Protesto Irão

Nahid Sanganian: “Não é um protesto, é uma revolução"

Nos últimos meses, o Irão tem sido palco de uma série de protestos contra o assassinato da estudante curda Jima Mahsa Amini. O Setenta e Quatro conversou com Nahid Sanganian, iraniana residente em Portugal, sobre o significado desta nova vaga de contestação popular.

Entrevista
8 Dezembro 2022

Desde setembro que o mundo acompanha atentamente as manifestações no Irão em sequência da morte de Jima Mahsa Amini. A estudante de 22 anos foi assassinada pela polícia por vestir calças consideradas justas demais e por não usar o hijab, o véu islâmico, de forma correta. É provável que antes de Mahsa Amini tenham existido milhares de mulheres e meninas com o mesmo triste destino, assassinadas pelo Estado por motivos igualmente fúteis. No entanto, não é possível saber exatamente quantas, pois os números não são divulgados.

A morte de Mahsa Amini ganhou destaque mundial por conta da coragem das jornalistas Niloofar Hamedi e Elahe Mohammadi. No momento, as duas se encontram presas com possibilidade de serem condenadas à morte. Segundo o comunicado das autoridades iranianas, as duas são acusadas pelo Ministério da Inteligência de serem espias treinadas pela CIA. A Reporters Without Borders estima que 43 jornalistas tenham sido presos pelo regime desde setembro – entre estes, 35 continuam atrás das grades.

Este não é o primeiro grande protesto de grandes dimensões que ocorre no país nos últimos anos. Em 2019, os chamados “protestos do petróleo”, feitos majoritariamente pela classe operária que demandava melhores condições de trabalho, resultaram em milhares de mortes e outras milhares de prisões políticas. O Movimento Verde surgiu em 2009 após as eleições presidenciais e era composto pelas classes média e alta de Teerão – ainda assim, centenas de pessoas foram presas ou foram assassinadas.

O governo teocrático do Irão chegou ao poder em 1979. No início, era uma revolução popular que almejava o fim do ditador Reza Xá Pahlavi. A ditadura, apoiada pelos Estados Unidos, era caracterizada pela exploração dos trabalhadores e pelo controlo estrangeiro do petróleo. Mas a revolução vitoriosa não trouxe a liberdade nem as condições dignas de trabalho almejadas, e sim os ideais do líder xiita Ruhollah Khomeini.

Agora, os protestos parecem ter resultado, uma vez que há a possibilidade de o governo acabar com Polícia da Moralidade, responsável pela prisão e morte de Mahsa Amini – ativistas, no entanto, permanecem céticos que esta medida seja aplicada na prática.

O Setenta e Quatro conversou com Nahid Sanganian, iraniana residente em Portugal. Nahid tem 34 anos e cresceu em Teerão, onde se licenciou. A viver em Portugal há cinco anos, é hoje mestranda em Turismo e Hotelaria. Para ela, não há motivos para comemorar o fim da Polícia da Moralidade. “É apenas propaganda do regime para acalmar os ânimos da revolução. Eles não vão acabar com a Polícia da Moralidade porque o Islão e a obrigatoriedade do hijab são essenciais para uma ditadura teocrática. E, mesmo que seja verdade, queremos mais do que isso, queremos o fim do regime, queremos a democracia.”

Porque decidiu sair do Irão?

Há oito anos emigrei sozinha para a Europa, primeiro para a Noruega, por três anos, e depois para Portugal. É uma situação complicada e paradoxal ser uma mulher que reside no Irão. A maioria das mulheres iranianas tem educação formal e estão no mercado de trabalho, mas não têm quase nenhum direito. Não podem escolher o que vestir, precisam de permissão do marido para trabalhar, estudar e tirar o passaporte, não podem pedir o divórcio, e caso se divorciem, não podem ficar com as crianças. Então, por um lado, são independentes, frequentam as universidades, mas enfrentam inúmeras proibições.

Eu não poderia tolerar viver dessa forma, e, quando tiver filhas, não quero que elas vivam desse jeito. Pensei: só tenho uma vida, uma oportunidade, preciso de viver da forma como acredito, e não acredito que preciso cobrir o meu corpo para sair de casa. Nem acredito nisso, pois não sou religiosa, nem a minha família é religiosa. No Irão, eu não podia sequer cumprimentar os meus amigos homens. Então foi preferível enfrentar os desafios da emigração do que continuar no meu país de origem.

Qual foi a sua reação inicial com a morte de Jina Mahsa Amini?

Fiquei muito triste, fiquei muito impressionada, mas não surpresa, porque não é a primeira vez que acontece. Na realidade, eu e milhares de outras meninas podíamos ter tido o mesmo destino de Jina Mahsa Amini. As meninas gostam de moda, querem usar roupas modernas. Mas pode virar um problema se um oficial achar que o véu não está posto de modo apropriado. Os polícias são muito violentos, parece que não têm coração, empatia humana.

