Trans

Júlia Pereira: Um setor do feminismo deixou de se focar nos direitos das mulheres para atacar as pessoas trans

A ativista em direitos trans denuncia que certas feministas têm criado pontes com a extrema-direita na perseguição a pessoas trans. Ainda assim, tem havido progressos na sensibilização para os problemas das pessoas trans, na desconstrução das normas associadas aos papéis de género e no aprofundamento dos direitos trans.

Entrevista
24 Agosto 2023

As questões sobre identidade de género têm-se tornado cada vez mais visíveis no espaço público. Foi em 2018 que se cumpriu em Portugal um marco com a aprovação da lei da autodeterminação de género: a partir dos 18 anos (ou aos 16 com autorização dos tutores legais), uma pessoa pode mudar de nome e sexo no registo civil, conforme a sua vontade informada.

A progressiva visibilidade das pessoas trans através do ativismo, da arte ou do desporto tem resultado em debates e polémicas sobre o género, o que significa ser mulher e os direitos das pessoas trans. Dentro do feminismo têm surgido correntes que veem as pessoas trans, nomeadamente as mulheres, como ameaça e a expressão “ideologia de género” tem sido usada para denunciar uma agenda alegadamente perigosa.

Júlia Pereira é ativista pelos direitos trans da Associação Anémona, cujo trabalho se tem focado na formação de profissionais de saúde para lidar com pessoas trans, e da Associação pela Identidade, que tem como objetivo a defesa e o estudo da diversidade de género. Foi também a primeira mulher trans dirigente de um partido político em Portugal e a primeira a disputar eleições: integrou as listas das legislativas de 2015 do Bloco de Esquerda.

A ativista vê como positivo o progresso que tem sido feito nos últimos anos na visibilidade, sensibilização e conhecimento das experiências e vidas das pessoas trans, mas denuncia um setor do feminismo que, com essa visibilidade, se tem tornado progressivamente mais conservador, assumindo uma posição contra as pessoas trans. Há, argumenta, um discurso massificado que “quer empurrar as pessoas para fora dos estilos de vida que até agora eram estilos de vida exclusivos das pessoas cisgénero”.

Sobre a lei da autodeterminação de género, Júlia Pereira entende que, apesar de muito importante em teoria, ainda falta cumpri-la na prática. Instituições como as escolas, o Serviço Nacional de Saúde ou a Segurança Social ainda não reconhecem o nome pelo qual as pessoas se identificam. “O que falha é não haver formação sobre as questões LGBTI, e as questões trans em particular.”

Dependemos de quem nos lê. Contribui aqui.

Nas Jornadas Mundiais da Juventude, uma jovem com a bandeira trans foi confrontada por peregrinos que lhe disseram que não poderia estar ali com ela. Mas o Papa Francisco disse que as pessoas trans eram também filhas de Deus e que a Igreja é de todos. As suas palavras podem mudar alguma coisa na forma como a sociedade vê as pessoas trans?

Este evento católico, que é para um segmento específico da população, invadiu também outros setores. Vimos as Jornadas na televisão, nos jornais, na rua, um pouco por todo o lado. Foi mainstream e tudo o que lá se passou foi discutido e acabou por influenciar a sociedade.

Houve ativistas que levaram a bandeira e reivindicaram o seu espaço e isso fez com que o Papa fizesse aquele comentário. Parecia uma conversa interna e paralela, mas estava obviamente a dar uma resposta direta a algo grave. Foi viral nas redes sociais e os telejornais falaram sobre isso. O Papa é uma figura influente e por isso as palavras dele vão ter impacto em muita gente, até dentro de setores mais católicos e conservadores, onde é mais difícil esta mensagem chegar. Portanto, não deixa de ser positivo.

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Júlia Pereira
Júlia Pereira critica o facto de vivermos numa sociedade e espaço público que não estão preparados para pessoas não-binárias.

Tem perspetivas de que a Igreja possa ser mais acolhedora para as pessoas LGBTI, em particular as pessoas trans? 

Não sei. Não estou no lugar de responder, porque não sou católica. Há pessoas LGBTI católicas que estão a fazer essa luta e têm o meu apoio. Se é a fé delas e é o espaço que querem ocupar, é ótimo levarem elas a causa LGBTI e conseguirem conquistas. 

A visibilidade das pessoas trans nos media e no discurso público tem sido maior. Isso tornou a transfobia mais notória?

