Paul Mason

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Paul Mason: "Temos que aprender as lições do velho fascismo porque nunca as aprendemos adequadamente"

Paul Mason partilhou com o Setenta e Quatro a sua visão de um futuro menos sombrio, a admiração pelos seus novos heróis, os psicólogos alemães Erich Fromm e Wilhelm Reich, e a descoberta que fez ao estudar as massas que ao longo dos anos têm apoiado movimentos fascistas. Para Paul Mason é simples: há ainda um grande medo da liberdade. 

Entrevista
5 Agosto 2021

É estranho ter uma conversa com Paul Mason do outro lado do ecrã. Não só porque somos amigos e colegas há muitos anos e em outras circunstâncias a entrevista seria feita num pacato pub qualquer, mas também porque assim, em três dimensões, o Paul está como que enjaulado. As suas expressões vivazes estão limitadas pela moldura da chamada de Zoom. Há uma dissonância digital criada pela tecnologia que, se por um lado nos permite comunicar, é também um entrave. 

Paul Mason deixou os grandes canais de televisão há cinco anos para se poder dedicar mais livremente ao jornalismo de causas. Mas foi ao analisar a crise económica, política e sistémica que marcou a última década que chegou a um público mais largo e sedento de soluções. Com os livros Pós-Capitalismo (Objectiva, 2017) e Um Futuro Livre e Radioso (Objectiva, 2019) foi além do jornalismo, propondo posições éticas e filosóficas que contrastam com autores seus contemporâneos, de Jordan Peterson a Thomas Piketty.  

É hoje uma referência não só no mundo anglo-saxónico, mas à escala mundial, escrevendo regularmente para o semanário alemão Freitag e para o jornal francês Le Monde Diplomatique. No seu tempo livre dedica-se à dramaturgia: escreveu peças como Why It’s Kicking Off Everywhere, baseada no seu livro com o mesmo nome, e Divine Chaos of Starry Things, sobre a extraordinária vida da revolucionária parisiense Louise Michel. 

Este verão, no próximo dia 26, lança no Reino Unido o livro Como Parar o Fascismo, em que propõe explicar a ascensão da nova extrema direita sem ignorar os erros cometidos por aqueles que a combatem. E se desde há muito que fala fervorosamente dos perigos da radicalização à direita, é neste seu novo livro que se debruça verdadeiramente sobre a importância da sua análise psicológica. 

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livro paul mason
How to Stop Fascism será editado em Portugal no final do ano
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No início da entrevista, diz-me estar a rever as provas finais de Como Parar o Fascismo. Veste uma t-shirt branca um pouco amarrotada e está sentado ao computador, na sala em que trabalha, rodeado por livros amontoados nas estantes. A cadelinha Lottie está fora do ângulo de visão - avisa-me - mas presente. É o retrato de um Paul Mason em confinamento, doméstico e no entanto alerta, desejoso de voltar ao ativismo de ruas e a uma realidade na qual o “distanciamento social” é um paradoxo. 

“Desde meados da última década que se tornou óbvio que lidamos com uma grande viragem à direita radical na política”, diz quando lhe pergunto porque, depois de mais de uma década a escrever sobre o anticapitalismo e a fase final do neoliberalismo, decidiu mudar de direção e escrever sobre antifascismo. “Tivemos o Brexit, o Trump, o Bolsonaro, a intensificação do nacionalismo hindu de Modi. Mas por volta de 2019 percebi que isto não iria parar com um tipo de direita populista, a direita populista autoritária que hipnotizou a imprensa mundial.”

É verdade que o tema não lhe é inusitado. Se bem que Um Futuro Livre e Radioso se foque na defesa do marxismo humanista e do ser humano enquanto uma entidade própria e insubstituível, o livro abre com a inauguração de Donald Trump à presidência dos EUA, com os protestos que se lhe seguiram, e com o processo de hostilização contra os movimentos antifascistas também conhecidos por antifa. 

Com o atentado terrorista em Charlottesville - em que o neonazi James Alex Fields Jr. atropela propositadamente um grupo de manifestantes de esquerda no estado de Virginia em agosto de 2017 - Paul apercebe-se que “estávamos numa jornada que ia além do populismo de direita”. E quanto mais se debruçava sobre o tema da assim chamada alt-right, ou direita alternativa, mais se “apercebia que estavam numa curva de crescimento rapidíssima, não em termos de números nas organizações, mas na saliência da sua ideologia”.

