias da revolução. Cantam a canção da resistência chilena dos tempos de Salvador Allende, “El Pueblo Unido Jamás Será Vencido” [O povo unido nunca será vencido]. “Bella Ciao”, ​​que nem preciso de me adiantar para o explicar. Todas estas lutas encarregam-se de ambições claras: a liberdade, a dignidade. 

Que análise social e política se pode retirar da forma como se vive no Irão?

As mulheres vivem assombradas. A repressão é realmente feroz, muito grande, negra para toda a sociedade, e especialmente para as mulheres. 

A situação económica está a piorar a cada dia que passa. Acredito que a onda de emigração juvenil vai e pode abrir os horizontes de várias pessoas que vivem no Irão, mas, por outro lado, não podemos falar do fim da revolução ou do fim do movimento. Aliás, não devemos. A repressão é a mais forte [de sempre]. O governo executa-a simbolicamente e não simbolicamente, isto é, informalmente. Temos pessoas na prisão onde lhes dão a volta, torturam-nas durante anos, castigam-nas. 

Olhando para o caso das mulheres em específico, é humilhante perceber as muitas formas de castigo que lhes aplicam. Insisto nisto porque não acontece com os homens. Por exemplo, mandam as mulheres para hospitais psiquiátricos, estamos a falar de métodos usados no  século XVIII. E dão-lhes ainda tarefas e trabalhos intoleráveis, como ir ao moinho para lavarem e limparem cadáveres em cemitérios; castigos ideológicos onde ficam totalmente isoladas. O governo fá-lo. Exila as mulheres em regiões desfavorecidas e obriga-as a exumar livros religiosos. Não, os castigos não significam só mandar as mulheres para a prisão.

"Isto não é uma revolta, mas uma revolução."

Temos ainda a repressão literária, que é também muito grande e feroz. Por outro lado, não podemos dizer que a Revolução Jîna acabou, porque, no que diz respeito à resistência das mulheres, continuamos a ver demasiado. Todos os dias as mulheres, apesar de saírem à rua cada vez mais, sofrem opressão, repressão, perseguição. Tudo continua igual.

Podemos dizer que estamos a fazer parte desta revolução, mas é preciso entender a revolução nas ondas da nossa interpretação, ainda que seja, talvez, com outra temporalidade. O movimento ainda não acabou por mais que pouco se ouça aqui, deste lado do Ocidente. Por mais que jornalistas sejam presas, há uma forte repressão para mudar o modelo. Mas ele existe! Mais ou menos nas margens. É verdade que estamos a passar por uma fase um pouco difícil neste momento? É, mas a resistência continua. 

É claro que as clivagens de classe, a corrupção e o clientelismo estão mais flagrantemente visíveis do que nunca, enquanto as manifestações contínuas de trabalhadores, professores e reformados do governo eram rotineiras. Cessaram. Desde setembro de 2022 que milhões de jovens, incluindo estudantes universitários e licenciados, veem um futuro cada vez mais sombrio pela frente e as mulheres a enfrentar as perspetivas mais sombrias. Em média, com mais escolaridade do que os homens, as mulheres iranianas suportaram o duplo fardo do apartheid de género e da feminização da pobreza.

A tensão tem vindo a aumentar nas últimas décadas entre as minorias étnicas culturalmente reprimidas e economicamente desfavorecidas do Irão, particularmente nas periferias curda, balúchi e árabe do país. E há ainda uma crise ambiental de enormes proporções, combinando seca, má gestão da água e poluição mortal.

A Revolução Jîna é e foi um desenvolvimento incrível que, acredito, irá elevar a moral de todos os iranianos que duvidam que o movimento seja genuíno. Vi uma imagem incrível durante os protestos no Khuzistão (2022) que mostrava mãos trabalhadoras com a legenda: “os trabalhadores fazem tudo, exceto para ganhar a vida”. Isto aplica-se a todas as sociedades em que a classe trabalhadora é oprimida, mas é particularmente relevante para o Irão. E obviamente isso também está ligado à reivindicação das mulheres iranianas.  

Os oprimidos não se tornaram governantes [depois da revolução 1979], apenas se tornaram mais oprimidos. [O governo] Aboliu as leis de proteção trabalhista. Os trabalhadores são agora açoitados, presos e condenados a dez anos de prisão por questões sindicais — por se formar um sindicato ou se defender direitos laborais. 