Não. Quando as pessoas trans se tornam mais visíveis, a transfobia e os transfóbicos também se tornam. Não sinto que haja um exponenciar da transfobia por estarmos mais visíveis. Pelo contrário, penso no quão sensibilizadas as pessoas estão a ser  sobre as vidas, experiências e necessidades das pessoas trans. Quem é transfóbico já o era antes e também vai querer ocupar um espaço público e falar sobre isso, mas também não queremos esconder os nossos opositores. Queremos enfrentá-los.

A expressão “ideologia de género” tem sido usada pela extrema-direita, que denuncia uma agenda que diz ser uma suposta ameaça, sobretudo para as crianças. Por que é tão controverso falar sobre género?

Porque põe em causa estruturas dadas como certas na sociedade e que são opressivas, e por isso é preciso falar sobre elas.

Que estruturas? 

A estrutura patriarcal, a estrutura capitalista, estas estruturas opressivas que ainda moldam a nossa sociedade, sobretudo a primeira. Há uma ideia de género binário, de que o género atribuído à nascença é aquele que a pessoa tem até ao final da sua vida, e esquece-se a arbitrariedade em que essas estruturas se baseiam.

A sociedade tem de desconstruir os papéis associados a cada género? 

Sem dúvida. É uma reivindicação que vem tanto do movimento trans como do feminismo: a necessidade de repensar estereótipos e de desconstruir papéis de género. É algo que não tem de ser só pela vivência e experiência das pessoas trans, mas por todas as pessoas.

De que forma é que esses estereótipos condicionam a expressão e a vivência das pessoas? 

De várias formas. Os estereótipos são imensos e aplicam-se a várias áreas da vida. No fundo, acabam por ser estes modelos pré-definidos que dizem como é que uma pessoa tem de ser. Cria-se um guião e uma narrativa para a vida que tem de ser seguida estritamente. Muitas pessoas não se sentem tão bem nem atingem tanta realização por causa disso. Devemos ser nós a construir o guião do nosso próprio filme.

Mesmo pessoas que possam não fugir da norma na forma como se expressam estão condicionadas pela construção social que existe sobre os papéis de género?

Sempre. Mais do que a expressão de género estamos a falar sobre os papéis de género, que são guiados a partir destes estereótipos e que podem ser tão simples como a ideia de que as mulheres devem ter um determinado grupo de profissões e os homens outras.

Isso afeta mais as pessoas trans por haver uma desidentificação com o seu género, mas também existe o contrário. Uma mulher trans não vai necessariamente identificar-se com os estereótipos atribuídos a uma mulher: a ideia da feminilidade, o querer ser uma pessoa intrinsecamente cuidadora… Há todo um conjunto de estereótipos relativos à maneira de vestir, à maquilhagem,  e isso acaba por ser uma dificuldade extra. Há a ideia de a mulher trans hiperfeminina ser aceite por ser considerada mais mulher que as mulheres. Isso é extremamente violento.

Quando fazem essa transição, as próprias pessoas trans estão sujeitas à própria norma com o género com o que se identificam?

Sem dúvida. Muitas vezes é com base nesse estereótipo que as TERF [Feministas Radicais Trans Excludentes] constroem o discurso sobre as mulheres trans: a ideia de que estamos a reforçar e a replicar os papéis de género vigentes. Isso não é verdade.

A sociedade ainda invisibiliza quem foge à norma binária de género?

Sim. Muitas vezes aparece algo com visibilidade, como sítios em que a casa de banho é neutra, mas acabam por ser situações isoladas. De forma geral, continuamos com uma sociedade e um espaço público que não é adaptado para pessoas não-binárias. Isso vê-se nas casas de banho, mas também em todos os espaços que de alguma forma sejam genderizados sem necessidade.

O conceito de género e a vivência das pessoas trans põe em causa a ideologia propagada por um setor da direita?

Devemos recusar essa narrativa da direita conservadora e da extrema-direita. A ideia da família tradicional é um modelo que existe e deve ser mantido. Essas famílias existem e ninguém está contra esses modelos, mas existem outros modelos de família, de ser e de existir que estamos a querer visibilizar. Há espaço para essas famílias serem reconhecidas porque existem. Muitas vezes parece que só existe a dita família tradicional e que estamos a querer inventar algo, pensar em formas alternativas e impor isso na sociedade. Há quem até use o termo engenharia social.

“Uma mulher trans não vai necessariamente identificar-se com os estereótipos atribuídos a uma mulher: a ideia da feminilidade. Há a ideia de a mulher trans hiperfeminina ser aceite por ser considerada mais mulher que as mulheres. Isso é extremamente violento."