Como Parar o Fascismo - um livro que quer fazer mais do que explicar

“Aquilo com que estamos a lidar é uma sobreposição e sinergia entre o populismo de direita e o novo fascismo, [por isso o livro Como Parar o Fascismo] tem que passar por uma grande exploração histórica”

Com o fim de ajudar a combater esta força ascendente, Paul Mason decide escrever um livro sobre o fascismo radicalmente diferente dos que encontrou até então. “Há bestiários muito bons sobre a extrema direita, [que dizem] ‘é assim que se identifica um conservador autoritário’, ‘isto é um populista de direita, isto é um fascista’. Muita da história [escrita] do fascismo acaba por ser um bestiário também. Tipo catálogos ornitológicos.”

Para Paul estes manuais serão insuficientes para a luta ideológica que se avizinha. “O que eu queria fazer com este livro era ir além desse tipo de abordagem da Ciência Política à nova extrema-direita. Queria trazer um ponto de vista histórico à questão. E, em vez de um bestiário, em vez de uma espécie de catálogo zoológico, [o livro] dá como que um resumo de como o fascismo tem interagido com o conservadorismo dominante, com a direita autoritária, com a direita populista.”

Para melhor ilustrar o desenvolvimento do fascismo através dos tempos, Como Parar o Fascismo reconta três episódios fundamentais da história do século XX: a ascensão ao poder de Benito Mussolini em Itália entre 1919 e 1929; a tentativa lograda do Partido Comunista Alemão e da esquerda alemã em travar Adolf Hitler; e o movimento da Frente Popular em França que levou ao governo socialista de Léon Blum em 1936. 

Paul explica: “O que tento fazer com estes três episódios é aquilo que historiadores, académicos, não querem fazer, ou seja, usá-los como manuais de ação.”

E aqui Paul Mason depara-se com aquilo que diz ser o primeiro grande obstáculo ao sucesso da esquerda na luta contra o fascismo. “O maior problema da esquerda há uma geração, há duas gerações, é não acreditar nos seres humanos.” Voltamos então a falar de Um Futuro Livre e Radioso e em como no fundo é uma prequela deste último livro - mas que “subestimou o perigo”. 

Paul Mason vê na esquerda atual muitas das limitações e determinismos da escola estruturalista de Louis Althusser e pós-estruturalista de Michel Foucault. Uma esquerda que olha para sistemas descartando comportamentos - individuais ou coletivos. Em resposta ao aforismo Althusseriano que ‘a história é um processo sem sujeito’, Paul Mason diz: “Uma máquina - é isso que um processo sem sujeito é.” 

E se em Um Futuro Livre e Radioso se limitou a criticar esta “esquerda anti-humanista”, hoje vai mais longe e diz que “embora não seja fã da teoria da ferradura”, na qual a extrema-esquerda e a extrema-direita se aproximam no espetro político, “filosoficamente existe uma teoria da ferradura entre o esquerdismo nietzschiano de Foucault e [Jacques] Derrida, e a cíclica brigada anti-história dos neo-niilistas da direita. A esquerda deve romper com o nietzscheanismo, deve romper com o anti-humanismo”.

“Escrever Um Futuro Livre e Radioso fez-me muito impopular. Vou a podcasts de esquerda onde jovens me dão sermões sobre como, por exemplo, os chineses têm uma visão diferente da realidade e não precisam de democracia. Isso é pós-modernismo puro. É puro anti-humanismo.”

São estes jovens de esquerda, “dependentes da história académica” e de uma academia anti-humanista, que preocupam  Paul Mason. Fica “frustrado” com a carência de debate estratégico antifascista. Para compreender com o que estavam a lidar, “os antifascistas dos anos 1920 e 1930 não precisaram de [historiadores]. O debate sobre a estratégia antifascista dentro da esquerda alemã foi desenvolvido numa revista teórica sindical chamada Die Arbeit [O Trabalho].” 

Mas a esquerda de hoje não tem revistas teóricas de fácil ou alargado acesso. “Não temos pessoas com autoridade que possam discutir estratégia,” acrescenta. “Consequentemente, as pessoas que vão para as ruas, que são espancadas em [protestos como os de 2019 em] Portland, Oregon, têm que ler um tipo de explicação do fascismo que foi construído, para ser honesto, por historiadores académicos pós-estruturalistas que nunca puseram o pé numa manifestação.”