Os governantes são capitalistas que seguiram os passos dos anteriores e que estão a tratar os oprimidos de forma muito pior, mais violenta, mais cruel e mais desumana. Na verdade, o que os trabalhadores ganharam depois de cem anos de luta e esforço, perderam na República Islâmica. Vejamos, a última revolução com tanto impacto quanto esta [Revolução Jîna] foi em 1905, contra o Movimento Constitucional. 

Estes protestos surgem depois de anos de sanções ao Irão. Que tipo de exigências económicas estão a ser feitas nos atuais protestos?

Qualquer pessoa que tenha vivido sob sanções ou esteja familiarizada com elas sabe que apenas prejudicam o povo e não o governo. As sanções são guerra, e as impostas ao Irão pelos Estados Unidos são absolutamente malignas. No entanto, são a principal causa dos nossos problemas económicos — o governo corrupto iraniano é igualmente culpado pela situação económica da nação. As sanções dos EUA não espancaram Amini até à morte, e as sanções norte-americanas não balearam a cabeça de uma menina curda de dez anos.

Metade da população iraniana vive abaixo do limiar da pobreza, as famílias ficam sem carne e pão por causa do custo de vida e as crianças não têm leite para beber de manhã. Isto exclui as muitas crianças trabalhadoras que vivem nas ruas e o grande número de iranianos sem-abrigo que procuram refúgio em sepulturas vazias, conforme relatado pela própria República Islâmica. Estes protestos não são apenas contra o uso obrigatório do véu são antigovernamentais e anticorrupção.

Há um projeto de sociedade pós-capitalista baseado na solidariedade e na emancipação da população iraniana? Os coletivos de trabalhadores, como o Conselho para a Organização de Greves dos Trabalhadores do Petróleo de Contacto e o Sindicato dos Trabalhadores da Fábrica de Açúcar de Haft Tappeh, são exemplos disso? 

Os coletivos de trabalhadores, como esses dois, foram rápidos a mostrar a sua solidariedade para com as mulheres que protestavam nas ruas. E isso foi de facto um fenómeno muito relevante. Estes sindicatos também organizaram greves, não só solidarizando-se com os colegas trabalhadores que tinham tomado medidas noutras indústrias e sectores, mas também em apoio aos protestos nas ruas – protestos que começaram na cidade natal de Jina, Saqqez, no Curdistão. 

A tensão tem vindo a aumentar nas últimas décadas entre as minorias étnicas culturalmente reprimidas e economicamente desfavorecidas do Irão, particularmente nas periferias curda, balúchi e árabe do país.

O desejo de um novo sistema político, criado através da participação direta de comunidades oprimidas e marginalizadas não só pela atual República Islâmica, mas também pelos governos monárquicos que a precederam, era claro. Colocando em primeiro plano as representações pluralistas da classe trabalhadora, tenho de admitir que a Carta incorpora uma mudança histórica de paradigma para a esquerda iraniana. Expressa um novo tipo de política de esquerda que enfatiza explicitamente as lutas não só dos trabalhadores de uma variedade de indústrias, mas também das mulheres, dos indivíduos LGBTQ e das comunidades étnicas e religiosas rotuladas de “minorias” pela política estatal. É uma política que integra também o impacto da crise climática e a má gestão dos recursos naturais do país pelo governo.

Esta solidariedade, este movimento parece-me livre. Ele representa a verdade das lutas populares. É um movimento no sentido literal, intersexo, humano. A questão que diz respeito às classes também diz respeito à questão das áreas de racismo, outra configuração no Irão. Pela primeira vez, as exigências políticas não só das mulheres, mas também da classe trabalhadora, dos grupos minoritários étnicos e religiosos e das pessoas LGBTQ tornaram-se visíveis. Isto também teve impacto nas reivindicações da esquerda e nas relações entre os diferentes movimentos que a compõem. 

No caso da Jîna também se trata de descriminação e racismo. Ela vinha do Curdistão, de fora da cidade. Por outras palavras, se ela era uma rapariga do campo, sabia como se comportar. Jîna está na intersecção destas três grandes discriminações. Começaram a haver rusgas nas prisões. O movimento começou por falar da fome, por exigir paz e apropriação, recuperação, recuperação do corpo feminino e a liberdade de escolher se quer ou não usar o véu, o lenço na cabeça. O meu problema é o véu obrigatório, mas já lá vamos. 

Há um eco cada vez mais forte que se pode tornar um ponto de viragem na história e, eventualmente, de reconciliação étnica e histórica e, quem sabe, política? 