Mas isto vem das experiências de vida das pessoas. Queremos visibilizá-las, trazer reconhecimento para que haja espaço para existirem em segurança e saúde. Parece um debate sociológico e jurídico, mas é mais profundo que isso. É a possibilidade de pessoas reais estarem em sociedade.

A extrema-direita alega que mulheres trans estão a invadir os espaços das mulheres cis, como casas de banho, balneários ou até lugares em competições desportivas. Isto tem alguma conexão com a realidade?

Não. Se virmos situações concretas, é muito fácil ver que são polémicas inventadas. Não estamos a querer abrir as casas de banho das mulheres cis para as mulheres trans. Temos casas de banho divididas entre homens e mulheres e isso exclui uma grande parte da população trans, sobretudo jovens.

Partilho a minha própria experiência quando era uma jovem trans e ainda não tinha feito a afirmação de género. Evitei ao máximo ir à casa de banho porque tinha de ir à dos rapazes, e aí sim, era um espaço de violência real e concreta. Era agredida e violentada de várias formas dentro daquela casa de banho por rapazes cisgénero. Se tivesse tido a possibilidade de ir à outra casa de banho, não sei se as raparigas cis não poderiam ser violentas comigo.

Muitas vezes procuram-se aqueles vídeos de casos de uma pessoa supostamente trans que invadiu uma casa de banho das mulheres cis para as violar, mas se quisermos fazer a pesquisa ao contrário encontramos muitos registos de mulheres trans que vão à casa de banho fazer necessidades e que foram violentadas de forma agressiva por outras mulheres cis. 

As mulheres trans estão a roubar espaço às mulheres cis no desporto?

Não. Tinha de haver uma enchente de mulheres trans a tornarem-se desportistas e competidoras para podermos estar a falar sobre isso. O que está a acontecer de forma muito pontual, acompanhando os direitos que vão sendo adquiridos, é que algumas mulheres trans que são desportistas, e muitas já o eram antes, têm a possibilidade de o serem, fazer desporto e competir a partir do momento em que fazem a sua transição.

Isto é algo natural, e ninguém está a pressionar ou a querer que as pessoas trans se tornem desportistas e que haja ali uma frente de luta. Existem algumas pessoas que, sendo desportistas e querendo competir, estão a exercer o seu direito enquanto mulheres reconhecidas como tal. Há mulheres que estão a participar em competições, algumas com sucesso e outras com menos. Isso devia ser a base do desporto de competição.

Esta questão tem sido um dos aspetos sobre as pessoas trans que tem criado muita polémica. Porquê?

Porque o reconhecimento legal das pessoas trans e o aparecimento de políticas que permitem às pessoas trans serem e existirem num paradigma de igualdade, embora limitado, é algo muito recente.

Antes dos anos 2000, um ou dois países tinham algum tipo de legislação e cobertura concreta para as pessoas trans. É uma questão geracional. É preciso haver esse reconhecimento e novas gerações viverem esses direitos para começarem a surgir em setores da sociedade em que antes não apareciam.

Não há nenhum movimento de massas trans a querer invadir o desporto, como pessoas TERF querem fazer crer. Não há um movimento de homens cisgénero a querer invadir as competições femininas reivindicando-se como mulheres que não o são. Por serem casos isolados tornam-se extremamente visíveis. Isso vê-se no desporto, na política, nas artes… Porque era de esperar que todas essas pessoas trans, mesmo com esse reconhecimento, se mantivessem nos guetos sociais para os quais continuam a ser empurradas.

Mais do que esta falsa questão de se estar ou não a roubar esse espaço, ou se as mulheres trans têm o direito de competir com outras mulheres, o que está em voga é um discurso massificado, de pessoas que nem são do desporto nem têm interesse real nele que querem empurrar as pessoas para fora dos estilos de vida que até agora eram exclusivos das pessoas cisgénero.

O movimento feminista tem-se fraturado por correntes que não reconhecem a identidade de pessoas trans, nomeadamente as das mulheres trans. Porque há tanta dificuldade em incluir estas mulheres no feminismo?

Essas fraturas não são recentes. Desde a origem do movimento feminista que há fraturas: entre mulheres cis e mulheres trans, entre mulheres brancas e mulheres negras, e tudo isso tem marcado a evolução do feminismo.

A questão trans acabou por vir um pouco nessa senda, no sentido de haver um espaço para um debate sobre identidade e sobre o que é ser mulher. Muitas vezes são essas feministas essencialistas que querem defender uma ideia muito fechada sobre o que é ser mulher, sendo transfóbicas e também machistas.