Como Parar o Fascismo tenta preencher esta lacuna. “Uma grande parte do livro tenta desconstruir esta batalha sobre a teoria antifascista e a guerra das definições que consumiram a academia, e voltar a alguns dos conceitos fundamentais da perspetiva marxista do fascismo. E quando digo fundamental, digo um relato crítico do fracasso do marxismo em verdadeiramente entender o que o fascismo é.”

O fascismo de hoje não é o fascismo de sempre

“O que digo à esquerda é: este é o fascismo contra o qual lutamos, não o velho fascismo. Mas temos que aprender as lições do velho fascismo porque nunca as aprendemos adequadamente”

Para Mason, a principal tarefa que qualquer força progressista tem hoje é a de compreender o que enfrenta. Ou seja, compreender que, mesmo vindo do “mesmo estoque”, o fascismo desta última década não é o fascismo de sempre.

"O que faço no livro é mostrar que o que aconteceu não foi a sobrevivência e o renascimento do fascismo. A metáfora que uso é que o fascismo cresceu a partir da mesma raiz, das raízes nietzschianas e filosóficas.” Aqui faz uma pausa. Já me tinha dito que não quer revelar o livro por inteiro, mas eu insisto que gosto de spoilers

O estoque em questão “é o niilismo, é a ciência racial". Os ideólogos da extrema-direita de hoje vão buscar não aos discursos de Adolf Hitler, mas ao trabalho daqueles que antecederam e inspiraram o pensamento nazi, entre eles o historiador alemão Oswald Spangler e o filósofo racialista britânico Houston Stewart Chamberlain. 

“Tudo aquilo de que tratam é a visão cíclica da história, o amoralismo, o anti-progresso”, diz Paul num tom de exasperado enfado. “Encontramos nas obras dos progenitores do fascismo moderno, como Alexander Dugin – o russo nacional-bolchevique de direita, como ele uma vez se autodenominou – toda essa visão cíclica da história e do progresso e, na verdade, uma teorização do que Goebbels uma vez prometeu.”

Em 1933, poucos meses após Hitler ter tomado o poder, Joseph Goebbels, ministro da propaganda da Alemanha nazi, disse num discurso difundido pela rádio que o ano de 1789 teria sido “expurgado dos registos da história.” Por outras palavras, o nazismo tinha posto fim aos ideais liberais da Revolução Francesa, fim à liberté, égalité, fraternité

“É isso que eles querem”, diz Paul Mason. “Entendi pela primeira vez na minha vida ao ler estas coisas criticamente – têm mesmo de ser lidas criticamente porque é tudo uma estupidez divagante de tamanho tolkiano – que o que eles querem é cancelar a modernidade e reverter a uma forma de sociedade da qual uma nova modernidade não possa emergir.”

É esta vontade de erradicar a liberdade - e o porquê dos seus aliciantes - que, segundo o Paul, não foi compreendida pela maioria da esquerda, histórica  ou presentemente. 

“O Comintern falhou completamente em entender o fascismo”, diz mencionando as honrosas excepções dos “marxistas críticos” Leon Trótski, António Gramsci e Walter Benjamin. “Mas, para mim, os únicos marxistas que realmente compreenderam o fascismo foram aqueles que a maioria dos marxistas consideram interessantes mas quixotescos.”

Os marxistas quixotescos que inspiraram Paul Mason e a sua visão de um antifascismo adequado ao século XXI são os psicanalistas Wilhelm Reich e Erich Fromm. “Curiosamente, ambos alemães”, digo quando  Paul revela os nomes dos seus novos heróis. “Sim e ambos ativos antifascistas”, acrescenta ele efusivamente. 

Reich e Fromm são talvez os nomes mais conhecidos do departamento de psicologia do Instituto para a Investigação Social  da Escola de Frankfurt. Ambos tinham um especial interesse na análise marxista de temáticas freudianas como a sexualidade, o desejo e a religião. 

Enquanto judeus, socialistas e antifascistas - bem como psicanalistas adeptos da libertação sexual - Reich e Fromm são perseguidos pela SS e obrigados a sair da Alemanha nos anos 1930. E se bem que as suas trajetórias acabem em pontos muito distintos (Reich preso nos Estados Unidos acusado de fraude científica, Fromm ainda hoje uma referência no campo da psicanálise), colaboram no período entre 1932 e 1945, publicando cada um trabalhos fundamentais para a análise que Paul Mason hoje faz da extrema-direita e daquelas que a combatem. 