Creio que sim. Os sinais de solidariedade entre as diferentes comunidades que participaram na revolução de Jîna assumiram muitas formas: manifestantes de língua farsi cantando em curdo, manifestantes em Zahedan expressando a sua solidariedade para com os seus irmãos curdos e referências explícitas dos trabalhadores à violência de género do Estado. E isto tem sido cada vez mais documentado. Estas comunidades e diferentes movimentos comunicam entre si através destes sinais de solidariedade, criando uma rede revolucionária em constante evolução que se desvia das conceptualizações de ativismo masculinas e centradas no petróleo.

Existem certamente razões para a sobre-representação dos trabalhadores petrolíferos, por exemplo, como a única parte politicamente impactante da classe trabalhadora. Isso pode ser explicado através de exemplos históricos de  greves que alimentaram ou geraram mudanças em escala nacional. O clima económico e político em que os trabalhadores petrolíferos adquiriram o seu estatuto de representantes da classe trabalhadora, em geral no final dos anos 1970, difere muito do contexto atual.

É importante perceber que esta divisão neoliberal do trabalho foi apropriada pela República Islâmica para exercer ainda mais poder sobre a classe trabalhadora.

Na verdade, embora a economia do Irão ainda seja altamente dependente do petróleo, isto não é eterno e imutável. Pelo contrário, a redivisão da força de trabalho, a neoliberalização mais ampla da economia iraniana desde a década de 1990 e as sanções estrangeiras resultaram na diversificação da economia nacional. Isto significou um afastamento da economia rentista, baseada no petróleo, associada aos últimos anos do reinado do Xá, e em direção a novas formas de renda. 

É importante perceber que esta divisão neoliberal do trabalho foi apropriada pela República Islâmica para exercer ainda mais poder sobre a classe trabalhadora. Na indústria petrolífera, é concedido aos trabalhadores permanentes o estatuto de empregados ( karmand em farsi) da companhia petrolífera nacional, o que significa que, para serem contratados, precisam de passar por um processo de triagem que determina se as suas crenças estão alinhadas com as do governo. 

A revolução Jîna foi precedida por eventos como a Revolta de Deymah de 2017 e o Bloody Aban (2019–2020). Também emergiram da classe trabalhadora, apontando para exemplos anteriores de solidariedade entre diferentes movimentos da esquerda mais ampla. Foram importantes marcos, ainda que infelizes, na revolução iraniana?

Vou dar alguns exemplos para que se compreenda melhor esta questão. Baluchi era uma região muito desfavorecida no sul do Irão, abandonada e desmilitarizada. Sempre houve uma representação deste povo com uma linguagem bárbara, criminosa. Havia  homens e mulheres a serem oprimidos. Portanto, essa era uma imagem dessa população antes da revolução.

A partir da revolução, nós queríamos uma guerra, a presença na rua. E, na sexta-feira seguinte, lá estavam os balúchis na rua. Chamamos-lhe Sexta-feira Sangrenta porque os balúchis estavam lá todas as sextas-feiras durante um ano. Mesmo quando não havia o mesmo ritmo noutras partes do país. Isso ajudou a mudar a imagem. 

Reconhecemos as suas representações, trocamos ideias e, como resultado, houve muitas formas de solidariedade entre as pessoas do centro que se sentiam muito diferentes e superiores: os curdos, os balúchis e os árabes. Houve esta mudança de imagem que permitiu a criação de redes de solidariedade entre os grupos. Estamos a falar de classe. É preciso lembrar que o Movimento, em 2019 [ Bloody Aban], era de facto um movimento de trabalhadores, havia diversidade de classes. Tivemos várias greves e manifestações maciças de professores, pensionistas, condutores de autocarros e também de trabalhadores, trabalhadoras, por exemplo, ou de outro trabalhador ou de outros. Portanto, acompanhámos o movimento. De facto, havia todas as presenças, todos estes setores no movimento de liberdade juntos. Mas a modalidade e temporalidades desses movimentos era diferente. 

"Sepideh Gholian é perseguida por manifestar-se unindo-se a um sindicato. Foi detida pela terceira vez num intervalo de quase cinco anos e agora a Justiça do Irão quer condená-la a uma pena de mais dois anos de reclusão por criticar o líder supremo do país, o aiatolá Ali Khamenei."