Essas feministas querem definir uma mulher como uma mulher branca, de classe média alta, cisgénero, que encaixe de melhor forma no sistema capitalista, patriarcal e supremacista [branco]. É preciso perceber que isto não é uma tensão que se está a criar pelas mulheres trans serem mais visíveis, não é uma coisa nova.

O ativismo trans quer criar essas pontes com o feminismo, porque isso é o mais importante para qualquer luta contra a opressão e o conservadorismo: a capacidade de se criarem alianças e espaços comuns. Esse é o objetivo final.

O que é que o movimento feminista podia aprender mais com as pessoas trans? 

Não só podia como tem acontecido. O movimento transgénero tem ajudado o feminismo a compreender de forma ainda mais profunda o que é o género, a ter outras ferramentas para combater o machismo e o patriarcado. Isso está a acontecer.

De um ponto de vista teórico, Simone de Beauvoir e outras feministas desenvolveram a distinção entre sexo e género, mas é o movimento transgénero que a partir dessa distinção está a permitir compreender mais profundamente o que é o género. Também temos as pessoas intersexo e o movimento LGBTI que ajudam a compreender melhor o que é o sexo.

A partir dessa compreensão estamos a conseguir criar novas ferramentas com todas as políticas públicas concretas. As legislações são muitas vezes vistas como algo que abafa a igualdade de género, mas são políticas que aprofundam esses direitos e permitem compreender novas dinâmicas de discriminação e violência.

“Quando era uma jovem trans e não tinha feito a afirmação de género, evitei ao máximo ir à casa de banho porque tinha de ir à dos rapazes. Era agredida e violentada. Se tivesse tido a possibilidade de ir à outra casa de banho, não sei se as raparigas cis poderiam ser violentas comigo.”

Como tem sido a evolução das pontes entre o ativismo trans e o feminismo? 

As pontes têm sido difíceis de criar e vão surgindo devagarinho. Todas estas questões sobre os estereótipos, os papéis de género e as normas fazem parte do feminismo desde a sua origem. Se lermos as primeiras pensadoras feministas vemos que essas preocupações, como a questão do acesso à educação, já lá estão, e isso vai ao encontro do que se fala em termos de normas.

Nos anos 1970, a nível internacional, começou a definir-se um setor dentro do movimento feminista que se despreocupou da reivindicação dos direitos das mulheres, para se virar para um reacionarismo contra pessoas trans. Em Portugal, isso está a acontecer nos últimos anos.

A luta pelos direitos das mulheres, mas acima de tudo a definição do feminismo, é a luta pela igualdade entre géneros. Isto deve incluir todos os géneros além do feminino e do masculino. Não estamos a lutar por um ideal e por uma figura de mulher, mas para que as pessoas possam viver em igualdade no que respeita ao género.

As pessoas trans estão no movimento feminista desde a sua origem. Os movimentos críticos é que aparecem depois e distanciam-se do ideal feminista. Parece que se deixaram de preocupar com a igualdade para se preocuparem com o reacionarismo.

E em Portugal? 

Em Portugal vamos vendo que estes setores, embora se apresentem como progressistas enquanto feministas, continuam a ter esse discurso. E não são apenas mulheres. Existem homens que se dizem feministas e são TERF, e extremamente ativos nesse reacionarismo.

Muitas vezes são pessoas que se identificam com a esquerda política e movimentos progressistas, mas há a criação de alianças muito fortes e explícitas com a direita conservadora e a extrema-direita. É muito fácil ver esta ligação direta nesta postura de exclusão das pessoas trans.

Há muitas linhas em comum e pré-disponibilidade, de parte a parte, para trabalhar em conjunto, o que não seria expectável. Muitas vezes não se cruzam nem assumem essas identificações noutras áreas, mas nesta identificam um inimigo comum.

Que outros mitos sobre as pessoas trans é preciso desconstruir?

São imensos. Por exemplo, a forma como ainda se representam as pessoas trans [nas artes]. Temos grandes exemplos, como quando  a Keyla Brasil “invadiu” o palco  de um teatro e fez parar uma peça. O exemplo do transfake [representação de uma personagem trans por artista cis] está muito na proa e é uma situação que já identificamos há muito tempo.

Outro exemplo, voltando à Jornada Mundial da Juventude: quando pesquisei por essa notícia, vi que a repercussão foi muito maior no Brasil que em Portugal. Ficou claro que os media brasileiros estavam alinhados com o que o próprio Papa disse, que as mulheres trans existem e que são amadas por Deus. Ele usou a expressão mulheres e a imprensa brasileira repercutiu isso. Já a imprensa portuguesa abafou a feminização do discurso, as mulheres trans tornaram-se pessoas trans.