Os livros Psicologia de Massas do Fascismo, que Reich publica em 1933, e O Medo da Liberdade (1941) de Fromm são a base das “lições profundas e viscerais” que Mason diz estar a tentar aprender. Em especial a maneira como os psicanalistas viram e alertaram para o perigo do discurso nazi, enquanto as organizações a que pertenciam - nomeadamente Reich que era membro do Partido Comunista Alemão - os ignoraram. 

“Marx previu a financeirização do capital. Engels previu mais ou menos a corrida ao armamento que levou à Primeira Guerra Mundial. Nenhum marxista previu o fascismo. Nenhum”, diz  Paul. “No livro, determinei-me a confrontar o porquê.”

E o porquê é a incapacidade de compreender o poder do imaginário coletivo. A falta de plasticidade e inabilidade de criar um discurso que vá além dos factos e estatísticas e que toque no âmago da nossa experiência humana. 

“Os marxistas procuravam um fenómeno dentro do capitalismo, enquanto Fromm e Reich foram os únicos marxistas a perceber que [o fascismo] é um fenómeno dentro de toda a sociedade de classes. Nós, como marxistas, não temos apenas uma categoria chamada capitalismo, na qual existe uma luta de classes. Temos uma categoria mais ampla chamada 40.000 anos de sociedade de classes, na qual existem hierarquias.” 

Ainda hoje, adianta  Paul Mason, enquanto a esquerda professa “não querer viver numa economia”, os movimentos de extrema-direita oferecem às massas um aparente escape imediato, remunerando aqueles que sigam as suas regras de exclusividade e negligenciem a violência inerente à ideologia. 

Para explicar porque milhares de pessoas, tanto em meados do século XX quanto quase cem anos depois, se sentem atraídas pelo fascismo não obstante a sua brutalidade e rigor, Paul Mason parafraseia Fromm: “É o medo da liberdade.”

Nos anos que se seguiram à Primeira Guerra deram-se várias revoluções e revoltas pela Europa, muitas das quais trouxeram às classes trabalhadoras poder político. 

Em Itália, entre 1919 e 1920, vive-se o Biennio Rosso, que vê milhares de trabalhadores em greve e a ocupação de fábricas e vastas áreas agrícolas. Na Alemanha dá-se a revolução que põe fim à monarquia e instaura a República de Weimar. Estabelece-se a União Soviética que vem inspirar movimentos e anunciar todo um novo mundo de possibilidades. Para Paul, ao contrário do que expressa a análise marxista tradicional, o fascismo cresce vorazmente não da vontade por parte das classes capitalistas de “esmagar a classe trabalhadora” mas sim do medo que a população geral, incluindo muitos trabalhadores, tinham da utopia liberal. 

“Porque se tornaram milhões de pessoas fascistas e votaram em fascistas quando podiam ter votado em partidos populistas de direita perfeitamente aceitáveis? Porquê nos fascistas?” Paul faz uma pausa para efeito geral e na gravação da entrevista ouço-me, por momentos, a suspender a respiração. “Não foi porque tinham simplesmente que esmagar a classe trabalhadora. Foi porque tiveram um vislumbre da liberdade e temeram a liberdade.” 

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Mason num evento do Partido Trabalhista
Paul Mason num evento do Partido Trabalhista

“O que o Biennio Rosso em Itália deu à classe média italiana, e a existência do KPD [Partido Comunista Alemão], com os seus quatro milhões de votos, deu à classe média alemã, foi puderem ver a liberdade. E não a quiseram. Confrontados com a possibilidade do fim da República de Weimar, existem apenas dois resultados: comunismo ou fascismo. Isso é lógico.”

Para Paul Mason, Reich tinha razão: “As pessoas não percebem que para se ter liberdade é preciso conquistá-la.” A liberdade é algo desejado mas assustador pelo esforço que requer e responsabilidade que atribui. É mais fácil de digerir quando “dada por um homem poderoso”, aceite enquanto “uma forma de liberdade que é, na verdade, escravidão”.