Eu já fui apanhada pela Polícia da Moralidade, há quase uma década. Tinha 24 anos, estava com uma amiga, e alguns botões do meu uniforme não estavam fechados. A família da minha amiga é muito tradicional e religiosa; a minha não. Nós pedimos muitas desculpas, não parávamos de pedir desculpa, tudo isso por um crime que não cometemos, não tínhamos feito nada de errado. Pedi desculpa mesmo sem acreditar naqueles fundamentos. O que aconteceu com Jina Mahsa Amini é uma discriminação sistemática que todas as mulheres iranianas sofrem há mais de quarenta anos, desde o início deste regime teocrático.

Porque essa morte em específica foi o rastilho para as manifestações?

Não sabemos quantas outras mulheres e meninas tiveram o mesmo destino de Jina Amini. O caso dela virou público porque uma jornalista mulher muito corajosa foi ao hospital, escreveu sobre o assunto, e publicou. Os outros casos não são conhecidos do público, somente este, em específico, e agora a jornalista está presa, com risco de ser executada. A morte de Jina Amini foi só a gota d’água. Os iranianos estão cansados do regime, e de toda a discriminação, opressão e violência. Este não é a primeira manifestação. Em 2019, durante os protestos do petróleo, mataram 1500 pessoas em três dias. É um genocídio, usam o nosso dinheiro para nos controlar, nos oprimir, nos matar. Nos anos anteriores também tiveram outros protestos, por outras razões, porque há muitas razões para protestar.

Qual é a diferença entre esse protesto para os protestos anteriores, como os de 2019 ou mesmo os de 2009?

A única classe que não está envolvida nos protestos atuais é aquela que está no poder no regime islâmico. A maioria das pessoas está envolvida: os trabalhadores, os universitários, os artistas, os médicos, os cineastas, as atrizes e os atores. Não é um protesto normal, é uma revolução, tem todos os elementos de uma revolução. Nós queremos que o mundo entenda que são muitos motivos, muitas demandas, porque queremos que o regime mude, não queremos uma ditadura teocrática.  

Qual a influência da economia nos protestos?

É sobre tudo. O Irão é um país rico, com muitos recursos, os iranianos são abertos, trabalhadores, extremamente educados, mas o governo criou uma imagem que parece que o povo iraniano é religioso e extremista. O slogan da revolução é: mulheres, vida e liberdade. No caso, quando falamos de mulheres estamos a falar de todas as minorias que são oprimidas e tidas como inferiores pelo governo. O Irão tem muitas comunidades e etnias com menos direitos que o resto da população, como os curdos, os árabes, os azeris, os baluchis e os bakhtiaris.

Os azeris, por exemplo, não têm direito a falar a sua língua materna. A província que tem o petróleo é o Cuzestão [província no Irão], mas o povo que lá vive não tem nem água potável. Os balushis também não tem água, nem gás nem eletricidade, e também não há escolas. A comunidade LGBT é completamente ignorada. O governo diz que não há gays no Irão! Quando pedimos direitos para as mulheres, estamos a pedir direitos para toda a camada da população que é excluída de viver uma cidadania plena.

Qual é o papel das sanções económicas feitas pelos Estados Unidos?

O regime quer adotar a narrativa de que os protestos são por causa das sanções, assim eles não precisam revolver as questões dos direitos humanos. A economia faz parte, mas não é só isso. O governo não se preocupa com a economia, a sua única preocupação é o Islão. O Irão é um país muito rico, com muito petróleo, mas está sempre em guerra, e essas guerras interessam somente ao regime. Enquanto isso, a maior parte da população vive abaixo da linha da pobreza. O trabalhador não tem acesso à enorme riqueza natural do país. A questão nuclear é importante para o regime, mas não para a população, que é pacífica. Quem tem inimigos é o governo, e isso atrapalha a população.

Foi notícia no dia 4 de dezembro de 2022 que o governo iria acabar com a Política da Moralidade. Caso seja verdade, o que essa notícia representa para as mulheres e minorias iranianas?

Não acredito que vão acabar com a Polícia da Moralidade. É apenas propaganda do regime ditatorial para desmobilizar os protestos e manter uma boa imagem diante da comunidade internacional. O hijab é a base ideológica da teocracia islâmica. Nós queremos mais que o fim da Polícia da Moralidade, mais que o direito de escolher roupas. Nós queremos democracia. 

Como analisa as futuras possibilidades?

O atual regime é ruim para todo mundo, até para os homens, que não podem beber, não podem comer porco – a maioria da população é muçulmana mas existem milhões de pessoas que não o são. Imagine que um pai não pode ver a filha na aula de natação. Eu trabalhava como guia turística e via como o governo criava dificuldades para os turistas. Quem vai querer gastar dinheiro visitando o Irão? Eles também não podem beber álcool porque as proibições também incluem os turistas. O Irão tem muito potencial, mas infelizmente tem imensas limitações.