“Não há nenhum movimento de massas trans a querer invadir o desporto, como pessoas TERF querem fazer crer. Não há um movimento de homens cisgénero a querer invadir as competições femininas reivindicando-se como mulheres que não o são.”

Há um problema da comunicação social portuguesa com as pessoas trans? 

Sem dúvida. Os nossos órgãos de comunicação social são extremamente transfóbicos. É uma coisa sistémica e há pouca vontade de mudar. Claro que nem todos os jornalistas têm conhecimento para isso. Acredito que nenhuma escola de comunicação social tenha formação sobre questões LGBTI ou de género.

Também percebemos que há jornalistas que, nas redações, enfrentam chefias ainda mais conservadoras e transfóbicas, e muitas vezes as diretivas vêm da mais alta direção. Sabemos quem controla estes órgãos de comunicação social e que não permitem que o debate seja feito adequadamente, que se comunique de forma correta sobre as pessoas trans.

Em 2018 foi aprovada a lei da autodeterminação de género, que estabeleceu o direito à autodeterminação da identidade e expressão de género e a proteção das características sexuais de cada pessoa. Qual é a importância desta lei? 

Foi uma lei que trouxe reconhecimento base para as pessoas trans, bem como para as pessoas intersexo. Trouxe coisas muito básicas e que deveriam ser direitos inquestionáveis e garantidos de forma natural, mas que os Estados modernos contemporâneos não estão a garantir.

No contexto português, vem dos próprios movimentos trans, intersexo e de pessoas diversas em termos de género. Já era uma reivindicação desde a origem da politização do movimento trans. Reivindicávamos uma lei que despatologizasse as nossas identidades e que garantisse a nossa autodeterminação.

Houve outra lei pelo caminho, a de 2011, que foi importante. Permitiu que as pessoas trans mudassem o seu documento de identificação, mas com base num diagnóstico médico. Tinha de haver uma terceira parte a avaliar a identidade das pessoas trans com base num diagnóstico de saúde mental. O que sempre exigimos foi que a nossa autodeterminação e vontade esclarecida e informada de querer ter os nossos documentos de acordo com a nossa identidade fosse o suficiente para que os tivéssemos.

Esta lei é um bocado agridoce porque as coisas não acontecem como deveriam. É necessário que esse reconhecimento se reflita em todas as instituições no que diz respeito ao reconhecimento do nome e género das pessoas. A lei foi redigida de forma abrangente e explícita sobre a necessidade do nome social ser reconhecido independentemente de haver uma mudança na certidão de nascimento ou cartão de cidadão.

Temos pessoas imigrantes que vivem em Portugal e que não têm cartão de cidadão, mas que precisam desse reconhecimento para terem mais qualidade de vida e estarem de forma mais inclusiva e saudável dentro do nosso espaço. Todas essas pessoas ficaram de fora.

Além da questão das pessoas trans imigrantes, de que forma a lei poderia ter ido mais longe?

O que é preciso é mais assertividade da parte do governo em garantir que entidades como o SEF cumprem a lei. É preciso garantir que todos os documentos emitidos em Portugal para pessoas trans e que vivem cá estão conforme o seu nome social. Nem precisaríamos de outra lei porque a base jurídica está lá.

É algo que se repete tanto para pessoas imigrantes como para todas as outras. Entidades como a Segurança Social ou o Serviço Nacional de Saúde resistem em reconhecer o nome social das pessoas. Outra parte que a lei também deixa clara é que não são só as entidades públicas que devem fazê-lo, mas também as privadas. 

E se as entidades públicas não estão a cumpri-lo, e não foram criados os guias necessários para garantir a implementação correcta, então as entidades privadas resistem ainda mais.

Foi aprovada este ano, em Espanha, uma lei que permite aos jovens a partir dos 16 anos mudar de género sem autorização dos país, e entre os 12 e os 14 anos com autorização de um juiz. Portugal devia seguir o mesmo caminho? 

O caminho espanhol é melhor que o português. Preferíamos esse, mas a minha referência é o modelo que temos em Malta: não tem limitações de idade e qualquer criança em qualquer idade pode ver o seu género reconhecido. Esse devia ser o modelo em todos os países.