Monstros Fantásticos e Como Enfrentá-los

Pergunto então a Paul Mason como vê os contornos do fascismo de hoje a formar-se. Afinal, o mundo mudou muito desde 1930. O capitalismo financeirizou-se no Ocidente. O poder de organização popular por meio de sindicatos ou grupos locais foi totalmente destruído pelo neoliberalismo dos últimos 40 anos, ao ponto da nossa conceção de soberania, de independência, ser altamente individualizada. Como se distinguem estes fascismos, tão diferentes e no entanto tão igualmente assustadores?

“Existem muitas diferenças. Número um: a burguesia. Não há lugar algum no mundo em que a burguesia precise do fascismo como solução. Número dois: Não há lugar algum no mundo no qual o fascismo, para já, queira tomar o poder.” Mas para que o leitor não se apazigue, Paul Mason acrescenta: “A estratégia é provocar uma guerra civil, étnica e global, pela qual acabemos por ficar com estados de tamanho continental, etnicamente puros.”

Ou seja, aquilo a que hoje chamamos de guerras culturais, nada mais é do que um primeiro passo na direção de mega-estados com populações homogéneas e governos despóticos e reacionários. 

“Atualmente, o projeto do fascismo é diferente. Quer colocar populistas de direita no poder. Um populismo de direita que facilitará o fascismo. O objetivo do projeto fascista a curto prazo é dificultar a destituição de populistas de direita, aumentando o preço em termos de violência.”

Como exemplo dá a invasão do Capitólio norte-americano a 6 de janeiro deste ano. Um ato violento que, se bem que fracassado, quis normalizar a insurreição armada como resposta à democracia liberal. 

Mas os EUA não são o único país onde a nova extrema-direita se vê já investida deste direito à violência. “É, aliás, o que vai acontecer quando ou se Bolsonaro for derrubado eleitoralmente”, diz em tom sóbrio. Prevê um cenário idêntico em Espanha, no dia em que um governo do Partido Popular apoiado pela extrema-direita do Vox perca contra forças progressistas. “O resultado será uma versão por toda a Espanha do que a Catalunha já tem. Isto é, a mobilização em massa de delinquentes fascistas para derrubar a vontade popular. Acho que é isso que enfrentamos.”

Para o autor britânico, a melhor arma que temos ao nosso dispor contra a direita populista, que não quer ainda chegar ao poder mas principalmente normalizar o seu pensamento e radicalizar as outras forças conservadoras a seu favor, é a frente única. Mas a aversão que a esquerda antifascista por norma tem à cooperação entre forças revolucionárias e reformistas, incluindo partidos social-democratas, aflige-o. 

Quando lhe pergunto se receia que no século XXI a esquerda volte a cometer os mesmos erros que cometeu no século XX, responde: “O que me preocupa mais é fracassar em fazer o outro lado do trabalho árduo, percorrer os quilómetros que precisamos de percorrer. Isto é, aceitar que a única coisa que deteve o fascismo nos anos 1930 foi a Frente Popular.” 

Depois de cinco anos atribulados de Segunda República, marcados por consecutivas crises políticas e pela expansão do falangismo, uma coligação de partidos socialistas, comunistas, marxistas-libertários e republicanos venceu as legislativas espanholas de 1936. O governo da Frente Popular não só implementou uma série de políticas progressistas, como puniu muitos dos líderes fascistas, atrasando o seu controlo sobre as forças armadas espanholas. Foi um governo popular, apoiado até por forças independentistas e anarquistas, mas durou pouco tempo devido ao golpe de Estado que em julho de 1936 desencadeou a Guerra Civil. 

Paul Mason dá também o exemplo da outra Frente Popular, a liderada por Léon Blum. “Em França, no mesmo período, havia o Partido Radical e os seus vários ramos, mais o Partido Socialista, mais o Partido Comunista. E quando sabemos como eram terrivelmente hostis… foi uma grande conquista. Podemos dizer, ‘OK, deu errado’, mas sem esse acordo não teria havido governo de esquerda em 1936.” A Frente Popular francesa dura mais tempo que a espanhola e implementa reformas laborais que são hoje consideradas por muitos como direitos básicos, entre eles o direito à greve, a jornada de oito horas, e dias de férias pagos. 

Mas mais do que progredir a causa operária, Paul Mason insiste que foi no campo de batalha antifascista que estas alianças sui generis fizeram a diferença. “Lembremo-nos do que esses governos de esquerda fizeram. O governo da Frente Popular [em França] proibiu o fascismo, dissolveu as ligas.” Paul empolga-se ao recordar que a 14 de julho de 1935 milhares de pessoas prestaram o juramento da Frente Popular. Um juramento que dizia:

“​​Juramos permanecer unidos para defender a democracia, para desarmar e dissolver as ligas facciosas, para colocar as nossas liberdades fora do alcance do fascismo.”