Este movimento que falamos hoje foi um movimento que permitiu realmente aumentar e reforçar a solidariedade entre todas as pessoas É a partir desse momento que surge este movimento para a comunidade queer e LGBT. Isto também é muito importante, porque, num dos comunicados de imprensa emitidos por representantes de diferentes setores, falaram dos direitos das mulheres, dos direitos dos homossexuais e da comunidade LGBTQ. Foi a primeira vez que o fizeram. Portanto, nesse sentido, podemos dizer que o movimento é livre. Depois disso, pode-se isolar todo o movimento feminista. 

O caso Sepideh Gholian é um dos mais relevantes para esta luta, assim como a sua inserção nos movimentos, até dentro das próprias prisões. 

A Sepideh é uma pessoa extraordinária. O Movimento feminista no Irão foi praticamente fundado e tornou-se imparável desde que Sepideh o integrou. Primeiro, porque ela vinha de uma aldeia, não vivia numa grande cidade, e depois era ativa politicamente, militante e ativista. Ela começou a partir dos movimentos trabalhistas da Fábrica de Açúcar de Haft Tappeh, desde 2018. 

É importante relembrar que Sepideh é perseguida desde então. Em março deste ano, ela foi detida pela terceira vez num intervalo de quase cinco anos e agora a Justiça do Irão quer condená-la a uma pena de mais dois anos de reclusão por criticar o líder supremo do país, o aiatolá Ali Khamenei.

Sepideh foi presa pela primeira vez em novembro de 2018, ao participar numa greve na indústria de açúcar Haft Tappeh. Na altura, as autoridades detiveram muitos ativistas e trabalhadores, logo foram libertados sob fiança. Ela, porém, passou cerca de um mês detida.

Em janeiro de 2019, apenas um mês depois de ter sido libertada, a ativista foi novamente encarcerada sob a acusação de participar numa conspiração ocidental para derrubar o governo obtida sobre tortura. Atualmente, Sepideh está presa com Ismail Bashir, um dos líderes do movimento Haft Tappeh. 

Mas o mais importante é que ela não pára. Ela fala-nos de tudo a partir da prisão, inclusive das torturas. Assim que foi libertada pela primeira vez, começou a falar de tudo. Toda a tortura pela qual passou com os islamistas, mas também sobre as agressões sexuais, ou seja, todas as formas de tortura que se possa imaginar. Ela é libertada, mas depois é sempre presa por causa das suas declarações. Daí esta revelação sobre as condições de tortura na prisão no Irão e sobre as mulheres. Dedica-se e ama o que defende. 

Além disso, não esqueçamos que é jornalista. No Irão, há jornalistas que trabalham para o governo e, também por isso, ela faz-se ouvir cada vez mais, não cooperando e denunciando isso mesmo. É uma mulher muito dura e muito corajosa. Ela projeta uma imagem que não é de todo a de alguém que sofre, que é uma vítima. A imagem que reflete é encorajadora, mas, para isso, é submetida a muito, a demasiado. 

A questão de usar ou não o lenço na cabeça. Sabemos o que está em causa no uso obrigatório do véu no Irão. Em França, a proibição da burca, do hijab, do véu islâmico e de abayas ainda é controverso. 

De facto, no início, o movimento Femmes Liberté estava  a favor de políticas discriminatórias contra os imigrantes e as gerações de imigrantes, portanto, a favor do que diz ser a islamofobia. Mas temos de perceber que a questão do Islão no Irão é completamente diferente.

Tentámos realmente esclarecer sem cair num discurso religioso e não apenas num discurso de islamofobia? A pergunta é clara. As mulheres são oprimidas por um governo ditatorial, por uma ditadura teológica impõe regras islâmicas e, portanto, no que toca às questões das mulheres no Irão, trata-se da escolha de usar ou não usar o véu. 

No Irão podemos ver várias imagens de mulheres sem véu na rua a mostrar um único sinal da revolução, mesmo que se vivam marcas do fim das liberdades na Rua da Revolução. O Movimento Iraniano é um movimento feminista contra o véu obrigatório. O gesto foi apropriado por mulheres com véu e também por mulheres com burca em casa. A questão no Irão não é o véu, é o véu obrigatório, o que é completamente diferente da representação das mulheres. 

Não se trata de privação do seu modo de vida. Em todo o caso, é assim que vejo o outro grande erro que está a ser imposto: um modo de vida, algo que não pertence de facto aos homens. Portanto, não é aceitável.