É uma solução jurídica mais difícil e técnica, mas é muito importante que nos casos em que os tutores legais não a aceitem, haja mecanismos que garantam que o direito não é posto em causa. Isso é algo que devíamos aprofundar em Portugal.

“Nos anos 1970, começou a definir-se um setor dentro do movimento feminista que se despreocupou da reivindicação dos direitos das mulheres para se virar para um reacionarismo contra pessoas trans. Em Portugal, isso está a acontecer nos últimos anos.”

Quais são as dificuldades vividas por uma pessoa trans quando se assume nos seus círculos sociais?

São várias e diversas de acordo com a vivência de cada pessoa e a sua individualidade. Falámos sobre o ponto de partida da autodeterminação de género, mas algo que também tentamos sensibilizar (e está impresso na lei) é a questão da educação e da saúde.

A questão da educação é a que tem dado mais confusão. As próprias medidas administrativas que o governo acabou de emitir foram revogadas porque as alas da direita conservadora conseguiram levar isto para o Tribunal Constitucional. Agora, estão em debate no parlamento.

Dou este contexto porque permite compreender melhor que, tendo em conta que a individualidade e diversidade de cada pessoa, é única forma de podermos garantir que a vivência da maioria das pessoas trans possa ser um bocadinho melhor. Não exclui as casas de banho, mas vai muito além disso.

Passa pelo nome, o bullying, situações de discriminação e violência que não surgem só de cima para baixo, com as direções de escola, como também pelos próprios professores, que discriminam e potenciam situações de violência. Por exemplo, as situações de bullying por estudantes não estão a ser devidamente prevenidas.

Como podiam ser prevenidas?

É preciso ter programas e estratégias de ação mais abrangentes. É necessária uma estratégia a nível nacional que combata o bullying, que permita haver formação, sistemas de denúncia, proteção e atuação que sejam inclusivas das questões LGBTI e das situações de transfobia em particular.

Há uns anos fui fazer um workshop na Noruega sobre a questão do bullying e tive a oportunidade de conhecer um projeto que envolveu as forças de segurança, os educadores, a formação de estudantes e a criação de um ambiente mais inclusivo e protegido.

Mas a conclusão que esperavam era que no final do dia o que tinham de fazer era falar com os bullies e dizer que aquilo era errado e que não podia acontecer. Não é dizer basta ou um professor ou funcionário vir chamar à atenção, mas à medida que tiveram um sistema que demonstrou aos miúdos que o bullying era errado, este começou a dissipar-se. Precisamos disso aqui. Isto abrange a transfobia, como todos os outros tipos de discriminação e de bullying, dentro e fora da escola.

Numa tese académica, feita por Jo Rodrigues, concluiu-se que cerca de 50% das pessoas trans passaram por pelo menos um episódio de discriminação em contexto médico. No que falha a formação dos profissionais de saúde para lidar com pessoas trans?

O que falha é não haver formação sobre as questões LGBTI, e as questões trans em particular. O que dissemos há pouco sobre formação da comunicação social também podíamos ter dito sobre educação. Os professores também não têm formação. Começam a ter um pouco por causa da [disciplina de] Educação para a Cidadania, mas ainda assim não têm formação sobre as questões LGBTI e as questões trans. Os profissionais de saúde também não.

Na verdade, não existe nenhum curso que tenha conteúdos LGBTI como obrigatórios. Esses conteúdos, quando são lecionados, são sempre na pós-graduação e de forma para lá de opcional. Não há formação em qualquer área, mas na saúde isso é especialmente alarmante, porque toda a gente precisa de ter acompanhamento de saúde. Todas as pessoas que vivem em Portugal deveriam ter uma pessoa médica assistente sensibilizada para uma abrangência de situações.

No que diz respeito às pessoas LGBTI, e como grande parte da população portuguesa, a maioria não tem pessoas médicas assistentes. Quando conseguimos falar com um profissional de saúde percebemos que não sabem nada sobre o que é ser trans, sobre as nossas vivências e as especificidades do nosso ciclo de vida.

“A luta pelos direitos das mulheres, mas acima de tudo a definição do feminismo, é a luta pela igualdade entre géneros. Isto deve incluir todos os géneros além do feminino e do masculino. Não estamos a lutar por um ideal e por uma figura de mulher, mas para que as pessoas possam viver em igualdade.”

Há uma ideia muito enraizada de que as pessoas trans são jovens que procuram profissionais de saúde para aceder a uma afirmação de género e que depois, tendo essa afirmação sido feita, elas desaparecem.