Haverá quem lhe diga que as Frentes Populares não impediram a subida do fascismo ao poder, que em Espanha durou desde a Guerra Civil até à morte de Franco, e em França desde a ocupação alemã em 1940 até ao fim da Segunda Guerra Mundial. Se as Frentes Populares foram falíveis no século XX, pouco poderão fazer num século em que os obstáculos são ainda maiores, tais como a baixa filiação sindical e a propagação rápida e irrestrita da desinformação. Paul pergunta-me o que teria acontecido nos Estados Unidos se  Donald Trump tivesse sido eleito para um segundo mandato, se não tivesse havido uma convergência das forças de esquerda à candidatura de Joe Biden. 

“Qualquer pessoa que pense que a Frente Popular foi uma espécie de fraqueza, de desastre reformista, de colaboracionismo de classes, precisa de responder à pergunta ‘Como vamos nós fazer de outra forma?’” E a pergunta fica ameaçadoramente suspensa no ar.

Pede-me para olhar para o caso por outro ângulo. “O que a esquerda ganhou com a Frente Popular? Sobretudo, conseguiu-se um movimento de massas.” Se o mundo como o conhecemos está a acabar - com o fim do neoliberalismo, a chegada do colapso climático, e o “monstro do fascismo à porta” - “temos que largar o que estamos a fazer e fazer algo novo.” O que o movimento antifascista tem que começar por fazer é criar uma visão não só comum mas radicalmente diferente da realidade presente. 

“A Frente Popular é o que precisamos hoje. Eram pequenos comitês em cada cidade – comitês de assembleia popular, como eram chamados – que substituíram os ramos e as estruturas de todos os partidos. Era frequentemente a primeira atividade na qual os membros radicais do partido participavam.” Para Mason esta é a melhor estratégia. Grupos comunitários, de gestão fácil e muitas vezes horizontal, que permitam tanto o debate e o planeamento estratégico, como a produção cultural. 

“As pessoas de repente puderam ver um novo mundo, sejamos claros, de uma forma que nunca poderiam quando sentados numa célula do Partido Comunista em Saint Dennis.” E se numa qualquer reunião da Secção Francesa da Internacional Operária no interior rural o novo mundo da solidariedade e progresso, do socialismo e da paz “lhes parecia distante, de repente há Picassos na exposição [de Paris de 1937]. O Novo Mundo parece próximo”. Esta imagem, de um coletivo que se reúne não só para debate e organização política mas também para sonhar acordado, é o que dá a Paul Mason a força e a convicção. “Acho que o meu otimismo surge de, se lutarmos corretamente contra o fascismo, iremos desbloquear toda a situação.”

O imaginário coletivo enquanto reivindicação humanista

“O que podemos aprender com isto é que temos que lutar por algo iminente. E o antifascismo permite-nos fazer isso”

Voltamos então às demandas imediatas, à luta presente e à “exigência por um estatuto humano”.

“Lembro-me sempre do significado filosófico dos cartazes que as pessoas carregavam durante a greve em Memphis, quando Martin Luther King Jr. foi assassinado.” O slogan dos protestos associados à morte de dois trabalhadores negros do Departamento de Obras Públicas de Memphis em 1968 foi “I am a man” (Eu sou um homem). Era uma afirmação que não só refutava o paternalismo da supremacia branca, que insistia em chamar os homens negros de “boy” (rapaz), mas também que anuncia a existência e aclama a subjetividade humana. Ou, como diz o Paul, “é algo cujo poder acho estar em marcante contraste com a impotência da esquerda quando não se enraíza em corpos humanos.”

Paul Mason está ciente que a sua candura é controversa. Mas aos 61 anos isso não o incomoda, insistindo que o importante é abrir caminho para um novo antifascismo. Um antifascismo que se concentre tanto nos paradigmas socioeconómicos como nos enredos do comportamento humano. 

“Estou muito feliz por ser tão impopular quanto Wilhelm Reich foi. Quero ser tão impopular quanto Reich foi porque Reich estava certo”, diz antes de nos despedirmos. “Se formos com toda essa parvoíce pós-modernista nunca vamos alterar o curso da história.”