Isto não é real... Há pessoas a precisar de aceder à sua afirmação ou ter apoio sobre ser trans em qualquer idade. E as nossas necessidades de saúde não estão só diretamente ligadas com a afirmação de género. 

É preciso que haja o cuidado de perceber que uma pessoa trans pode ter feito cirurgias ou terapêuticas hormonais e que há vários procedimentos médicos que entram em conflito com as suas questões de saúde. Essa sensibilização não existe.

A experiência de pessoas que conheço e com quem vou contactando confirma isso. Quando precisamos de estar com um serviço especializado há uma rejeição muito grande.. Há profissionais especialistas que negam receber pessoas trans por causa da questão de identidade de género, dizem para falar com o médico que acompanha, se existir. Se não existir, que passe a haver. Essa rejeição é sentida pelas pessoas e é uma discriminação grave.

Na medicina, quão avançado está o estudo sobre questões trans?

Podia estar mais avançado, mas há bons exemplos de esforços que podem ser considerados. Falavas há pouco de Jo Rodrigues, que cofundou a Associação Anémona e da qual também faço parte. A Anémona tem estado a dar formação a profissionais de saúde para colmatar essa falta de formação e a desenvolver algum trabalho científico.

Um exemplo é a questão dos rastreios oncológicos. Identificou-se que, no contexto da Medicina geral, as intervenções não tinham em conta as necessidade da população trans, à semelhança de toda a população, de fazer os rastreios oncológicos de acordo com aquilo que é a fisionomia e anatomia de cada pessoa.

Também com a questão das vacinas durante a pandemia...

Todas as recomendações tinham uma linguagem extremamente binária que confundiu a população trans, que ficou na dúvida se devia tomar a vacina X ou Y. E quando alguém chegava para se vacinar e se tentava informar, com a melhor das intenções, recebia estupefação.

São precisos melhores guiões. É necessário haver formação, sensibilização e capacitação de profissionais de saúde nestas questões muito concretas. Todos os profissionais da saúde devem saber o que é uma pessoa trans, seja de enfermagem, de psicologia ou dos serviços administrativos dos hospitais e centros de saúde,. É preciso garantir que as pessoas trans não ficam de fora de rastreios oncológicos, de programas de vacinação, e de todo o tipo de procedimentos médicos.

Neste momento existem três unidades de saúde especializadas em saúde trans em Portugal. A oferta existente é suficiente para responder às necessidades das pessoas? 

Além da afirmação de género não ser o único motivo pelo qual procuramos apoio na saúde, e de não serem só pessoas jovens a procurá-la, é preciso pensar que as pessoas trans que já fizeram a sua afirmação de género, com cirurgias ou terapias hormonais, ainda precisam de apoio.

Há a necessidade de haver algumas especificidades, como as mulheres trans que fizeram uma cirurgia genital e têm vagina, mas não têm útero e, na maioria dos casos, mantêm a sua próstata. Estas pessoas precisam de fazer rastreios ao cancro da próstata. Há a ideia de que a partir do momento em que a pessoa foi cirurgiada não precisa de mais acompanhamento.

É preciso ter atenção à pessoa trans ao longo da sua vida. Tenho estado a identificar isso com a minha experiência a navegar no Serviço Nacional de Saúde. Não existem pontos de entrada para as minhas necessidades de saúde.Estes serviços especializados só estão preparados para alguém que vai iniciar uma afirmação de género

Quem quer aceder a tratamentos hormonais precisa de passar pela Medicina Familiar, pela Sexologia Clínica e por um acompanhamento psicológico para obter um relatório passado por uma equipa multidisciplinar. No caso das alterações cirúrgicas, é pedido ainda um outro relatório e a autorização da Ordem dos Médicos. Este processo faz sentido? 

Felizmente já houve algumas alterações. Não é tão linear em todas as unidades, porque não seguem todas o mesmo guião. A parte da Ordem dos Médicos já foi reformulada, há dois ou três anos.

A afirmação de género passa necessariamente pela saúde mental, o que pode fazer sentido para garantir o melhor consentimento informado e para haver uma garantia de que as pessoas estão na melhor forma e têm também acesso a cuidados a nível de saúde mental.

Também se tem identificado pessoas que estão mais à frente no seu processo, como no meu caso: alguém que fez cirurgia genital e deixou de ter acompanhamento endocrinológico. Quando fui procurá-lo junto destas equipas especializadas, quiseram-me reencaminhar outra vez para um diagnóstico de saúde mental quando já o tinha feito no passado.

Temos um sistema montado com um único modelo e experiência de vida. Se alargarmos isto para todo o espetro de pessoas trans e de experiências das pessoas não-binárias, ainda é mais alarmante. Mas mesmo dentro do espectro das pessoas trans que querem fazer uma afirmação de género e uma cirurgia genital a diversidade de pessoas e de situações é muito grande.

Não se pode ter um guia único. É preciso haver mais unidades e um repensar desta ideia dos cuidados específicos. Perceber até que ponto uma pessoa médica endocrinologista tem que ser especialista em saúde trans para fazer o acompanhamento hormonal de uma pessoa trans. Qualquer hospital que tenha uma equipa de endocrinologia deveria ter consultas e acompanhar pessoas trans nos seus processos hormonais.

Isto aplica-se também à sexologia. Nem todas as equipas de sexologia nos hospitais estão abertas a receber as pessoas trans, nem na área da saúde mental nem na de cirurgia. Isto não deve impedir que haja profissionais que tenham mais interesse em trabalhar com a população e especializar-se, mas isso não deveria exigir que tenhamos centros especializados.

“Quando precisamos de um serviço especializado, há uma rejeição muito grande… Há profissionais que negam receber pessoas trans por causa da questão de identidade de género, dizem para falar com o médico que acompanha, se existir. Essa rejeição é uma discriminação grave.”

Fazendo parte do projeto Anémona, sente que tem havido alguma mudança com as gerações mais novas na forma como estas questões são acolhidas por profissionais de saúde que se estão a formar? 

Sente-se que há uma vontade de saber, independentemente de quererem trabalhar ou não com esta população. Há a noção de que é uma mais-valia terem conhecimentos de base.

Isso é algo que está muito presente na Anémona. Neste momento, o trabalho da Anémona tem-se afunilado muito na formação e na introdução destes temas, mas esperamos que a médio prazo deixe de ser tão necessário e que haja alguma escola médica que comece a incluir isto nos currículos. Se essa formação existir, não deixa de haver necessidade de uma associação como a Anémona, não só pelo apoio direto dado à população trans, mas também aos profissionais de saúde. É preciso uma associação que preencha esse espaço.

Isto que estamos a criar para o caso da identidade de género e a da população trans existe para outras áreas de saúde. Profissionais de saúde podem ir a determinadas sociedades científicas e associações. Sabem que ali vão receber informação específica e ter aconselhamento com colegas especializados. Sentimos que pessoas que estão a estudar e a iniciar-se na profissão reconhecem essa necessidade e veem na Anémona uma aliada.

Havendo estas três unidades de saúde especializadas, quantos médicos formados em tratamentos cirúrgicos existem? E até quanto tempo é que podem demorar as listas de espera para quem quer obter tratamentos cirúrgicos?

Existe a equipa em Coimbra, com um número variável de pessoas que vai dando formação a algumas pessoas cirurgiãs para esta área, mas não sabemos quantas pessoas é que estão lá ou foram, garantidamente, formadas. Não temos garantia de número ou em que grau é que essa formação resulta em alguma coisa. Continua a ser aquela equipa a garantir de forma consistente as cirurgias.

No Porto também existe uma equipa a preparar-se e a começar a fazer algumas cirurgias, mas não há dados muito concretos do que se lá está a passar. Sabemos que em Lisboa também se está a formar uma equipa. Os três grandes centros urbanos têm demonstrado, nos últimos tempos, vontade em garantir a parte cirúrgica, e existirão equipas de cirurgia a desenvolver isso em todas elas.

As listas de espera são um grande enigma desde sempre, mas sobretudo desde 2011, quando foi criada a unidade de Coimbra, e reestruturado o acompanhamento à saúde trans. Nunca houve uma lista de espera que fosse muito clara.

Já houve no passado algumas auditorias a estas listas de espera, mas continuamos a não ver resultados. Acreditamos que seja uma necessidade a curto prazo haver uma auditoria às listas de espera para se perceber o que se passa, o que está a funcionar mal, porque são longas. Já o eram antes da pandemia, durante a qual foram completamente suspensas. A partir daí não tem havido capacidade de repor  a capacidade de resposta.

O tempo de espera pode ser de anos?

Sim. Conheço pessoas que esperam dois ou três anos, e outras que esperaram muito mais. É muito divergente, não existe uma prática concreta, por isso é necessário que haja algum tipo de auditoria.

Quem quiser recorrer como alternativa ao privado, que valores é que pode esperar?

Não sei dizer valores. São muito avultados, e se falarmos de cirurgia genital continua a estar limitada a Lisboa, ao Hospital de Jesus.